quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A Casa de Pequenos Cubinhos

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos

Vencedor do Oscar de melhor animação em curta-metragem, "A Casa de Pequenos Cubinhos" (Tsumiki no ie, 2008) foi dirigido pelo japonês Kunio Kato. Com apenas doze minutos de duração, o curta narra a história de um senhor que vive sozinho em uma cidade que sofre com uma inundação gradativa. Conforme a água vai subindo, o senhor precisa levantar um andar de sua casa, acima do nível da água. Quando seu cachimbo favorito cai e vai parar no andar abaixo, onde ele vivia antes com sua esposa já falecida, o velhinho decide comprar uma roupa de mergulho e ir atrás dele. 


Com muita simplicidade, "A Casa de Pequenos Cubinhos" é uma delicada metáfora para as lembranças de nossas vidas. O andar atual onde vive o senhor, assim como todos os outros andares de suas casas anteriores, são animados no curta-metragem com traços que muito lembram um papel envelhecido. A cor sépia é predominante durante todo o filme, justamente remetendo ao passado de seu personagem, que mesmo com as fotos que mantém penduradas na parede, parece ter se desapegado ao ato de recordar.



A água cujo nível aumenta de tempos em tempos, pode ser facilmente reconhecida como a ação do tempo que cobre nossa história e  as recordações mais significativas de nossas vidas. Antes de deixar o cachimbo cair, o senhor, agora em sua vida solitária, costuma fazer suas refeições completamente só. Como companhia lhe resta a televisão, objeto que simboliza no curta uma forma de alienação que reforça o fato do personagem deixar sua vida mais de lado.

Quando chega a hora de construir o novo andar de sua casa, o colocar tijolos que formarão a parede, é frisado no curta como forma de seguir em frente sempre no presente, o que também é importante para nós. Mas sua decisão em buscar o cachimbo está o aprendizado de voltar ao passado e perceber que a vida também não é apenas olhar para frente. Modesto e melancólico, "A Casa de Pequenos Cubinhos" é uma bonita forma de representar a importância de se lembrar e como nossa história, mesmo submersa na água do tempo, pode nos fazer muito bem quando apreciada de vez em quando.




segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Krisha

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo

Tem na Netflix !

Primeiro longa-metragem do americano Trey Edward Shults, "Krisha", foi nomeado em diversos festivais de cinema independente e venceu 15 prêmios. A produção do longa é curiosa, pois conta com o diretor atuando no seu próprio filme que foi filmado na casa da sua mãe, que também atuou no projeto junto com outros integrantes da família, tendo apenas alguns atores contratados. 

Diretor Trey Edward Shults

Shults estreou seu segundo longa "Ao Cair da Noite" (2017), que caiu no gosto da crítica, que tem elogiado o desconforto da narrativa e a sensação de paranoia. Desconforto é a palavra certa que também caracteriza "Krisha". Inspirado (segundo Trey) em acontecimentos de sua própria família, a história, claro, é sobre Krisha (Krisha Fairchild), uma mulher que depois de um tempo afastada da família, está de volta a convite de sua irmã, Vicki (Victoria Fairchild) para passar o dia de ação de graças com todos na casa.

O primeiro plano já coloca a protagonista nos olhando. Seu semblante cansado, já nos diz que há algo errado com a personagem. Quem é essa mulher? Qual o seu passado? Essa imagem é claramente um reflexo simbólico de como a personagem está se sentindo por dentro, pois somos os primeiros a conhecê-la mais intimamente, apesar de à primeira vista ela ainda despertar um ar de mistério.

Krisha (Krisha Fairchild)
Quando a narrativa de fato se desenrola, Krisha chega de carro na rua onde está a casa de sua irmã e onde se passará o jantar. Agora vamos notando Krisha como aquele parente mais atrapalhado, que deixou parte da roupa presa na porta do carro enquanto dirigia, que toca a campainha da casa errada, ou que pisa na poça d’água momentos antes de chegar na casa certa. O que aparentemente dará um tom mais de comédia no roteiro, irá aos poucos se transformar em um drama desconfortável e triste sobre alguém que está tentando fazer com que as coisas deem certo na vida.

Todo o trajeto de Krisha do carro até a casa e até ao entrar no local e cumprimentar todos, foi feito em um plano sequência que ao mesmo tempo que nos faz acompanhar a personagem e descobrir o lugar junto com ela, também traz uma forma de percepção de todo o ambiente da casa, deixando tudo mais natural ao mesmo tempo em que todos os integrantes da família falam alto e ao mesmo tempo, dando mais naturalidade quando se pensa em uma família reunida.

A chegada de Trey (Trey Edward Shults), que mais para frente descobriremos que se trata do filho de Krisha, já vai aos poucos revelando o passado da relação da personagem com o rapaz. Um pouco frio com chegada da mulher, ele ainda guarda muita mágoa de seu passado. A partir de diálogos expositivos, muitas vezes claros sem serem explícitos e das ações da personagem, vamos descobrindo cada vez mais sobre essa mulher que tenta esquecer seus erros e de como prejudicou e preocupou toda sua família. Sua caixa com diversos remédios que vive trancada, cuja chave ela leva sempre consigo pendurada no pescoço, é algo interessante de como a personagem procura "esconder" um lado de sua vida e tenta fazer com que o dia de ação de graças dê certo.


Mesmo com todo seu esforço, o espectador já percebe que tudo não deve sair como planejado. A música desconfortante nos coloca no mesmo desconforto da protagonista que constantemente se sente deslocada  na casa e os enquadramentos reforçam isso ao “enclausurar” o rosto da personagem dentro do quarto enquanto ela observa todos na sala pelo vidro da porta. A câmera também faz uso de um movimento em 360 graus no teto para reforça a sensação de desorientação da personagem e consequentemente a nossa, que nos vemos na pele dela.


Mesmo tentando, a personagem não tem muita sorte na socialização, que resulta numa tentativa frustrada de reaproximação de seu filho. A ida a casa pode também ser entendida como a tentativa da personagem em tentar se socializar novamente com o mundo, depois de se recuperar de seus vícios. Não há uma hostilidade coletiva, com exceção de Trey e Doyle (Bill Wise), seu cunhado que se em um primeiro momento parece acolhedor enquanto conversa com Krisha, repentinamente mostra que não acredita na sua recuperação. Isso acaba abalando mais a autoconfiança da personagem que resolve se entregar mais uma vez ao que tanto a prejudicou: o álcool.

A partir daí mais elementos simbolizam a alteração da personagem diante do vício e de como ele a afasta ainda mais de seus familiares. Isso se reflete nos planos por exemplo, que passam a ter uma duração mais curta como se fragmentassem a mente da protagonista. A câmera que passeia por um corredor com diversos retratos da família pendurados na parede, entra em uma sala totalmente escura e o afeto da mulher de um dos sobrinhos de Krisha, enquanto canta para seu bebê recém-nascido, faz um contraponto com a relação frágil da protagonista com seu filho. O slow motion da família se divertindo na casa, mesmo quando não são um ponto de vista de Krisha, acaba representando também o nosso próprio olhar que facilmente nos faz criar empatia com a personagem.


As situações sairão mais do controle para chegarmos até a conclusão do filme que termina voltando ao plano inicial do olhar de Krisha, agora com a personagem nos encarando enquanto derrama lágrimas de arrependimento, vergonha e de uma sensação de uma batalha perdida.

Com notória inspiração dos filmes de John Cassavetes, em especial, "Uma Mulher Sob Influência" (1974), Trey Edward Shults mostra todo seu domínio em criar uma boa atmosfera de deslocamento e desconforto, mas também de sensibilidade com sua protagonista. É um interessante filme sobre personagem e sua relação com o ambiente. 



segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A Morte Cansada

Texto de Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo 

Dirigido por Fritz Lang, o longa foi lançado seis anos antes da obra mais famosa do diretor, “Metrópolis” (1927). “A Morte Cansada” que é considerado o primeiro filme do cineasta a fazer sucesso internacionalmente, influenciou diversos outros diretores conhecidos, como Luis Buñuel, Ingmar Bergman (mais especificamente no filme “O Sétimo Selo” de 1957), Michael Powell, além de ser um dos filmes favoritos de Alfred Hitchcock. Como é comum acontecer com alguns filmes, “A Morte Cansada” não foi um sucesso logo quando foi lançado, ganhando seu reconhecimento e sucesso comercial depois que foi relançado em outros países da Europa.

A sinopse é sobre um jovem casal que está chegando em um vilarejo de carruagem, quando são surpreendidos por um estranho homem vestido de preto que embarca junto com eles. Chegando em uma taverna, o casal resolve beber alguma coisa e se deparam novamente com o homem vestido de preto. Quando a mulher resolve sair por um momento e logo retorna, percebe que seu noivo desapareceu. Ao perguntar para algumas pessoas do vilarejo se alguém viu o seu noivo, descobre que o mesmo deixou a taverna em companhia do estranho homem. Decidida a procurá-lo, ela descobre que seu amado foi levado pela morte (o senhor de preto), uma vez que chegou sua hora. Desesperada, a mulher tentar negociar com a morte para ter seu noivo de volta. A morte então propõe um desafio para a mulher em que ela terá que voltar em três períodos do tempo, em três países diferentes (Arábia, Itália e China). Em cada lugar ela viverá outras vidas junto com seu noivo e terá três tentativas para poupar sua vida. Se conseguir, terá seu noivo de volta em sua vida real.


O longa traz o questionamento e a resposta, que se dá no final do filme, sobre a força do amor e sua capacidade de vencer a morte. Vale notar também que o casal principal não tem nome, representando assim talvez a própria vida, porém materializada nos personagens do homem e da mulher. Mesmo com o lado voltado para o romance, o filme não cai em nada excessivamente melodramático. Já como um filme do expressionismo alemão, o design de produção já é mais contido e sem os excessos que existem em “O Gabinete do Dr. Caligari”, embora no segundo filme, o tema de caráter psíquico faça todo o sentido na escolha do design de produção mais chamativo.


Já as cruzes e o próprio cemitério são inevitáveis de aparecerem na tela e são muito bem fotografados na película que para representar a luz do dia, é tingida de sépia. Engana-se também quem imagina que o filme procura vagar pelo gênero do terror, por conta dos temas e símbolos abordados. Lang não deixa o personagem da morte cair em uma suposta vilania, pelo contrário, aqui a morte (interpretada por Bernhard Goetzke) ganha uma seriedade e respeito que dão ao personagem um patamar de algo que faz parte da vida de todos. A própria morte em si ganha uma dimensão curiosa, já que como sugere o título, ela mesma se encontra cansada do seu trabalho e de ser odiada pela humanidade já que está obedecendo ordens divinas. Considerando seu trabalho uma maldição, a morte explica para a mulher em uma cena, que está cansada de ver o sofrimento da humanidade. 

Os cenários são uma atração à parte. Como já mencionado acima, a força expressionista do filme é mais contida e se mantém em alguns objetos retorcidos na tela, como árvores, muros e nas atuações dos atores. Ainda sobre o cenário, chama a atenção um muro construído pela morte que rodeia um pedaço de terra comprado pela própria personagem e que serve para abrigar as novas almas que são levadas dessa vida. Alguns planos colocam os personagens diante desse muro que nitidamente se impõe a eles, que tentam encontrar um portão de acesso ao lugar sem nunca encontrar, já que apenas a morte sabe onde fica. Isso de certa forma faz uma alusão a nossa tentativa de tentar entender aspectos da vida como, claro, a própria ideia de morrer. Em uma cena, Goetzke é enquadrado de costas para o muro, onde aparece centralizado no mesmo. Isso reforça o equilíbrio e a sabedoria de seu personagem perante sua missão.


Efeitos de sobreposição e os cenários que representam os três diferentes países em que a jovem mulher precisa salvar seu noivo, também mostram um capricho notório. Destaque para a sala de velas acessas onde a morte explica que cada chama da vela ali presente, representa a vida de alguém. Ele mostra a mulher o momento em que chega o fim da vida de um bebê. Um efeito de sobreposição quase perfeito “encaixa” a imagem da morte com uma outra imagem sua segurando um bebê, dando a ideia de que a criança surgiu do nada nas mãos da morte. Antes disso vemos a chama da vela que aparece flutuado antes de se transformar no bebê, simbolizando sua vida.


A inspiração para o filme veio de um conto da mitologia indiana sobre Sati Savitri, mas também de uma experiência pessoal de Lang. O cineasta, ainda criança, sofreu com uma forte febre e teria visto um homem de preto usando um chapéu através de uma janela entreaberta. Quando já havia se curado, “a imagem da morte que traz uma mistura de afeto e horror, junto com a experiência mística”, nunca saíra da cabeça de Lang e acompanhou os temas de seus filmes.


Sendo assim, fica inegável como essa experiência influenciou o cineasta em “A Morte Cansada”, que merece ser conferido por aqueles que ainda não haviam ouvido falar na obra desse que é um dos grandes diretores do cinema.   








domingo, 13 de agosto de 2017

“Atypical” Nova série da Netflix

Atypical estreou no dia 11 de agosto entrando para o catalago da Netfilx como mais uma produção do serviço de streaming. E assim como a maioria de suas produções originais a série segue a receita da simplicidade de produção com aquele clima de produção independente focada nos personagens.

Criada pela produtora Robia Rashid (How I Met Your Mother,  The Goldbergs)  Atypical trás como tema central o autismos, porém assim como em outras produções de Rashid, tudo é tratado por um viés suave revestido de dramas familiares com uma pegada cômica, deixando assuntos difíceis de serem abordados mais interessantes ao grande público.


A série conta a história de Sam Gardner um jovem de 18 anos de idade no espectro do autismo, em uma de suas formas mais leve, ou seja apesar do garoto ter vários problemas decorrentes do autismo ele ainda consegue desenvolver comunicação ir a escola e trabalhar, mas tudo isso de uma forma um pouco diferente “Atípica”.


Sam assim como a maioria das pessoas que tem autismo ou algum outro problema não tão comum, cresceu cercado pelos cuidados de sua família, a série começa do ponto em que ele começa a dar seus primeiros passos para uma independência pessoal, partindo em busca de conseguir ter uma namorada, e experiência sexual.

O interessante da série é que se pararmos para pensar as dificuldades do personagem em fazer as coisas simples do dia a dia, são também as dificuldades de qualquer um, pois o encontro com o outro as relações sociais e familiares demandam muito esforço, e Sam mesmo em sua forma de agir necessitando de suas regras e sem compreender muito bem as facetas da comunicação, de certa forma esta mais aberto para entender os outros. 

Apesar dos alívios cômicos e de ser até divertida a série trata de dramas familiares e o que se percebe no caso é que apesar da família Gardner parecer essas famílias que estampam embalagens de margarina, classe média empenhada no tratamento do filho, o autismo acabou afetando a todos na casa. Atypical é bem sincera quanto a isso, mostrando como é difícil ter um parente nas mesmas condições que Sam, por vezes tudo gira em torno do fato de se ter um filho autista, seja pela rotina alterada, pelas crises, ou mesmo pela forma que a sociedade olha para as diferenças fazendo com que todos da família se sintam de alguma forma excluídos.


E isso se manifesta de formas diferentes em cada personagem, no pai Doug (Michael Rapapor), que se sente alheio aos problemas do filho não conseguindo uma conexão com o garoto. Na irmã caçula, Casey (Brigette Lundy-Paine) uma adolescente, super responsável, atleta focada nos estudos,  que acaba assumindo o posto de mais velha tendo que ajudar os pais a cuidarem do irmão, e que por vezes apesar da boa convivência com Sam acaba se sentindo deixada de lado pelos pais, que parecem só terem olhos para os problemas do irmão.

E o destaque de tudo isso fica com o personagem da mãe, Elsa Gardner (Jennifer Jason Leigh), ela que desempenha a função de líder da família e toma para si todos os problemas da casa, o que acabou resultando em uma negação de sua própria vida, assumindo apenas o papel de mãe, mais que isso uma mãe militante nas causas do autismo. E é exatamente pela mãe exemplar que a história começa a ruir e os problemas dos Gardner vão aparecendo,  mostrando que se o autismo era o causador de muitos dos problemas enfrentados por eles, talvez não fosse o maior e único problema da família.

A partir do momento que Sam começa a tentar sair de seu mundinho cercado pela família, todos em sua casa precisam se rearranjar de alguma forma e encontrarem também os seus caminhos. 


A série é muito tocante, com clima de séries que retratam os subúrbios americanos dos anos 1990, porém dando mais profundidade aos problemas que passam batidos nesses formatos. O roteiro da conta da proposta e se desenvolve bem, apresenta o autismo sem didatismo entediante, e sem romantizar a situação. Os atores defendem bem os seus papéis com boas atuações que podem nos levar do choro as risadas.


segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Vera Cruz: o cinema brasileiro ganha destaque fora do país

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949-1954) é a terceira e principal tentativa de implantação de uma indústria cinematográfica no Brasil. Fundada por Francisco Matarazzo Sobrinho e Franco Zampari, a empresa era bem mais ambiciosa e moderna que a Cinédia (leia sobre a Cinédia aqui) e a Atlântida dispondo de recursos da burguesia paulistana.

Estúdio da Vera Cruz em São Bernardo do Campo.

Em São Paulo, o pós-guerra trazia diversa ideias ricas em projetos diversos. A cidade passou a dispor de dois museus de arte, uma companhia teatral, uma cinemateca e uma bienal internacional de artes plásticas. Além disso, escolas de arte, manifestações musicais e exposições eram comuns na cidade. A nova rival da Atlântida, renegava as chanchadas e qualquer forma de cinema artesanal e amadora.

A Vera Cruz pretendia trazer ao país a qualidade e experiência técnicas vindas da Europa, ao mesmo tempo em que valorizava e preservava características da cultura brasileira. A companhia era ambiciosa em alcançar um nível internacional. Estúdios imponentes foram construídos e a contratação de técnicos excepcionais se uniam em uma equipe de estrelas nacionais.

Entre os contratados, Alberto Cavalcanti, teve um papel muito importante na história da Vera Cruz. Tendo uma sólida carreira fora do Brasil, Cavalcanti se formou em arquitetura em Genebra e estudou belas-artes em Paris, sendo um nome respeitado no exterior e tido um papel importante no cinema vanguardista francês. Depois de trinta anos fora do Brasil, o cineasta se depara com um ambiente cultural desconhecido. Ao assumir a orientação artística da Vera Cruz como produtor geral, Cavalcanti leva para os estúdios de São Bernardo do Campo técnicos de diversos países. Além disso, o mais novo contratado da Vera Cruz foi responsável por supervisionar a primeira produção do estúdio: “Caiçara” (Adolfo Celi, 1950). Na história, Marina (Eliane Lage) se casa com um viúvo proprietário de um sítio no litoral de São Paulo. A vida de casada é composta por um marido alcoólatra enquanto ela é cobiçada por outros homens do lugar. Sua única alegria é o menino Chico (Oswaldo Eugênio), cuja avó é adepta da macumba. Quando um marinheiro se apaixona por Marina e tem seu interesse correspondido, Mariana usa a macumba para se ver livre do marido e ficar com seu novo amor.

Alberto Cavalcanti


Os desentendimentos e ruptura entre Cavalcanti e os donos da companhia logo acontece e gera uma campanha de desprestígio que corresponde às expectativas que foram criadas em torno do diretor. O pouco conhecimento que Cavalcanti tinha do seu país o fizeram subestimar os profissionais existentes no próprio Brasil. Isso acontecia também com os técnicos vindos de diversos países da Europa que não possuíam raízes brasileiras para captar a essência necessária para dar aos filmes a cara do Brasil. Era latente a negação do estúdio a tudo o que fora feito antes, inclusive a escolha dos atores, salvo duas exceções: Anselmo Duarte e Ruth de Souza. Fora esse aspecto, as estrelas da Vera Cruz eram ainda desconhecidas. “Caiçara” venceu o prêmio de melhor filme sul-americano no Festival de Punta del Leste, Uruguai. Já no Brasil o filme não foi bem acolhido.

Durante os quase cinco anos de funcionamento, a companhia realizou vinte e dois filmes de curta, média e longa-metragem. “Tico-tico no fubá” (Adolfo Celi, 1951) é um grande sucesso, assim como as comédias de costume de Amácio Mazzaropi, comediante que se tornaria campeão de bilheterias. Outros sucessos como filmes épicos, melodramas, filmes biográficos e filme noir, também fizeram parte da história da Vera Cruz. Com a saída de Cavalcanti, os filmes continuam a tentar agradar tanto o público brasileiro quanto o internacional. Produções locais são enviadas para diversos festivais internacionais, incluindo Cannes e Veneza.

Bastidores de “Tico-tico no fubá”.


Ingressos muito baratos e que não garantiam um retorno desejado, má administração e gastos exorbitantes foram fundamentais para o declínio da Vera Cruz. O empreendedorismo dos fundadores do estúdio mais parecia uma aventura do que algo realmente mais planejado e com um conhecimento prévio da estrutura de mercado. Outro fator crucial foram os americanos. Com o Brasil sendo um dos melhores mercados mundiais para um filme de Hollywood, a existência de um cinema sólido brasileiro, não seria nada bom para os americanos.

A decadência da Vera Cruz já havia se iniciado quando em 1953 é lançado “O Cangaceiro” de Lima Barreto. O maior trunfo da companhia foi o vencedor no Festival de Cannes, na França. Com uma temática brasileira, o filme foi um tremendo sucesso, aqui e no exterior, além de ter sido a grande chance para a Vera cruz se livrar da falência. Porém, a bilheteria estrangeira, paga em dólares, em vez de ajudar a saldar as dívidas da Vera Cruz, ficou totalmente nas mãos de grandes empresas americanas, como a Columbia Pictures, que tinha os direitos de distribuição dos filmes fora do Brasil. A arrecadação brasileira do longa serviu para pagar um pouco mais da metade dos custos de produção. Sendo assim, a companhia se enterrou mais ainda em dívidas.

Cena do filme “O cangaceiro”.

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz encerrou suas atividades em 1954. Com um tempo de vida relativamente curto, a produção dos seus dezoito filmes e alguns documentários formou uma geração de cineastas e profissionais de cinema que não existia antes. A qualidade técnica e artística de seus filmes marcou uma época e mostrou que o cinema brasileiro tinha sim potência e poderia ter mudado a história do cinema brasileiro de forma significativa.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

100% brasileiro: Atlântida e as chanchadas

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo

A chanchada foi um gênero cinematográfico de ampla aceitação popular e que definiu muito bem o cinema brasileiro das décadas de 30, 40 e 50. Com uma produção que se concentrava principalmente no Rio de Janeiro, as chanchadas conseguiram seu espaço em um momento em que as produções hollywoodianas já dominavam o país.

Oscarito e Grande Otelo: um dos grandes astros das chanchadas

A crítica por outro lado, torcia o nariz para o gênero, saindo justamente desse desdém o termo “chanchada”, cuja definição etimológica do italiano “cianciata”, significa discurso sem sentido. O gênero sempre incomodou a elite que não aceitava a retratação do espírito brasileiro na forma como aparecia nos filmes. Os paulistanos nunca aceitaram o “jeito carioca” e a “malandragem” de seus personagens e o fato de “tudo terminar em samba”. Por outro lado, sua popularidade e aceitação podem ser encontradas em seu humor mais ingênuo, que conseguia encantar crianças e no seu humor mais malicioso, que divertia os adultos. Os interlúdios românticos e musicais fechavam tudo como um grande entretenimento para a família.

A dupla Grande Otelo e Oscarito foi essencial para as chanchadas e entre os galãs se destacava Anselmo Duarte (1920-2009) e Cyll Farney (1925-2003). Como vilão, José Lewgoy (1920-2003) deu vida a diversos personagens malvados, enquanto que a mocinha ingênua ficava por conta da atriz Eliana (1926-90). 

Anselmo Duarte e Eliana em cena de “Aviso aos navegantes” (1950)

A chanchada foi vinculada ao cinema sonoro, uma vez que a música (na maioria carnavalesca) é o elemento essencial para o gênero, embora houvessem algumas exceções. O Gênero aparece no cruzamento de registros como: musical hollywoodiano, teatro de revista, vaudevile teatral parisiense e da commedia dell’arte. Seu esquema de narrativa inspirado na commedia dell’arte, por exemplo, encontra a devida estrutura:

- Mocinho e mocinha se metem em apuros;
- Cômico tenta proteger os dois;
- Vilão leva vantagem;
- Vilão perde vantagem e é vencido;

Já considerada um patrimônio nacional, mesmo com uma origem negativa, as chanchadas acabaram perdendo sua preciosidade rococó. A onda de filmes eróticos que invadiu o cinema na década de 70, ganhou o nome de pornochanchada, relativo aos filmes eróticos que também (para o bem ou para o mal) são genuinamente brasileiros.

Não se pode falar de Chanchada, sem citar a Atlântida, produtora fundada pelos irmãos José Carlos Burle e Paulo Burle, juntamente com Moacyr Fenelon em 1941 no Rio de Janeiro. No início o estúdio produzia filmes com pretensões artísticas, como “Moleque Tião” (José Carlos Burle, 1943) e “É Proibido Sonhar” (Moacyr Fenelon, 1943). Em “Também somos irmãos” (José Carlos Burle, 1949), um viúvo quinquagenário que não pode ter filhos, adota quatro crianças: duas brancas e duas negras. Se na infância tudo parecia bem, no decorrer do tempo as coisas mudaram drasticamente. As limitações aos negros vão se acentuando ao ponto de se transformarem em graves humilhações.

Cena do filme: “Também somos irmãos” (1949)
De maneira direta ao mostrar um racismo não velado e com uma história simples que não se passa longe das periferias, “Também somos irmãos” incomodou. Os brancos de sentiram desconfortáveis e atingidos com o discurso (a realidade às vezes pode chocar) do filme enquanto os negros ainda não eram politizados o suficiente para alcançarem a mensagem da obra. O resultado foi o fracasso do filme. A Atlântida que sonhava com adaptações literárias resolveu ir para um lugar mais seguro e rentável com a chanchadas. “Tristezas não pagam dívidas” (Ruy Costa e J. C. Burle, 1944) traz as lições de alegria de viver tropical e respostas veladas aos problemas materiais da companhia.

O diretor Watson Macedo foi um dos mestres do gênero. Foi ele o grande responsável pela união da grande dupla Oscarito e Grande Otelo, garantindo assim na Atlântida o incomparável reinado das chanchadas ligadas aos cálculos de rentabilidade do distribuidor Severiano Ribeiro, cujo grupo era dono das principais salas de cinema do Brasil. Ribeiro detinha quase que a totalidade das ações da companhia e garantia o lançamento do filme produzido, rentabilizando a excepcional força cômica da dupla.

Com mais de vinte e oito produções realizadas, a Atlântida, como tantos outros estúdios brasileiros daquela época, também sofreu com um incêndio que danificou o equipamento e consumiu seus arquivos. O estúdio durou vinte anos no país e seu último filme foi “Os apavorados” (Ismar Porto, 1962).

A Atlântida dominou em duração e quantidade companhias como a Brasil Vita Filmes, Sonofilms e as recém-chegadas Pan-American e Régia Filmes, no Rio de janeiro. Além da queda da qualidade, do gosto de público que é normal que se renove a cada geração, o estúdio também foi enfraquecido com disputas internas que fez com que diretores resolvessem filmar por conta própria seus próprios filmes, seja melodramas ou chanchadas.  


Independente do gosto pessoal e de questionarmos a qualidade dos filmes no sentido de um conteúdo voltado mais para a reflexão, não podemos negar a participação da Atlântida na história do cinema brasileiro. É fato que as chanchadas tinham um alcance de seu público já que o entendia e retratava muito dos costumes brasileiros, criando assim uma identidade só nossa nos filmes que foram lançados.


Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...