quarta-feira, 30 de abril de 2025

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga





 

O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso aos pensamentos de uma mulher que procura desesperadamente seu amante. O tom existencialista já aparece nas elucubrações da personagem enquanto a câmera passeia pelos transeuntes, vitrines de lojas de departamento e letreiros de neon. A personagem se sente solitária e cansada dos papeis sociais de mãe e esposa atribuídos a ela, mostrando um desejo de se libertar dessas convenções que a oprimem. Desse modo, o existencialismo é costurado com as pretensões eróticas do filme, parecendo uma versão pervertida de São Paulo S.A. Enquanto o filme de Person mostra as angústias de uma personagem de classe média que colhe de sua ascensão social, o vazio existencial - em meio a sociedade de consumo que despontava na sociedade brasileira - em Vidas nuas é a mesma classe média que protagoniza angústias eróticas e existenciais na metrópole paulista. E é no protagonismo da metrópole noturna que essas personagens buscam dar vazão à sua “imoralidade”. Considerado por alguns o filme que originou o ciclo das pornochanchadas, Vidas nuas foi gravado em 1962 e teria um corte final mais conservador. No entanto, quando a produtora inicial do projeto entra em dificuldades financeiras, sua estreia é constantemente adiada até 1967, quando foram incluídas as cenas de strip-tease, tirando o aspecto pretensamente conservador do filme.



Desse modo, Vidas nuas parece ser uma típica produção de transição, pois carrega características de certo cinema pregresso ao mesmo tempo que anuncia um novo ciclo de produção. As características do cinema pregresso se encontram na abordagem existencialista de classe média que lembram o cinema de Hugo Walter Khouri e o já citado São Paulo S.A de Person. Por outro lado, o erotismo evidencia a guinada que o cinema brasileiro daria em explorar comercialmente o erotismo, como seria característica das pornochanchadas. Esse lugar de transição transforma Vidas nuas em um filme peculiar em que o erótico, longe de ser apenas um elemento chamativo para assegurar o público, transforma-se em elemento provocativo e fundamental das discussões existenciais no filme. Assim, a encenação do erotismo se dá de forma sofisticada, atrelada as trajetórias das personagens.



 

O filme começa apresentando o núcleo familiar disfuncional, vivido por Antônio, um acadêmico desiludido, Sônia, sua esposa milionária que o traí e Mônica, a filha desta, estudante universitária que é apaixonada pelo padrasto. O conflito aqui é filmado poeticamente, inserindo sutilezas, simbolismos e enquadramentos de câmera que fazem o filme exceder o caráter de mera fita erótica. Como na cena em que o padrasto, sabendo que o amante de sua esposa está prestes a chegar, saí para perambular pela cidade. A enteada por sua vez, se tranca em seu quarto e enquanto a mãe tem uma noite de amor com seu amante, a jovem é acossada pela tensão sexual ao mesmo tempo que demonstra apego aos seus bonecos de pelúcia. É como se a jovem não estivesse pronta para aceder à vida adulta pois foi acostumada a encarar a sexualidade como imoralidade como afirma o intelectual já no final do filme: “Sônia fez com que você tivesse outra ideia ao respeito do amor”. A jovem universitária vacila em relação aos seus desejos, pois percebe que a vivência do erotismo e do amor é imersa em contradições. Ela confessa sentir o amor “só de longe.” Daí o aspecto existencial do filme – nem sempre muito claro, é verdade – em encarar a sexualidade como instância de escolhas e não de um código moral socialmente estabelecido. A frase que sintetiza essa ideia é dita pela personagem da mãe milionária: “Abomino o instinto materno e o que dele resulta” diz ela. Essa mãe não se identifica com seu papel e prefere ceder aos seus impulsos eróticos e se engajar numa relação com um homem mais jovem, que ela sabe que não está emocionalmente disponível. O conflito de Sônia também é abordado com soluções visuais sofisticadas como o relógio, que sempre a acompanha esperando a ligação do amante.



O intelectual, por sua vez, tem nas cenas de strip-tease evidenciada sua posição na narrativa. Seu comportamento voyeurístico o coloca como alguém distante dos acontecimentos, tal como se distancia emocionalmente das traições da esposa. Pode-se supor se o filme sugere algum prazer dele com a situação, no entanto, o que fica claro mesmo é que ele projeta nas sessões de strip-tease seu desejo pela enteada.

Mais adiante no filme, a narrativa se expande para explorar a vida de Mário, outrora amante de Sônia, e outra moça com quem ele está saindo. Juntos, vão até o litoral. A moça estuda no mesmo colégio que Mônica. O rapaz tece comentários críticos aquele grupo social que posicionam a crítica do próprio filme. “Vocês todas pertencem a mesma sociedade, frequentam a mesma universidade e nenhuma sabe exatamente o que deseja da vida. Enchem a vida de tédio, só isso.” Vaticina Mário. Mário como personagem outsider posiciona o olhar crítico dirigido aquela classe social específica, fazendo o comentário classista que também aparece na obra. O tédio e a suposta imoralidade aparecem aqui como desvios de classe, não no sentido moralizante, mas na eterna e vacilante alienação que a classe média se deixa enredar. Alienação de classe que resulta em alienação existencial, em um torpor envolvido em finas camadas de tédio. Por outro lado, Mário sustenta sua postura alienante em relação ao contexto social que o circunda. Admite não se interessar pelas notícias. Quer mesmo falar de sexo e prazer, que para ele, são a mesma coisa. A atitude de Mário confronta a do intelectual que, voyeuristicamente, se recusa a fazer parte de qualquer ato prazeroso.        

A seguir, já quase na conclusão da narrativa, Mônica e o intelectual tem um diálogo que completa a crítica de Mário. Angustiada, Mônica pergunta ao professor qual seria a finalidade da vida humana no que ele responde: “Somos o que somos. Uma classe que chega ao seu fim. Que se destrói e está sendo destruída. Novos tempos estão chegando. (...)Temos que escolher e não sabemos.” Esse autodiagnóstico de classe revela a má consciência em saber-se inútil frente ao mundo em transformação. O enquadramento não deixa escapar o relógio, logo atrás do acadêmico, que comunica de forma visual esse tempo histórico que acossa a burguesia e intensifica sua angústia. No entanto, se nos filmes do Cinema Novo, particularmente produzidos posteriormente ao golpe de 64, a má consciência da classe média retrata personagens progressistas em Vidas nuas, as personagens parecem não se importar com os problemas sociais do país, sabendo apenas o papel decadente que desempenham em uma sociedade de classes.



O filme termina com Antônio e Mônica assumindo sua relação e deixando a cidade de São Paulo para um destino desconhecido à audiência. Esse desfecho tem um caráter marcadamente escapista que indica o objetivo comercial do filme. Desse modo, Vidas Nuas é um filme erótico embalado num plástico cinza do tédio existencial de classe média.



quarta-feira, 2 de abril de 2025

PILULA CRÍTICA 1# - BABYGIRL(Halina Reijn, 2024)





Vendido como thriller erótico, Babygirl é mais um ensaio sobre a permanência da repressão sexual sobre as mulheres, mesmo que agora, elas ocupem espaços de poder. Os primeiros planos expressam essa repressão, mostrando as linhas retas dos produtos que a empresa de Romy fabrica e em todo momento, as personagens movimentam-se num espaço corporativo e asséptico. Essa encenação evidencia o conflito da personagem de Nicole Kidman, que deve ser um suposto exemplo de empoderamento para outras mulheres. Esse exemplo não pode ser "contaminado" com qualquer tipo de perversão ou fetiche sexual. Dessa forma, o filme é eficiente em problematizar o status contratual de qualquer relação em um ordenamento social neoliberal, bem como em ressaltar a ironia de uma ideologia progressista, que acaba instaurando novos padrões de moralidade a serem seguidos. No entanto, o filme destoa sua trilha sonora, bem estilizada, com a encenação mais sóbria. Só existe um plano, no final do filme, em que o desejo de Romy toma uma forma plástica e onírica que dá conta, portanto, da intensidade e importância de realizá-lo. Salvo essa contradição, o filme dá conta em expressar esse novo código moralizante, que termina melancolicamente, com sua personagem sublimando seus desejos. Portanto, o filme afirma que, a despeito da representatividade feminina e sua paulatina presença em espaços de poder, ao desejo feminino ainda é negado sua plena realização


LUCAS SCHIMIDT



sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Zé do Caixão

 


E não podemos falar em cinema
trash sem falar de Zé do Caixão. Nascido na Vila Mariana em 13 de março de 1931, José Mojica Marins começa a ter contato com o cinema já na infância, de acordo com a Enciclopédia do Cinema Brasileiro de Fernão Pessoa Ramos. Fascinado também pelo sobrenatural, Marins via até mesmo em seu maior ídolo, Charlie Chaplin, o terror. “[...[ eu via o terror por trás por trás daquelas mímicas, os olhos desse homem eram de uma tristeza infinita”.

Aos doze anos de idade ganha sua primeira câmera, uma de 8mm. Aos vinte e dois anos, cria sua primeira empresa: Companhia Cinematográfica Atlas e passa a realizar pequenos curtas metragens. Depois de realizar alguns filmes que despertam interesse, mas não conseguem alcançar um público considerável, vem a reviravolta. Durante o início da produção de mais um filme, Marins adoece e a produção do filme precisa ser interrompida. Um pesadelo com um homem vestido de preto e que puxa Mojica até um cemitério onde se encontra um túmulo com seu nome e data de nascimento, desperta o jovem cineasta para a criação de seu personagem icônico: Zé do Caixão.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), primeiro grande filme de Zé do Caixão, contou com o apoio da família de Zé que precisou vender o carro. O grande sucesso do filme dividiu a crítica que considerou o cineasta genial ou ridículo. Mesmo com o sucesso financeiro, Mojica havia vendido os direitos do filme antes da estréia. Tendo que começar do zero financeiramente, Mojica já contava com o reconhecimento do público e dos cineastas Rogério Sganzerla, Carlos Reicherbach, Jairo Ferreira e Maurice Capovilla, que fizeram parte do Cinema Marginal paulista.

Antes de continuar a trajetória de Zé do Caixão, é importante falar um pouco sobre o cinema marginal e sua importância, já que cinema trash tem muito a ver com a vontade de fazer cinema mesmo que com poucos recursos.

Como explica no livro Enciclopédia do Cinema Brasileiro, o cinema marginal nunca possuiu uma coesão interna, diferente do Cinema Novo. Surgindo no final dos anos 60, o cinema marginal não sobreviveu ao início dos anos 70. Dois elementos estruturais ocupam espaço central dentro do cinema marginal: a ideologia da contracultura e a abertura para um diálogo lúdico e intertextual com o classicismo narrativo e o filme de gênero hollywoodiano. Há abertura também para as chanchadas, gênero que não conseguiu dialogar com o cinema novo. Dentro do recorte intertextual afirmativo com o universo da sociedade de consumo e da comunicação de massa, O Bandido da Luz Vermelha se torna o filme-farol do Cinema Marginal. Alguns núcleos de diretores com uma produção mais coesa e um relacionamento mais próximo, formam um grupo chamado de “marginal cafajeste”. Nesse grupo prezava a produção de filmes de forma ágil e barata, através do filão erótico. Na proximidade com o filme de consumo, há um pequeno retorno reflexivo, autoconsciente e irônico sobre os procedimentos narrativos e estilísticos utilizados no filme. Esse estilo abriu as portas para o cinema erótico da Boca do Lixo. 

Ainda de acordo com a Enciclopédia do cinema brasileiro, dentro desse núcleo chamado de “marginal cafajeste”, encontra-se espaço para a apreciação estética no que na década de 90 passou a ser chamado de trash. Aí é quando entra a valorização do cinema do Mojica, o diálogo com o cinema pornográfico e o filme de terror B que caracterizam esse procedimento estético.  

Zé do Caixão retorna em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) que alcança sucesso imediato em todo país. O sucesso coloca Mojica agora na televisão, onde é convidado para comandar um programa na recém inaugurada TV Bandeirantes. No programa Além, Muito Além do Além de 1967, eram apresentados episódios de histórias de terror às sextas-feiras. Os atores eram muitas vezes os próprios alunos de Mojica, que estudavam em sua escola de interpretação. O programa chegou a dar bons índices de audiência para a nova emissora, embora muitos criticassem o tom das histórias.

Na Tupi, Mojica estreou O Estranho Mundo de Zé do Caixão, com um orçamento mais generoso e a participação de atores consagrados (como Lima Duarte e Irene Ravache) e direção de Antônio Abujamra. No entanto, o sucesso popular já não foi mais o mesmo.

Voltando para o cinema, Mojica encontra dificuldades com a censura que proíbe seus filmes e os libera com a condição de que sejam feitos cortes de até vinte minutos. O Despertar da Besta (1970), filme mais violento do cineasta, é interditado por dezesseis anos. Com tantas proibições, Mojica se vê sem os produtores e começa a trabalhar como ator e a dirigir filmes que não faziam seu estilo, mas que garantia seu sustento.


Com o sucesso de
O Exorcista (1973) a produtora CINEDRISTRI propõe a Mojica uma versão brasileira do filme de terror sucesso na época. Com grande elenco, O Exorcismo Negro é lançado no final de 1974. O sucesso garantiu ao cineasta o sustento durante dois anos. Mais filmes vieram e apesar do reconhecimento de intelectuais e o sucesso de alguns filmes realizados pelo cineasta, o único reconhecimento oficial de sua obra, veio com o filme Delírios de um Anormal (1978) que lhe rendeu a Placa de Prata no XI Festival de Brasília. Falido no início da década de 1980, Mojica realiza curtas, aproveitando a lei da obrigatoriedade dos curtas-metragens.

Começa a rodar filmes de sexo explícito e não consegue retomar seus projetos de filmes que lhe interessavam de verdade. Mojica vira atração no famoso parque Playcenter e apresenta o Cine Trash na Band, como já citado semana passada. Mais uma reviravolta na carreira do cineasta acontece em 1993. O também cineasta André Barcinski, lança treze dos filmes do Zé do Caixão nos EUA, que o coloca em contato com uma distribuidora especializada em produções B. Com 7 mil fitas vendidas em quatro anos, Zé do Caixão ganha reconhecimento no exterior e se torna premiadíssimo. Recebe em 2005 do então presidente Luís Inácio Lula da Silva o prêmio de Honra ao Mérito, por serviços prestados à cultura.


O retorno em grande estilo em 2008 com
Encarnação do Demônio, conta com uma produção caprichada e o retorno de Zé do Caixão. O filme arrebata quase todos os prêmios no I Festival de Paulínia e no Midnight X-Treme, no Festival de Cinema Internacional da Catalunha, na Espanha.

O Estranho Mundo de Zé do Caixão estreia em 2007 e foi até 2013 pelo Canal Brasil. O programa que leva o mesmo nome do filme do cineasta feito em 1968 e do antigo programa da TV Tupi, contava com entrevistas e era dividido em quatro partes: A primeira com uma reportagem, a segunda com duvidas de internautas sobre assuntos paranormais e a terceira com uma entrevista com uma celebridade convidada. Na ultima parte Zé do Caixão lançava sua famosa praga.

Em 2015 o Museu da Imagem e do Som – MIS realizou uma exposição inédita com figurinos, roteiros, objetos cênicos, colagens, trechos de filmes e imagens de bastidores dos filmes do Zé do Caixão.


No mesmo ano, O ator Matheus Nachtergaele interpreta José Mojica Marins na série
Zé do Caixão, no canal Space. A produção é inspirada na biografia Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins escrito por André Barcinski e Ivan Finotti.

Em fevereiro desse ano, José Mojica Marins faleceu em São Paulo aos 83 anos, vítima de uma broncopneumonia. Fazendo parte da história do cinema brasileiro, mais especificamente do terror, que nunca teve seu devido reconhecimento no país, Zé do Caixão fez o que gostava e seu amor pelo cinema vai além do rótulo de filme trash.


À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)

Josefel Zanatas (Zé do Caixão) vive em uma cidade do interior e é temido pelos habitantes mais conservadores. Descrente de tudo, ele é o dono de uma funerária na cidade e quando é contrariado, logo se enfurece e pratica atos violentos contra qualquer um que o enfrente.

Sua esposa, Lenita (Valéria Vasquez), não pode engravidar o que frustra completamente Zé do caixão. Para resolver o problema, ele busca em Terezinha (Magda Mei), mulher de seu amigo Antonio (Nivaldo Lima), a possibilidade de que a mesma carregue seu filho e a continuidade de seu sangue. Custe o que custar.

Se fosse rodado hoje, Zé do Caixão seria o típico “macho escroto” que tem se discutido tanto hoje em dia, dentro dessa atual conscientização de relacionamentos abusivos. Zé do Caixão é um personagem a ser estudado. O mesmo homem sádico que agride mulheres, as estupra, sai dizendo frases machistas e intimida as pessoas, é o mesmo que admira a coragem de um homem que teve a mão dilacerada pelo próprio Zé do Caixão, mas que arca com todos os gastos médicos. Esse mesmo homem sádico também repreende um pai que agredia o filho.

Blasfêmico, o personagem zomba da procissão da Sexta-feira Santa enquanto é visto pela janela saboreando carne vermelha. Independente da polêmica e de sua falta de respeito, ainda dentro de sua contradição, algumas de suas falas acabam nos fazendo refletir sobre o que acreditamos e por que acreditamos naquilo que muitas vezes não podemos ver. O personagem faz questão de deixar claro que nada do além o faz sentir medo, já para ele nada disso existe de fato.

A condição de agente funerário e sua total descrença dão ao personagem um status de todo poderoso como se ele tivesse poderes sobrenaturais. Confesso até que antes de ver o filme eu sempre pensei que o Zé do Caixão fosse dotado de forças do além, mas é justamente o oposto. Mojica criou um personagem com uma figura tão poderosa que os habitantes da cidade que o temem, o veem como um ser sobrenatural. Tudo por conta da sua figura intimidadora.

No longa é forte a retratação do tradicionalismo brasileiro, principalmente das pequenas cidade do interior. Assim como a forte superstição passada de geração para geração. O sobrenatural vem como forma de punir o personagem por todo o mal que ele fez. Isso também parece carregar uma contradição, já que o personagem que apresenta uma ideia questionadora (no sentido religioso e nas crenças populares) é punido justamente por forças aparentemente sobrenaturais.

Para a época em que foi realizado, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, nem seria considerado um filme trash, já que é notável como Mojica era atento aos detalhes. Usando efeitos até bons para época, é possível perceber como o cineasta amava mesmo cinema e sua dedicação a essa forma de arte, ultrapassou qualquer conhecimento que poderia ter sido adquirido em um curso.

 

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Cinema Trash




No livro Enciclopédia dos Monstros, escrito por Gonçalo Júnior em 2008, o autor traz no capítulo sobre monstros do cinema, o subcapítulo Monstros do Lixo. Para Júnior definir o termo trash não é tão fácil.  No entanto algumas características podem ser apontadas nos filmes desse subgênero do terror.

Com criaturas quase sempre inusitadas, um filme trash geralmente conta com uma produção de baixo orçamento, roteiros pouco desenvolvidos, atuações bem amadoras, cenários mal construídos, monstros exagerados e maquiagem mal feita. Os críticos adotam o termo trash justamente pelo conjunto de tudo isso não trazer valor artístico.

Por outro lado, essa ideia de uma falta de qualidade artística não quer dizer que o filme não tenha seu valor. Muitos filmes conseguiram seus fãs ao longo do tempo e se tornaram cultuados mundo a fora. Esses filmes divertem independente de seus problemas técnicos e são abraçados por pessoas que estão cientes de que esses filmes não devem ser levados a sério, mas que nem por isso deixam de divertir e conquistar seu público.

Titio Coffin Souza, citado no livro por Júnior, aponta que as famosas ficções científicas americanas da década de 1950 na época eram levadas a sério tanto pelos realizadores, quanto pelo público. Isso nos faz pensar que esses filmes envelheceram mal com o passar dos anos e ganharam outro status, o de filmes trash.

Já na década de 1970, cita Souza, filmes com cores exageradas, pitadas de sexo e violência começaram a estabelecer o conceito de trash (também conhecido como gore ou splatter). Esses filmes eram feitos dessa forma propositalmente para atrair seu público com situações bizarras que causavam risos.

Diretores como Roger Corman, John Waters (que depois de um tempo parou de seguir a linha do horror), Jesus Franco, Abel Ferrara, Dario Argento e Sam Raimi, são alguns dos grandes nomes desse subgênero.

Vale apontar também como nos EUA os termos “Filmes B”, “Filmes C” e “Filmes Z” são mais empregados do que o termo trash. Atores que estavam esquecidos ou que ainda começavam uma carreira (como  John Wayne e Jack Nicholson), passaram pelas produções de filmes B. Vincent Price que começou sua carreira em produções mais conceituais e respeitadas, hoje é mais lembrado pelos filmes B que se tornaram clássicos do terror. Já atores como Bela Lugosi, Eddie Constantine, Bruce Campbell e Pam Grier, trabalharam em filmes B durante quase toda suas carreiras.

O termo “Filmes C”  nos EUA se dá por conta dos filmes que passavam na TV a cabo (Cable TV), mas também por serem considerados de uma qualidade inferior aos filmes B. A televisão foi sem dúvidas importantíssima para a popularização desses filmes e a maneira como os mesmos são cultuados até hoje. Não é raro encontramos no Youtube vídeos de encontros entre diretores e atores desses filmes com uma legião de fãs.

Na categoria Filmes Z, Ed Wood é o mestre no assunto. Plano 9 do Espaço Sideral é um clássico do trash e consegue ser talvez o filme mais precário em todos os sentidos, mas que tem um público fiel.  Lançado em 1959, o longa é sobre um ataque feito por alienígenas que pretendem conquistar o planeta ressuscitando corpos de um cemitério. Plano 9 do Espaço Sideral é simplesmente considerado o pior filme já feito na história do cinema, segundo muitos historiadores e críticos dos EUA.


Voltando a falar sobre televisão, aqui no Brasil tivemos o
Cine Trash pela Rede Bandeirante, que contava com sessões de filmes de terror trash, e que já contou com a apresentação do ator e cineasta José Mojica Marins, o icônico "Zé do Caixão". O programa foi de 1990 a 1997.  Na lista de filmes que já foram exibidos no programa, há títulos como “Creepshow: Arrepio do Medo” (1982), A Mosca da Cabeça Branca (1958), Maniac (1980), Psycho Cop: Ninguém Está em Segurança (1989), entre outros.

 

O Mistério do Cesto (1982)

Um dos filmes que mais marcam o subgênero trash, é sem dúvidas O Mistério do Cesto (Basket Case, 1982). Também já exibido no Cine Trash, pela Bandeirantes, o longa foi dirigido e escrito por Frank Henenlotter e conta a história de Duane Bradley (Kevin Van Hentenryck), um jovem que chega a Nova Iorque carregando uma grande sexta que está trancada com um cadeado.

Após se hospedar em um hotel barato, percebemos que Duane se comunica com o que está dentro do cesto e até mesmo o alimenta. Na verdade trata-se de seu irmão gêmeo siamês que foi separado dele através de uma cirurgia forçada pelo pai dos irmãos. Duane então busca vingança dos médicos que o operaram enquanto tenta levar sua vida a diante.



O irmão de Duane que vive no cesto é extremamente deformado e tem somente os dois braços. Além disso, ele impede que Duane tenha uma vida normal por conta dos ciúmes excessivos que sente do irmão. Enquanto vão aos poucos se vingando das pessoas que o separaram, Duane conhece Sharon (Terri Susan Smith), recepcionista do médico responsável pela cirurgia dos irmãos.

Filmado em 16mm Henenlotter não teve controle da pós-produção o que deixou o filme meio escuro e convertido em outra proporção de tela. Filmado parte em Manhattan, é possível notar como grande parte dos personagens é visto como pessoas à margem da sociedade. Até mesmo o hotel onde o protagonista se hospeda é de gosto duvidoso. A Nova York vista no filme, é aquela com casas de show de sexo explícito, vendedores de drogas e prostitutas.    

Mas ninguém está mais à margem do que os dois personagens principais. Como no próprio filme trash, temos esses dois irmãos que não podem viver em uma sociedade “normal”.  Duane que tenta ter uma vida comum, mesmo separado fisicamente do irmão, sempre está preso a ele de alguma forma. Vivendo dentro da cesta é impossível não catalogá-lo como o monstro da história, por mais que também o filme equilibre a empatia pela criatura ao mesmo tempo em que sabemos que a ideia de vingança assassinando os médicos esteja errada. 



Como em um bom filme trash, os efeitos especiais da criatura do cesto contaram com um fantoche para dar vida ao irmão de Duane e efeitos em stop motion para dar movimentos no chão, já que não seria possível fazer isso com alguém manipulando o boneco.

Com sucesso de crítica, principalmente nos EUA, O Mistério do Cesto é reconhecido e reconhece-se como um filme trash, bizarro e absurdo. Mas que ao mesmo tempo diverte sem pretensão nenhuma.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Corrente do Mal - Uma alegoria sobre as angustias da adolescência




Nos últimos anos o cinema de horror/terror tem trazido alguns filmes que conseguiram dar um novo fôlego (ou talvez recuperar o fôlego de outros filmes lançados em outras décadas) a esse gênero que pode facilmente cair em clichês. São poucos os filmes que criam uma atmosfera envolvente e tensa, capazes de criar algo diferente mesmo usando elementos já conhecidos do público. O mesmo se pode falar dos temas e a forma de abordá-los. Corrente do Mal (It Follows, 2014), dirigido por David Robert Mitchell, foi sem dúvidas um desses filmes que se tornaram uma grata surpresa dentro do gênero do terror.

O cinema de terror (principalmente os filmes dos anos 1970 e 1980) é conhecido por lidar com a sexualidade de uma forma polêmica. O sexo quase sempre é tratado como algo passível de punição, principalmente com as mulheres, que são as primeiras a caírem nas garras dos serial killers do subgênero slasher. A final girl acaba sendo sempre aquela que não demonstra ter uma vida sexualmente muito ativa (quando não é virgem) e com muitos parceiros.

Corrente do Mal consegue ser um diferencial justamente por incluir questões sexuais de forma inteligente e reflexiva. A sinopse é simples. Jay (Maika Monroe) tem 19 anos e está saindo com Hugh (Jake Weary). Depois de uma transa entre os dois, Jay se vê atormentada e perseguida por uma estranha entidade que toma a forma de qualquer pessoa, conhecida ou não.


A jovem precisa então ter relações sexuais com outra pessoa para poder passar essa espécie de maldição para esse outro individuo, ou ficar fugindo da entidade sempre que ela surgir do nada, seguindo-a. A tarefa não é fácil e pode significar a morte se Jay for desatenta e permitir que a entidade a mate. A garota conta com a ajuda de sua irmã, Kelly (Lili Sepe) e de seus amigos Paul (Keir Gilchris) e Yara (Olivia Luccardi) para se livrar dessa situação.

Em um primeiro momento, quando se assiste ao filme, é fácil cairmos na ideia de que o sexo aqui é mais uma vez usado como algo que mereça uma “punição”, mesmo que no caso do filme, tanto homens quanto mulheres, sejam as vítimas. O caso é que Corrente do Mal fala justamente sobre inseguranças e angustias da adolescência, fase essa em que se começa a perder o “escudo” que temos quando ainda somos crianças. Quanto à entidade, ela representaria o risco que constantemente persegue esses adolescentes que iniciam uma vida sexual. Mesmo que esse risco faça parte da vida de qualquer pessoa, os adolescentes fazem parte de uma estatística que precisa de mais atenção.

Isso fica claro no filme em cenas logo no primeiro ato, quando Jay está na piscina de sua casa. A personagem observa um esquilo andando pelo fio de alta tensão do poste e quando se depara com uma formiga em seu braço, ela a coloca dentro da piscina, consequentemente matando-a. Essa simplicidade alegórica parece representar nada mais que a fragilidade dessa fase da vida quando não somos mais criança, mas também ainda não chegamos à fase adulta.

Não é a toa que alguns diálogos bem pontuais frisam momentos dos próprios personagens, ora falando da fase em que eram crianças (e como tudo parecia mais fácil), ora relembrando quando eram crianças e sonhavam em ser mais velhos, e se deparando com a vida em que essa “magia” de se tornar maior de idade não passa de algo romantizado.

Saindo um pouco da parte temática e indo para a parte estética, Corrente do Mal tem mais méritos. A música que facilmente nos faz lembrar um filme de John Carpenter, ao mesmo tempo em que encontra outras referências em filmes dos anos 70 e 80, consegue ter uma personalidade própria. O próprio diretor já citou em entrevistas sua influência na carreira proveniente de vários filmes clássicos do terror, como A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984) de Wes Craven e O Enigma do Outro Mundo (The Thing, 1982) de Carpenter. Os próprios objetos de cena também misturam elementos da atualidade com elementos também dos anos 80, criando um visual bem uniforme que não permite demarcações de épocas específicas.


Com tudo isso, ainda tem a fotografia que aposta em planos abertos e profundidade de campo. Essa escolha serve para causar tensão no espectador, que também se vê a espera de algo surgir no meio da multidão, podendo ser ou não uma das formas da entidade que por vezes se comporta como uma pessoa normal enquanto caminha em direção a protagonista, seja onde ela estiver. A câmera subjetiva também auxilia muito para nos colocar no lugar de Jay.


Com tantas qualidades em meio a um gênero que fica cada vez mais difícil de alcançar algo inovador, Corrente do Mal mostra que o cinema de horror ainda pode se reciclar e o mais importante: causar reflexão sem se limitar a dar sustos baratos. Aliás, é comum nesses filmes mais originais, a falta de grandes sustos, o que acaba incomodando muitos fãs um pouco mais exigentes. Mas um verdadeiro fã de terror, poderá se abrir para algo novo e perceber que alguns filmes têm mais efeito na forma como nos perturbam do que na forma como nos assusta. 
 

terça-feira, 3 de março de 2020

Crítica: O Homem Invisível




Quando a Universal Pictures surgiu com a ideia da criação de um “Dark Universe”, muitos fãs criaram expectativa. A ideia era fazer um reboot de todos os filmes clássicos de monstros, unindo-os em uma linha temporal, assim como é feito no universo da Marvel. Porém, as críticas negativas e o pouco sucesso de filmes como Drácula: A História Nunca Contada (2014) e A Múmia (2017), fizeram com que os planos desse novo universo fossem interrompidos. A ideia (até o momento) acabou sendo a de produzir filmes solos, longe desse universo compartilhado. E parece que pode dar certo.

O Homem Invisível é o primeiro longa dentro dessa nova ideia de um filme solo. A adaptação do livro homônimo escrito por H. G. Wells em 1897, já gerou uma série de filmes para o cinema. A mais conhecida delas foi a realizada pela Universal Pictures em 1933, que contou com  Claude Rains como o cientista que descobre uma fórmula para se tornar invisível, mas que ainda precisa descobrir um  antídoto para reverter o processo. O longa foi dirigido por James Whale e até hoje impressiona pelos efeitos visuais usados na época em que foi produzido.


Nessa nova versão da história, o diretor australiano Leigh Whannell ficou encarregado pela produção executiva, roteiro e claro, direção. Whannell é conhecido pelo seu papel do Specs na franquia Sobrenatural (Insidious nos EUA), responsável por ajudar a médium Elise Rainier a enfrentar os espíritos malignos do filme. Vale lembrar que Whannell roteirizou todos os longas da franquia, além de ter dirigido o terceiro filme, Sobrenatural: A Origem (Insidious: Chapter 3, 2015).

Em O Homem Invisível, Cecilia Kass (Elisabeth Moss), é uma mulher que está tentando fugir de um namorado extremamente abusivo, o cientista Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen). Quando consegue, a mulher descobre que seu ex se suicidou. Tentando retomar sua vida enquanto vive na casa de seu amigo de infância, James (Aldis Hodge), Cecilia parece sentir a presença de Adrian no local enquanto coisas estranhas passam a acontecer.

Se Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018), brincou com o sentido auditivo do espectador, O Homem Invisível brinca com a visão. É muito válido quando um filme se agarra a isso para criar uma constante expectativa de que algo ruim poderá acontecer. Mesmo que outras adaptações dessa história já tenham tratado da invisibilidade, a direção de Whannell é muito eficaz ao criar uma grande tensão na primeira parte do filme.

Para começar na primeira sequência, a protagonista já está tentando fugir de casa sem ser vista pelo namorado, que está dormindo. A mansão onde vive o casal tem uma arquitetura moderna ao mesmo tempo em que evoca uma sensação de frieza e isolamento. O lugar fica no topo de uma colina e as paredes e muros cinzas, dão ao local justamente a ideia de uma fortaleza que de fato aprisiona Cecilia. Nessa mesma sequência há uma impressão clara de que a mulher não pertence àquele lugar. Mesmo tendo o estímulo visual, esse início do filme trabalha também a tensão do som que pode surgir a qualquer momento e acordar Adrian.


Uma vez que já sabemos que o filme se trata de uma ameaça que não pode ser vista, a câmera costuma enquadrar Moss deixando um espaço ao seu lado, onde claramente é ali que Adrian deve estar. Há muitos momentos assim e são neles em que o suspense e a expectativa de que algo ruim possa acontecer, fazem o espectador ficar apreensivo e esperando o pior. Às vezes a câmera faz uso de movimentos panorâmicos acompanhando a protagonista de um ponto a outro dentro de um cômodo, quando resolve voltar para o ponto inicial, agora sem acompanhar a personagem. Esses segundos até a câmera chegar ao seu destino onde não há “nada” para ser visto, intensificam mais nossa expectativa de que Adrian pode estar planejando fazer algo.

Os velhos sustos também agradam o espectador mais acostumado com cenas convencionais dentro do gênero do terror. Porém eles são honestos e quando surgem, são em cenas mais impactantes que não enganam o espectador e às vezes o pegam realmente de surpresa como em uma cena em especial dentro de um quarto, que deve pegar muita gente de surpresa. 

A segunda parte do filme se torna mais convencional com cenas de ação e fuga, mas que ainda assim continuam competentes graças à boa direção de Whannell. O final também pode não ser tão previsível para alguns, e mesmo que alguma ação em especial no desfecho possa ter sua veracidade questionada, nada disso atrapalha o filme.


Talvez o mais notório nisso tudo é usar esse filme para falar de questões tão pertinentes e finalmente faladas com mais finco nos últimos anos, como as relações abusivas. O gaslighting para quem não sabe, é um tipo de abuso psicológico em que o abusador omite ou manipula informações para que a vítima passe a duvidar de si mesma ou até mesmo de sua sanidade mental. O termo tem origem na peça teatral Gas Light, que depois foi adaptada mais de uma vez para o cinema. Uma delas em 1944 contou com a participação de Ingrid Bergman.

Mesmo Cecilia já sabendo que Adrian está por perto, ela não tem credibilidade já que seu argumento está fora da realidade. Sua sanidade é posta à prova a ponto da personagem ser internada. A manipulação de Adrian ao ficar invisível, mesmo que faça parte de uma narrativa de fantasia, ainda assim mostra como momentos de manipulação que podem ser conferidos em tantas relações abusivas. Nesses casos  a mulher é vista como alguém que precisa de ajuda psicológica por ser sempre desacreditada por pessoas próximas. Adrian até mesmo manda um e-mail do computador de Cecília para sua irmã,  Emily (atriz), para criar conflito entre as duas mulheres.

Mesmo não havendo 100% de profundidade no drama da personagem, dando mais espaço para as convenções do gênero do terror, há cenas bem interessantes e pontuais do relato de Cecília, em que a mesma fala um pouco sobre sua relação com Adrian e sobre como seu ex-namorado vai aos poucos controlando sua vida. Destaque para uma cena em que ela confronta ele e diz que não sobrou mais nada dela para ele querer levar. Vale apontar como Elizabeth Moss está mais uma vez excelente.

O Homem Invisível já pode ser considerado um dos filmes de terror de 2020 até o momento, e tem diversos aspectos que irão agradar o espectador que procura um filme de terror mais convencional, mas também o uso do enredo para falar de questões sérias.  

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Crítica - Morto Não Fala




Morto Não Fala foi dirigido por Dennison Ramalho e inspirado no conto escrito por Marco de Castro em 2004. Castro que na época era repórter policial, possuía um blog chamado Casa do Horror, com diversas histórias assustadoras e macabras.  

A ideia inicial era fazer um curta adaptando o conto, mas que depois se transformou na ideia de uma série. Muita coisa aconteceu e como nada pode ser previsto, quinze anos depois a ideia finalmente virou um filme produzindo em coprodução com a Globo Filmes, Canal Brasil e Casa de Cinema de Porto Alegre, e que agora sim poderá virar uma série. 

Apesar desse ser seu primeiro longa, Dennison Ramalho já dirigiu oito curtas na carreira, sendo um deles fazendo parte do filme antológico O ABC da Morte 2. Morto Não Fala teve boa resposta lá fora, sendo exibido em 40 festivais de diversos países. No site Rotten Tomatoes o índice de aprovação é de 92%, além de ter sido eleito pela revista New York Times como um dos melhores filmes de terror de 2019.

Stênio (Daniel de Oliveira) trabalha como plantonista noturno de um necrotério. No seu trabalho, o homem tem o dom de falar com os corpos que ali estão para serem abertos e  examinados por ele. Depois de quebrar uma espécie de regra do mundo sobrenatural e ouvir de um dos mortos que sua mulher está tendo um caso, Stênio é preso por uma maldição que irá prejudicar sua via e das pessoas próximas a ele.


Morto Não Fala não busca em sua essência fazer uma crítica social, mas é possível perceber algumas pinceladas de uma crítica no primeiro ato do filme, quando percebemos a quantidade de corpos de pessoas negras no necrotério onde se passa boa parte da história. Mesmo que essas pessoas um dia fizeram parte de organizações criminosas, sabemos como o caminho do crime tomado pelas populações pobres e negras no brasil, não se trata de uma simples “escolha”. Já em uma sequência em que corpos vão chegando no necrotério sem parar, descobrimos que o resultado de uma deslizamento de terra fez com que tantas pessoas morressem. Mesmo sem mais explicações sobre o acidente, sabemos como esse tipo de tragédia também ocorre muito. Seja por falta de alguma fiscalização ou pela desigualdade social que obriga as pessoas a fazerem suas casas em áreas de risco.

Esses pequenos momentos de crítica aparecem no filme, mas nada acaba indo além disso. Até mesmo o dom do protagonista de conversar com os corpos, pode pegar muita gente de surpresa e frustrar um pouco quando depois do conflito, essa premissa acaba ficando de lado e dando espaço para um filme de terror mais convencional. Essa mudança de tom que poderia prejudicar o longa, acaba não acontecendo graças às sequencias bem dirigidas e criativas de Ramalho.


Quando se estabelece o conflito do filme, passamos a temer não só por Stênio, mas também por seus filhos. Há ainda um suspense envolvendo um segredo que sabemos, mas que é desconhecido por Lara (Bianca Comparato), que aos poucos começa a fazer parte da vida de Stênio e seus filhos. O protagonista é um anti-herói e o equilíbrio entre o lado obscuro do personagem e seu amor por sua família enquanto tenta fazer com que nada de mal aconteça a ela, equilibra o bem e o mal que habita o personagem.

Parece que o diretor além de estar bem familiarizado com o cinema hollywoodiano do gênero de terror, o mesmo também está atento na forma como cria sequências de medo e tensão. Há muitas delas que se constroem efetivamente a partir de momentos de tensão e estranhamento do que de sustos gratuitos. Mesmo quando faz uso de alguns desses sustos, são em momentos que não procuram enganar o espectador, mas de fato mostrar algo sobrenatural acontecendo naquela cena. Além disso, o cineasta usa elementos da própria cultura brasileira para criar as cenas de terror.


Algo que chama muito a atenção, são os efeitos visuais usados nos rostos dos corpos que conversam com Stênio. Bonecos muito bem feitos a partir de moldes dos corpos dos atores, foram usados nas cenas do necrotério. O ator gravava seu rosto dizendo suas falas e depois esses rosto era sobreposto o rosto dos bonecos. O resultado pode causa estranhamento, mas ao mesmo tempo dá um tom bizarro ao filme. Não se sabe se essa ideia foi proposital, já que colocar os atores deitados nas mesas de exame e filmá-los lá mesmo enquanto dão o texto, teria sido uma opção mais barata e até óbvia. De qualquer forma isso não tira o mérito do filme e dos efeitos especiais de maquiagem que são bem convincentes.

Morto Não fala foi uma grata surpresa no ano de 2019, principalmente para o Brasil, que é tão carente de filmes de gênero. Mas a boa recepção do longa lá fora, acaba sendo uma boa forma de divulgação e apreciação do filme aqui no Brasil.





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