quinta-feira, 2 de março de 2017

Moonlight: Sob a Luz do Luar

Análise do filme Moonlight: Sob a Luz do Luar

Por: Tarcísio Paulo dos Santos Araújo 


A edição do Oscar 2017, sem dúvidas, ficou na história. Ninguém nunca havia errado o nome de um vencedor. “La La Land” levou seis prêmios no último domingo (dia 26), além de ser eleito como melhor filme de 2017. Momento esse que durou alguns minutos. Com “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, sendo o verdadeiro vencedor de melhor filme, podemos dizer que tivemos uma premiação quase justa (“Star Trek” deveria ter ganho por melhor maquiagem, assim como Isabelle Huppert como melhor atriz, pelo filme “Elle”).

Memes e brincadeiras à parte, ainda é cedo para sabermos se “Moonlight” irá se manter atual com o passar dos anos, mas podemos ter certeza de que no presente o longa é extremamente necessário ao retratar a comunidade negra longe de estereótipos e através da humanidade que dá aos seus personagens que somado ao prêmio, dará extrema visibilidade à uma comunidade tão marginalizada.

Mas não pense você, que ainda não assistiu ao filme, que ele traz na sua forma uma narrativa carregada de vitimismos ou até mesmo panfletária. Tudo foi realizado com muita sensibilidade e poesia, tocando em assuntos como homossexualidade, bullying, autodescoberta, a importância da afetividade e da conexão com o outro e a tentativa de se encontrar no mundo, garantindo assim um desabafo universal capaz de criar fácil empatia com o público. 


O longa se destaca por sempre buscar a humanidade e a beleza em meio a um ambiente violento e que oferece poucas chances ao personagem principal. Dividido nas três fases da vida de Chiron (Alex Hibbert), conhecido por todos como “Little”, o filme conta a história desse menino que mora em um bairro periférico de Miami. Nessa primeira fase somos primeiramente apresentados a Juan (Mahershala Ali), que também foi premiado, ganhando o Oscar de melhor ator coadjuvante. O ator interpreta um traficante de craque que terá total importância na vida de Chiron, que logo em sua primeira cena, é visto por nós correndo dos colegas de classe que estão sempre o provocando.

O encontro do menino com Juan acontece em uma casa abandonada onde o garoto se escondeu para não apanhar dos colegas. Acuado em um canto, Juan tira um pedaço da madeira que cobria a janela da casa, deixando a luz entrar no local. Elementos visuais como esse, fazem total diferença para a narrativa ao reforçar aspectos da relação entre os personagens. 




Acuado e sempre falando pouco, Chiron costuma andar de cabeça baixa, trazendo na sua expressão corporal uma baixa autoestima gerada pela violência sofrida na escola. Essa característica do personagem parece refletir também na fotografia, que em  alguns momentos, é como se a câmera o evitasse, respeitando assim seu espaço.



A partir desse encontro, Juan terá um papel muito importante na vida do garoto, que resultará na tentativa de resgatar sua identidade, começando por chamar o garoto pelo nome. A relação de ambos traz diálogos de extrema importância no que diz respeito a consciência negra e acima de tudo, na base de uma construção de identidade do menino. A confiança fica estabelecida em uma linda cena onde Juan ensina Chiron a nadar.    


Já a mãe do menino, Paula (Naomie Harris), é usuária de drogas e faz programas dentro da própria casa. A personagem costuma abusar emocionalmente o garoto, principalmente quando está sob efeito das drogas. Essa primeira fase da vida do protagonista, bem como a segunda, encerra com momentos de rupturas. Em uma cena em que Paula grita com Chiron, a personagem grita enquanto ao fundo vemos uma iluminação arroxeada, vinda do quarto da personagem. No cinema é comum a ligação da cor roxa com a morte. Se aqui a morte não ocorre de forma física, ela acontece de forma simbólica, já que parece marcar o fim de uma esperança de que Chiron pudesse ter ainda alguma relação saudável com sua mãe, que vai se entregar ao vício com o passar dos anos. O mesmo rompimento acontecerá entre Chiron e Juan, quando o garoto descobre que o único homem que ele conheceu e que sabia que poderia confiar, vende drogas. A cena é uma das mais emocionantes e acredito que teve um grande peso para que Mahershala Ali ganhasse o prêmio da academia. 





Chegando na segunda fase, Chiron (interpretado agora por Ashton Sanders) agora é um adolescente que continua a sofrer bullying na escola. O menino se esforça para manter a confiança, porém, o meio em que vive continua não facilitando para que sua vida seja menos difícil. Seu amigo Kevin (Jharrel Jerome), é agora o responsável pela descoberta de sua sexualidade, uma vez que Chiron nutre sentimentos pelo rapaz. 

Já a relação com sua mãe, é marcada pelo vício da personagem que está mais evoluído do que antes. Agora adolescente, tanto Chiron quanto nós, encaramos o vício de Paula de forma mais direta e explícita. Em uma cena de abstinência em que Paula precisa de dinheiro para comprar drogas, a mulher aparece desorientada. A câmera subjetiva de Chiron e de Paula, frisa bem o estado de mãe e filho. Enquanto no primeiro, temos uma mulher alterada e precisando se drogar, no segundo temos um filho ciente do que acontece com sua mãe e que sabe que não há muito o que fazer.




Aos poucos a fotografia vai ganhando luzes mais quentes, provenientes dos postes das ruas da cidade. Essas cores estão presentes em uma das cenas mais significativas para o personagem que é quando ele beija Kevin e um contato mais íntimo entre os dois personagens acontece. Segundo o próprio diretor, Barry Jenkins, a fotografia do longa não optou por seguir talvez o que seria o mais óbvio, como “banhar” os personagens somente em luzes mais frias ou sombras constantes. Jenkins cresceu em bairros periféricos assim como o protagonista, mas disse se lembrar sempre da beleza das luzes das cidades. Como já dito no início, “Moonlight” retrata uma dura realidade, mas sem nunca deixar que seu protagonista perca sua sensibilidade e essência, características essas que parecem refletir na fotografia, que também não deixa de retratar a melancolia das vidas de seus personagens, fazendo uso de uma fotografia mais azulada em determinados momentos durante todo o filme.


A ruptura acontece mais uma vez no final da segunda fase do protagonista. Dessa vez o bullying é o grande responsável por isso. Como se não bastasse, o grande causador de tudo é justamente Kevin, que por medo de ficar mal com os colegas, aceita dar uma surra em Chiron. Fica claro como as pessoas que parecem dar esperança para que o protagonista possa mudar sua realidade, são as mesmas que acabam lhe fazendo mal.

E finalmente chegamos na terceira fase. Chiron, agora conhecido como “Black” (interpretado na fase adulta por Trevante Rhodes), vive em Atlanta. Depois de ficar um tempo na prisão juvenil, foi ajudado por um traficante e agora tem uma vida muito semelhante à de Juan. Mais musculoso e respeitado por todos, ele usa uma espécie de dentadura de ouro por cima de seus dentes reais e anda em seu próprio carro. Se o filme parece nos fazer pensar, mesmo que por um segundo, que a narrativa irá cair em algum estereótipo em que veremos personagens negros traficando drogas, a terceira fase de “Moonlight” nos mostra mais ainda porque o filme foi merecedor de ganhar na categoria de melhor filme do Oscar desse ano. 




A partir daqui, iremos acompanhar a desconstrução da nova imagem de Chiron, que irá revelar mais uma vez sua essência, sensibilidade e humanidade, independentemente do que a vida o levou. Um telefonema de Kevin, que agora trabalha em um restaurante, e um convite para jantar, trará à tona todo o seu passado e a possibilidade de um futuro melhor para o protagonista. Essa fase é também marcada como um momento de se fazer as pazes com o passado. Antes de ir se encontrar com o amigo, Chiron visita a mãe em uma clínica de reabilitação onde o encontro serve como um pedido de perdão da mãe e a possibilidade de um novo recomeço. 




No encontro entre Kevin e Chiron, é possível percebermos mais uma vez o poder das luzes da cidade e do próprio restaurante que reforçam através das cores quentes, a relação do protagonista com seu amigo, que também está disposto a pedir desculpas pelo o que fez. O azul também não é esquecido, ao aparecer nas luzes da cozinha e da geladeira, e até pela janela do restaurante. 



Ainda no que diz respeito a uma espécie de armadura usada pelo personagem, Chiron leva um tempo para sair do carro e quando o faz, está usando os dentes falsos de ouro e resolve vestir uma camiseta por cima da regata que usava. Temos mais uma vez o visual reforçando questões emocionais do personagem. Voltando ao restaurante é interessante notarmos outra questão: a comida. O ato de oferecer comida é algo bem forte em “Moonlight”, já que nas três fases da vida de Chiron, alguém oferece uma refeição a ele, simbolizando esse afeto e conexão dele com esses personagens. Agora com Kevin, a preparação do jantar e a montagem do prato feito pelo próprio, ganha destaque e até música, fortalecendo sua importância na narrativa. Já Chiron, retira os dentes de ouro para poder jantar, adicionando assim mais um elemento para esse “desarmamento” do personagem, rumo a sua sensibilidade e humanização.




No final, no apartamento de Kevin, Chiron se abre e revela algo que resume todo o filme: a jornada desse personagem em busca de afeto e de conexão com as pessoas. Independentemente do que acontecerá depois, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” traz muito além da narrativa, a contemplação da esperança no outro.

Em tempos de frases como: “Tá com dó? Leva pra casa!”, o filme busca trazer uma humanização para estereótipos que podem cair facilmente em julgamentos sem nem ao menos procurarmos entender o contexto de vida do outro.








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