sábado, 13 de maio de 2017

Marcado na Mente

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos

Desconhecido do grande público, “Marcado na Mente” é um grande achado do cinema independente. Dirigido pelo canadense Guy Maddin, o longa tem uma forte influência do cinema mudo e do expressionismo alemão pelo fato da produção fazer uso de intertítulos (embora haja uma narradora em alguns momentos) e por ser em preto e branco, mas também pelo uso inteligente da luz na fotografia para a criação de sombras.


Conhecido como o “David Lynch Canadense”, Guy Maddin se formou em economia pela Universidade de Winnipeg, onde trabalhou como caixa de banco e até mesmo como pintor de casas. Fez amizade com o cineasta John Paizs, que passava finais de semana (junto com Maddin) na casa do amigo Steve Snyder, assistindo horas de filmes em películas de 16 milímetros.



Após uma participação junto com seu amigo, Greg Klymkiw, em um programa de TV no qual Maddin interpreta um personagem chamado "Concerned Citizen Stan", a criatividade de Maddin começou a aflorar. Na mesma época, Steve Snyder (que lecionava cinema na faculdade), após uma exibição de curtas, disse para Maddin que ele também poderia fazer um filme. E assim, Maddin finalmente decidiu que era hora de escrever e dirigir seus próprios filmes.

Misturando elementos fantásticos que lembram os que foram criados por George Méliès e imagens surreais que parecem ter saído de um sonho, Guy Maddin consegue criar um mundo com estilo próprio em seus filmes. Como tema, o diretor se inspira em lembranças de sua infância.

O filme conta a história de Guy Maddin (e que comecem as referências da vida do cineasta) cuja vida foi marcada pela convivência com a mãe protetora e dominadora e o pai cientista, que trabalha secretamente no porão. Guy retorna à ilha depois de trinta anos para pintar, a pedido de sua mãe, a casa onde viveu durante a infância. Aos poucos as lembranças de sua infância vão trazendo fortes sentimentos que ele já havia esquecido. A partir daí somos levados de volta à infância de Guy quando ainda garoto, passava seus dias numa misteriosa ilha, junto com sua irmã adolescente e seus pais. Seus amigos são crianças abandonadas que viviam no orfanato de sua própria família. Na época, a chegada de Wendy, prima de Guy, para investigar o aparecimento de feridas nas cabeças das crianças, fez com que a falsa harmonia que havia na ilha fosse ameaçada quando alguns segredos da família de Guy foram revelados.



E é nesse universo único, através de um forte visual e de uma edição fragmentada, que o longa cria sua narrativa excêntrica ao flertar com o surrealismo, experimentalismo e elementos do subgênero da ficção científica, o steampunk.  Com relação ao roteiro, uma das coisas mais interessantes é como a relação de Guy com sua mãe é abordada. Mesmo que a mulher tenha criado seus filhos reprimindo-os de todas as formas possíveis, a volta de Guy a ilha acaba sendo como uma forma de ver a mãe pela última vez, mesmo com as atrocidades feitas por ela. O filme frisa constantemente o passado e as lembranças que mesmo não sendo sempre boas, de certa forma parecem impregnar nosso subconsciente, esperando apenas um momento certo (como o retorno ao lugar onde vivemos) para que haja uma manifestação das sensações que um dia fizeram parte de nossas vidas. Guy Maddin (o diretor do filme) parece não ter problema algum em expor sua própria alma através de sabe-se lá quantas referências de situações de sua própria infância que foram usadas no filme.


Como de costume em um filme mudo, os intertítulos aqui parecem adquirir sons na forma como são exibidos. A repetição e rapidez com que eles surgem e desaparecem na tela, substituem sem problemas os sons dos diálogos ditos em voz alta pelos personagens. Mesmo usando intertítulo, o cineasta não descarta uma narração em off, feita por Isabella Rossellini, que com uma voz marcante, acrescenta elementos na narrativa e sentimentos dos personagens que não podem ser ouvidos por nós.

A edição fragmentada traz uma rapidez que evoca justamente o funcionamento dos pensamentos. Por diversas vezes rápida e com planos bem curtos, é como se estivéssemos realmente na mente de Guy que passa a se lembrar de momentos de sua juventude quando morava na ilha com seus pais e irmã.


O diretor, mesmo homenageando o cinema mudo, ao mesmo tempo não deixa de acrescentar algo contemporâneo. A fotografia, mesmo em preto e branco, não costuma usar uma câmera estática, muito comum nos filmes mudos. Em algumas cenas ela se mantém fluída ao passear por cenários e personagens. As sombras usadas com tanta frequência no expressionismo alemão, aqui também ganham caráter de obscuridade, principalmente pelos segredos da família e por situações desagradáveis que ocorrem na casa do garoto. A música clássica, usada durante todo o filme, por vezes é incômoda para enfatizar a desordem de ideias, pensamentos e lembranças de Guy. 

 

Com esse cinema cheio de referência, mas ao mesmo tempo único e peculiar, Guy Maddin cria uma assinatura cheia de autobiografia, mas também cheia de estilo que parecem ter saído de um consultório de um psicanalista. 

     


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