Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo
Tem na Netflix !
Primeiro longa-metragem do americano
Trey Edward Shults, "Krisha", foi nomeado em diversos festivais de
cinema independente e venceu 15 prêmios. A produção do longa é curiosa, pois
conta com o diretor atuando no seu próprio filme que foi filmado na casa da sua
mãe, que também atuou no projeto junto com outros integrantes da família, tendo
apenas alguns atores contratados.
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Diretor Trey Edward Shults
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Shults estreou seu segundo longa
"Ao Cair da Noite" (2017), que caiu no gosto da crítica, que tem
elogiado o desconforto da narrativa e a sensação de paranoia. Desconforto é a
palavra certa que também caracteriza "Krisha". Inspirado (segundo
Trey) em acontecimentos de sua própria família, a história, claro, é sobre Krisha (Krisha Fairchild), uma mulher que depois de um
tempo afastada da família, está de volta a convite de sua irmã, Vicki (Victoria
Fairchild) para passar o dia de ação de graças com todos na casa.
O primeiro plano já coloca a
protagonista nos olhando. Seu semblante cansado, já nos diz que há algo errado com
a personagem. Quem é essa mulher? Qual o seu passado? Essa imagem é claramente
um reflexo simbólico de como a personagem está se sentindo por dentro, pois
somos os primeiros a conhecê-la mais intimamente, apesar de à primeira vista
ela ainda despertar um ar de mistério.
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Krisha (Krisha Fairchild)
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Quando a narrativa de fato se desenrola,
Krisha chega de carro na rua onde está a casa de sua irmã e onde se passará o
jantar. Agora vamos notando Krisha como aquele parente mais atrapalhado, que
deixou parte da roupa presa na porta do carro enquanto dirigia, que toca a
campainha da casa errada, ou que pisa na poça d’água momentos antes de chegar
na casa certa. O que aparentemente dará um tom mais de comédia no roteiro, irá aos
poucos se transformar em um drama desconfortável e triste sobre alguém que está
tentando fazer com que as coisas deem certo na vida.
Todo o trajeto de Krisha do carro até a
casa e até ao entrar no local e cumprimentar todos, foi feito em um plano sequência
que ao mesmo tempo que nos faz acompanhar a personagem e descobrir o lugar
junto com ela, também traz uma forma de percepção de todo o ambiente da casa,
deixando tudo mais natural ao mesmo tempo em que todos os integrantes da
família falam alto e ao mesmo tempo, dando mais naturalidade quando se pensa em
uma família reunida.
A chegada de Trey (Trey Edward Shults),
que mais para frente descobriremos que se trata do filho de Krisha, já vai aos
poucos revelando o passado da relação da personagem com o rapaz. Um pouco frio
com chegada da mulher, ele ainda guarda muita mágoa de seu passado. A partir de
diálogos expositivos, muitas vezes claros sem serem explícitos e das ações da
personagem, vamos descobrindo cada vez mais sobre essa mulher que tenta
esquecer seus erros e de como prejudicou e preocupou toda sua família. Sua caixa
com diversos remédios que vive trancada, cuja chave ela leva sempre consigo
pendurada no pescoço, é algo interessante de como a personagem procura
"esconder" um lado de sua vida e tenta fazer com que o dia de ação de
graças dê certo.
Mesmo com todo seu esforço, o espectador
já percebe que tudo não deve sair como planejado. A música desconfortante nos
coloca no mesmo desconforto da protagonista que constantemente se sente
deslocada na casa e os enquadramentos
reforçam isso ao “enclausurar” o rosto da personagem dentro do quarto enquanto
ela observa todos na sala pelo vidro da porta. A câmera também faz uso de um
movimento em 360 graus no teto para reforça a sensação de desorientação da
personagem e consequentemente a nossa, que nos vemos na pele dela.
Mesmo tentando, a personagem não tem
muita sorte na socialização, que resulta numa tentativa frustrada de
reaproximação de seu filho. A ida a casa pode também ser entendida como a
tentativa da personagem em tentar se socializar novamente com o mundo, depois
de se recuperar de seus vícios. Não há uma hostilidade coletiva, com exceção de
Trey e Doyle (Bill Wise), seu cunhado que se em um primeiro momento parece
acolhedor enquanto conversa com Krisha, repentinamente mostra que não acredita
na sua recuperação. Isso acaba abalando mais a autoconfiança da personagem que
resolve se entregar mais uma vez ao que tanto a prejudicou: o álcool.
A partir daí mais elementos simbolizam a
alteração da personagem diante do vício e de como ele a afasta ainda mais de
seus familiares. Isso se reflete nos planos por exemplo, que passam a ter uma
duração mais curta como se fragmentassem a mente da protagonista. A câmera que
passeia por um corredor com diversos retratos da família pendurados na parede,
entra em uma sala totalmente escura e o afeto da mulher de um dos sobrinhos de
Krisha, enquanto canta para seu bebê recém-nascido, faz um contraponto com a
relação frágil da protagonista com seu filho. O slow motion da família se divertindo na casa, mesmo quando não são
um ponto de vista de Krisha, acaba representando também o nosso próprio olhar
que facilmente nos faz criar empatia com a personagem.
As situações sairão mais do controle
para chegarmos até a conclusão do filme que termina voltando ao plano inicial
do olhar de Krisha, agora com a personagem nos encarando enquanto derrama
lágrimas de arrependimento, vergonha e de uma sensação de uma batalha perdida.
Com notória inspiração dos filmes de
John Cassavetes, em especial, "Uma Mulher Sob Influência" (1974),
Trey Edward Shults mostra todo seu domínio em criar uma boa atmosfera de
deslocamento e desconforto, mas também de sensibilidade com sua protagonista. É
um interessante filme sobre personagem e sua relação com o ambiente.
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