quarta-feira, 30 de abril de 2025

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga





 

O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso aos pensamentos de uma mulher que procura desesperadamente seu amante. O tom existencialista já aparece nas elucubrações da personagem enquanto a câmera passeia pelos transeuntes, vitrines de lojas de departamento e letreiros de neon. A personagem se sente solitária e cansada dos papeis sociais de mãe e esposa atribuídos a ela, mostrando um desejo de se libertar dessas convenções que a oprimem. Desse modo, o existencialismo é costurado com as pretensões eróticas do filme, parecendo uma versão pervertida de São Paulo S.A. Enquanto o filme de Person mostra as angústias de uma personagem de classe média que colhe de sua ascensão social, o vazio existencial - em meio a sociedade de consumo que despontava na sociedade brasileira - em Vidas nuas é a mesma classe média que protagoniza angústias eróticas e existenciais na metrópole paulista. E é no protagonismo da metrópole noturna que essas personagens buscam dar vazão à sua “imoralidade”. Considerado por alguns o filme que originou o ciclo das pornochanchadas, Vidas nuas foi gravado em 1962 e teria um corte final mais conservador. No entanto, quando a produtora inicial do projeto entra em dificuldades financeiras, sua estreia é constantemente adiada até 1967, quando foram incluídas as cenas de strip-tease, tirando o aspecto pretensamente conservador do filme.



Desse modo, Vidas nuas parece ser uma típica produção de transição, pois carrega características de certo cinema pregresso ao mesmo tempo que anuncia um novo ciclo de produção. As características do cinema pregresso se encontram na abordagem existencialista de classe média que lembram o cinema de Hugo Walter Khouri e o já citado São Paulo S.A de Person. Por outro lado, o erotismo evidencia a guinada que o cinema brasileiro daria em explorar comercialmente o erotismo, como seria característica das pornochanchadas. Esse lugar de transição transforma Vidas nuas em um filme peculiar em que o erótico, longe de ser apenas um elemento chamativo para assegurar o público, transforma-se em elemento provocativo e fundamental das discussões existenciais no filme. Assim, a encenação do erotismo se dá de forma sofisticada, atrelada as trajetórias das personagens.



 

O filme começa apresentando o núcleo familiar disfuncional, vivido por Antônio, um acadêmico desiludido, Sônia, sua esposa milionária que o traí e Mônica, a filha desta, estudante universitária que é apaixonada pelo padrasto. O conflito aqui é filmado poeticamente, inserindo sutilezas, simbolismos e enquadramentos de câmera que fazem o filme exceder o caráter de mera fita erótica. Como na cena em que o padrasto, sabendo que o amante de sua esposa está prestes a chegar, saí para perambular pela cidade. A enteada por sua vez, se tranca em seu quarto e enquanto a mãe tem uma noite de amor com seu amante, a jovem é acossada pela tensão sexual ao mesmo tempo que demonstra apego aos seus bonecos de pelúcia. É como se a jovem não estivesse pronta para aceder à vida adulta pois foi acostumada a encarar a sexualidade como imoralidade como afirma o intelectual já no final do filme: “Sônia fez com que você tivesse outra ideia ao respeito do amor”. A jovem universitária vacila em relação aos seus desejos, pois percebe que a vivência do erotismo e do amor é imersa em contradições. Ela confessa sentir o amor “só de longe.” Daí o aspecto existencial do filme – nem sempre muito claro, é verdade – em encarar a sexualidade como instância de escolhas e não de um código moral socialmente estabelecido. A frase que sintetiza essa ideia é dita pela personagem da mãe milionária: “Abomino o instinto materno e o que dele resulta” diz ela. Essa mãe não se identifica com seu papel e prefere ceder aos seus impulsos eróticos e se engajar numa relação com um homem mais jovem, que ela sabe que não está emocionalmente disponível. O conflito de Sônia também é abordado com soluções visuais sofisticadas como o relógio, que sempre a acompanha esperando a ligação do amante.



O intelectual, por sua vez, tem nas cenas de strip-tease evidenciada sua posição na narrativa. Seu comportamento voyeurístico o coloca como alguém distante dos acontecimentos, tal como se distancia emocionalmente das traições da esposa. Pode-se supor se o filme sugere algum prazer dele com a situação, no entanto, o que fica claro mesmo é que ele projeta nas sessões de strip-tease seu desejo pela enteada.

Mais adiante no filme, a narrativa se expande para explorar a vida de Mário, outrora amante de Sônia, e outra moça com quem ele está saindo. Juntos, vão até o litoral. A moça estuda no mesmo colégio que Mônica. O rapaz tece comentários críticos aquele grupo social que posicionam a crítica do próprio filme. “Vocês todas pertencem a mesma sociedade, frequentam a mesma universidade e nenhuma sabe exatamente o que deseja da vida. Enchem a vida de tédio, só isso.” Vaticina Mário. Mário como personagem outsider posiciona o olhar crítico dirigido aquela classe social específica, fazendo o comentário classista que também aparece na obra. O tédio e a suposta imoralidade aparecem aqui como desvios de classe, não no sentido moralizante, mas na eterna e vacilante alienação que a classe média se deixa enredar. Alienação de classe que resulta em alienação existencial, em um torpor envolvido em finas camadas de tédio. Por outro lado, Mário sustenta sua postura alienante em relação ao contexto social que o circunda. Admite não se interessar pelas notícias. Quer mesmo falar de sexo e prazer, que para ele, são a mesma coisa. A atitude de Mário confronta a do intelectual que, voyeuristicamente, se recusa a fazer parte de qualquer ato prazeroso.        

A seguir, já quase na conclusão da narrativa, Mônica e o intelectual tem um diálogo que completa a crítica de Mário. Angustiada, Mônica pergunta ao professor qual seria a finalidade da vida humana no que ele responde: “Somos o que somos. Uma classe que chega ao seu fim. Que se destrói e está sendo destruída. Novos tempos estão chegando. (...)Temos que escolher e não sabemos.” Esse autodiagnóstico de classe revela a má consciência em saber-se inútil frente ao mundo em transformação. O enquadramento não deixa escapar o relógio, logo atrás do acadêmico, que comunica de forma visual esse tempo histórico que acossa a burguesia e intensifica sua angústia. No entanto, se nos filmes do Cinema Novo, particularmente produzidos posteriormente ao golpe de 64, a má consciência da classe média retrata personagens progressistas em Vidas nuas, as personagens parecem não se importar com os problemas sociais do país, sabendo apenas o papel decadente que desempenham em uma sociedade de classes.



O filme termina com Antônio e Mônica assumindo sua relação e deixando a cidade de São Paulo para um destino desconhecido à audiência. Esse desfecho tem um caráter marcadamente escapista que indica o objetivo comercial do filme. Desse modo, Vidas Nuas é um filme erótico embalado num plástico cinza do tédio existencial de classe média.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...