segunda-feira, 5 de junho de 2017

Grave

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos

Imagine um filme sobre as inseguranças e pressões de uma adolescente que acaba de começar a faculdade. Até aí tudo bem, mas como esse assunto seria abordado em um filme de terror que também fala de canibalismo. É isso o que Julia Ducournau retrata em “Grave” (2016), seu primeiro longa-metragem. 


Vencedor de dez prêmios até o momento, o longa é um dos filmes de terror de 2017 que mais tem chamado a atenção do público e da crítica, principalmente pelos relatos de espectadores que teriam passado mal durante a exibição do longa. Independente de notícias e até entrevistadores que estão mais preocupados em falar sobre o quão chocante o filme pode ser (embora seja compreensível que cada pessoa reaja de uma forma), “Grave” explora de forma eficaz e com um forte visual, as descobertas de Justine (Garance Marillier), uma jovem vegetariana que acaba de entrar na faculdade de veterinária. Após uma espécie de ritual realizado pelos veteranos para receber (ou humilhar) os calouros, Justine passa a sentir um impulso que a faz desejar por carne, seja ela crua, cozida, de animal, ou...humana. 


Da mesma forma que “Mate-me, por favor” (você pode ler a análise do filme aqui: http://canalsimulacro.blogspot.com.br/2017/03/mate-me-por-favor.html. Contém Spoiles!) trouxe o horror nas angústias da protagonista, o mesmo acontece em “Grave”. Aqui as reações da personagem podem ser entendidas como metáforas para suas descobertas e diversos distúrbios psicológicos tão comuns em uma jovem insegura e que de alguma forma, quer se encaixar e ser aceita por todos enquanto lida com exigências e pressões.

Valentine sofre praticamente uma enxurrada de descobertas que parecem forçá-la a um amadurecimento em tão pouco tempo. A escolha da faculdade como local onde ocorre tudo isso, foi uma escolha bem interessante. Em um dos diversos trotes que ocorrem na faculdade, os calouros precisam engatinhar, o que pode facilmente remeter a ideia do engatinhar de uma criança que depois irá aprender a andar sozinha. O ato se encerra quando os alunos chegam a uma festa de boas-vindas, agora podendo ficar em pé e se divertirem. 


Para Justine o engatinhar tem mais de um significado. Ele representa um ato meio animalesco e primitivo, levando em conta a descoberta que se dará pela garota em comer carne. Na festa, ela se sente completamente perdida enquanto procura por Alexia (Ella Rumpf), sua irmã mais velha, já veterana na faculdade.

Durante as aulas Justine observa um cavalo sendo anestesiado, animais mortos sendo estudados ou dentro de potes de vidro para se manterem conservados. Esses símbolos casam muito bem tanto com o mórbido, a ideia da presa fácil, assim como parecem representar a vulnerabilidade de Justine diante de sua insegurança, que a torna naquele momento um “animal” acuado.


Com tantas exigências e hostilidade vindas até do próprio professor, começam os atos da personagem como forma de canalizar toda essa situação desconfortável. A tricofagia (transtorno comportamental na qual a pessoa transtornada passa a engolir os próprios cabelos e até de outra pessoa), é retratada aqui em uma cena agoniante e repulsiva. São nesses momentos que o gênero do horror mostra sua maestria ao maximizar algo que por si só já é aflitivo.

Mas mais visceral, é claro, está na descoberta da protagonista em comer carne. Essa descoberta é sem dúvidas a mais importante para o amadurecimento da personagem. O que no primeiro momento pode parecer algo feito apenas para chocar ou causar repulsa, ainda mais pelo fato do filme ser de terror, traz um significado que vai mais além do visual: uma descoberta de instintos que Justine sabe que se não controlados, podem fazer mal às pessoas. Sua vontade de comer carne vai aos poucos extrapolando as fronteiras do permissível quando ela passa a olhar para Adrien (Rabah Nait Oufella), seu colega de quarto, de uma forma diferente. Aqui esse olhar representa tanto uma afloração da sexualidade, já que a personagem ainda não teve nenhuma relação sexual, como o desejo pela carne do colega.





Justine então tem a tarefa de usar o racional para que nada saia do controle. O canibalismo aqui é retratado como algo que não pode ser negado, pois faz parte de Justine, ao mesmo tempo em que deve ser usado o bom senso, culminando numa forma excêntrica em como o filme aborda a importância do autoconhecimento como forma de evoluirmos como pessoa.



Além disso, a relação entre Justine e Alexia também é retratada no filme. A relação das duas irmãs é responsável pela exploração rica das personagens, que tantas vezes é deixado de lado nos filmes de terror. A relação que está entre o amor e o ódio, além de muita competição entre ambas, mostra um amor incondicional entre elas que está acima de qualquer desavença. Até mesmo em uma briga entre Justine e Alexia, o trabalho corporal das duas atrizes as fazem parecer (literalmente) dois animais selvagens, marcando mais uma vez o animalesco e o visceral tão presentes no longa.



“Grave” é sem dúvidas um dos melhores filmes de terror do ano, pois consegue chocar sem deixar de lado uma boa construção de personagens, que através de diversos aspectos psicológicos e comportamentais, consegue criar uma narrativa sólida e cheia de interpretações. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...