Que Horas Ela Volta? (2015) de Ana Muylaert, foi sem dúvidas um grande marco no cinema brasileiro. O longa com uma história simples, conseguiu revelar todas as sutilezas que desvendam os limites dentro da convivência entre patrões e empregadas domésticas. O “praticamente da família” pode parecer até um elogio em um primeiro momento, mas ao longo do filme vamos percebendo essas linhas que separam a família de Val (Regina Casé).
Já em A Criada (La Nana, 2009), filme chileno dirigido por Sebastián Silva, as semelhanças com Que Horas Ela Volta?, terminam logo quando percebemos uma abordagem mais intimista ao mesmo tempo em que também vai revelando as relações entre os integrantes da casa com Raquel (Catalina Saavedra), empregada que trabalha há anos na casa da família.
Mas o que se destaca entre esses dois filmes, é sem dúvida o ponto de vista das protagonistas e o arco das personagens. Esses duas mulheres veem uma ligação forte com as famílias para quem trabalham, enquanto o espectador mais atento está ciente de que essa relação quase familiar não existe. Val e Raquel passam o filme todo sem essa consciência, embora elas evoluam ao longo da narrativa e tomam decisões importante em suas vidas.

Na apresentação de Val, vemos a rotina da personagem nos seus afazeres da casa e na sua relação com os integrantes da família, em especial, Fabinho (Michel Joelsas), único filho de seus patrões Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli). Tanto aqui quanto em A Criada, as duas personagens criaram os filhos dos patrões e consequentemente criaram fortes laços com eles, gerando muitas vezes um grau de intimidade maior do que com a própria mãe desses personagens.
No filme de Sebastián Silva, o próprio espectador já está inserido na cozinha. A câmera que está dentro do cômodo, nos coloca no lugar onde a personagem passa boa parte de seu tempo. Enquanto isso, vozes em off vindas da sala de jantar nos apresentam a família a partir dos diálogos sobrepostos de crianças e adultos. Segundos depois entra na cozinha, Raquel, que se senta à mesa e começa a jantar enquanto encara a câmera por alguns segundos.
Anna Muylaert também vai trabalhar esse ponto de vista da cozinha em algumas cenas de forma também efetiva, quando a câmera que fica na cozinha, enquadra uma parte da sala de jantar e da cabeceira da mesa. Esses enquadramentos coloca tanto Val, quanto Raquel no lugar que no final das contas é aquele que sempre irá de fato pertencer à elas: a cozinha.

Quanto aos patrões, eles de forma alguma caem no estereótipo dos vilões carrascos e arrogantes. Pelo contrário, tratam bem seus funcionários e como observado em A Criada, preparam até mesmo uma festa de aniversário surpresa para Raquel. Depois do jantar, claro. E com direito a um pequeno sino tocado pela patroa para que Raquel apareça na sala de jantar e receba seus presentes. Em A Criada, a protagonista Raquel é uma pessoa introvertida e que fala pouco de si. Aqui o roteiro trabalha algo mais intimista ao mesmo tempo em que aborda essa relação da emprega doméstica com os patrões. A narrativa está mais voltada para a descoberta da personagem na real amizade e companheirismo que está dentro da própria casa, mas que não vem de seus patrões, mas sim de sua colega de trabalho. Lucy (Mariana Loyola) é contratada por Pilar (Claudia Celedón) para que a mesma ajude Raquel nos afazeres domésticos, quando percebe que a mulher parece estar cansada demais para dar conta de toda a casa.
Até chegar em Lucy, Raquel dava um jeito de atrapalhar a vida das outras funcionárias que passaram pela casa. Sua tática preferida era trancar as mulheres para fora, gesto esse que diz muito sobre Raquel. Esse forte “vínculo familiar” construído pela personagem ao longo dos anos, é baseado apenas no ato de servir seus patrões. A personagem não aceita mais ninguém fazendo isso a não ser ela mesma. Enquanto os patrões até se esquecem do tempo exato em que Raquel trabalha com eles, ou até mesmo da idade da personagem, Raquel nunca tem a consciência que nós temos como espectadores. “As crianças me adoram” é uma frase dita mais de uma vez por Raquel, que nutre esse vínculo praticamente sem reciprocidade.
Lucy, recém-chegada a casa, é a única que consegue enxergar Raquel de outra forma e tirar de letra a forma hostil com que foi tratada pela personagem. Com humor, Lucy lapida o material bruto que existe na protagonista e a faz descobrir que ela não é uma ameaça. Lembrando que essa capacidade de transformação da personagem, nunca foi alcançada por seus patrões durante todos os anos de convivência.

Já em Que Horas Ela Volta? Val é bem diferente de Raquel. Mais expressiva e bem-humorada, ela nutre um carinho especial por Fabinho, que também o criou desde criança. O conflito aqui é estabelecido a partir de sua filha Jéssica (Camila Márdila), que ficou em Pernambuco para que sua mãe trabalhasse durante todos esses anos em São Paulo. Também com essa abordagem mais intimista da relação das duas, o filme de Muylaert está mais equilibrado, sendo ao mesmo tempo social ao falar das mudanças ocorridas no Brasil a partir da personagem de Jéssica, ao mesmo tempo em que mantém a abordagem pessoal da relação mãe e filha.
Jéssica chega a São Paulo para prestar vestibular e sua mentalidade não a coloca como a clássica filha da empregada. Ela fica no quarto de hóspedes da casa até chegar o dia da prova. Diferente de Pilar em A Criada, Bárbara é um pouco fria enquanto tenta ser mais simpática com Jéssica. Existe um tipo de confronto velado entre a patroa que se sente incomodada ao ver a filha da empregada na piscina da casa e da jovem que não quer se sentir diminuída por ser a filha da mulher que trabalha para Bárbara. Val no entanto, com uma mentalidade bem diferente, até por conta da diferença de gerações, não compreende a filha e defende que a pessoa deve saber qual é o “seu lugar”.

Com duas mulheres protagonistas e que não têm consciência alguma dessas sutilezas capazes de revelar as reais relações entre patrão e empregado, tudo acaba ficando mais claro para o espectador que é capaz de notar essa falsa reciprocidade e a falta de laços que permeiam a convivência entre essas personagens. A libertação de Val em Que Horas Ela Volta? É mais explícita do que em A criada. Compensar o tempo perdido com a filha se torna uma prioridade para Val, que toma uma decisão talvez até já esperada pelo público. Já em A criada, Raquel gera uma mudança interna, pensando mais em si e se abrindo mais para o mundo e para as pessoas, enquanto continua pertencendo “praticamente da família” na casa de seus patrões.
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