sábado, 29 de dezembro de 2018

A História da Eternidade - A quebra de estereótipos do sertão brasileiro

Nosso cinema já retratou em muitos filmes, o sertão e a vida dos nordestinos. Questões como a seca, a pobreza, a fome, o conservadorismo e a forte religiosidade, durante anos, ilustraram uma característica extremamente forte na nossa cultura e na nossa história. Mesmo com sua grande importância para o cinema, muita coisa mudou e alguns filmes que se passam no sertão, começaram a trazer questões também pertinentes e mais pessoais dentro desse mundo.
Um bom exemplo é o filme Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro. O sonho aqui de ter uma vida melhor, deixa de lado a miséria extrema, quando o maior sonho do protagonista Iremar (Juliano Cazarré), é se tornar-se estilista no Polo de Confecções do Agreste. Enquanto trabalha nas famosas vaquejadas, o personagem cria e costura roupas ao mesmo tempo em que quebra muitos estereótipos.
Com A História da Eternidade (2015) não é diferente. Primeiro filme do pernambucano  Camilo Cavalcante, o longa foi exibido no Festival de Roterdã, na Holanda e ganhou diversos prêmios, como o de melhor filme no Festival de Paulínia, além de ser eleito o melhor filme pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).
O filme se passa em um vilarejo do sertão e gira em torno de três personagens principais. Querência (Marcelia Cartaxo) acaba de perder seu filho e enquanto passa pelo processo de luto, é cortejada por Aderaldo (Leonardo França), um sanfoneiro cego que não desiste da mulher e está disposto a esperar até que a mesma esteja pronta para lhe corresponder. Dona Das Dores (Zezita de Matos) é uma senhora religiosa que vive sozinha. Ela espera a chegada de seu neto que veio de São Paulo para passar um tempo com ela. Por último, Afonsina (Débora Ingrid), é uma jovem que sonha em conhecer o mar. Ela vive com seu pai machista e conservador, Nataniel (Cláudio Jaborandy) e seus irmãos. Seu maior amigo é seu tio João “Dinho” (Irandhir Santos), um homem bom e ligado às artes, que sofre de crises de convulsão. O homem que vive na casa alugada de seu irmão Nataniel, que desaprova o lado artístico do irmão.
Em uma atmosfera cheia de poesia visual e uma fotografia belíssima, que algumas vezes parece lembrar uma versão do agreste de um quadro de Edward Hopper, o trabalho de luz e sombra contextualiza a emoção de suas personagens ao mesmo tempo em que fica entra uma representação naturalista e romântica do sertão brasileiro.
Se por um lado as casas dessas três mulheres ainda retratam a simplicidade, por outro cenas em que a família de Afonsina se reúne para almoçar e jantar, mostram uma refeição simples, mas o bastante para que todos possam se alimentar. Nataniel reclama da seca e de um período difícil que está enfrentando, mas no filme isso não se torna um problema notório. Já Dona das Dores, leva um prato farto de comida para Querência, que ainda chora pela morte do filho.
Dentro desse conservadorismo e machismo no núcleo de Afonsina, João faz questão de expressar sua veia artística em frente sua casa, sem se importar com o que dizem. Mais do que uma simples apresentação, a dança que o personagem faz enquanto toca a música “Fala” da banda Secos e Molhados, é na verdade uma explosão do que sente o personagem e de sua vontade de manifestar sua arte, mesmo que depois seja repreendido por Nataniel.
E o que dizer dessas três mulheres? Muito longe de uma abordagem focada na pobreza ou na seca, aqui isso já não tem importância. Se Afonsina poderia facilmente sonhar em ir para a cidade e buscar outras condições de vida, a garota quer apenas conhecer o mar. Esse desejo parece ser transferido para o tio, que à sua maneira (e diga-se de passagem, bem poética) mostra o “mar” para a sobrinha. A força de sua personagem também está na forma como fica em conflito com seu pai, num rumo polêmico e ousado, mesmo se o filme se passasse em São Paulo.
Mais polêmico é o núcleo de Dona das Dores. A religiosidade aqui se dá por parte dessa personagem, que sempre frequenta a missa e tem em sua casa, uma mesa com diversos retratos de santos, velas, rosários e com a bíblia. A chegada do neto traz memórias e lembranças que se dão antes da chegada do rapaz, quando a senhora pega uma caixa de fotos antigas e lembra do jovem ainda na infância. O que parece ser um simples relacionamento entre neto e avó, acaba tomando um rumo ainda mais polêmico do que na história de Afonsina. Repressão religiosa e sexualidade entram em conflito quando Dona das Dores encontra uma revista pornográfica nas coisas do neto. O despertar de uma sexualidade que parecia à muito tempo adormecida ou talvez nunca descoberta por completo, fará com que a senhora projete esse desejo no próprio neto. A culpa é inevitável e a auto punição também.
A mais romântica de todas, seja talvez a história de Querência e Aderaldo. O filme abre logo com sua história e é responsável por momentos em que a fotografia tem seus ápices. Aqui o processo do luto leva tempo e requer paciência. Tanto a nossa, quanto a de Aderaldo, que vai até a janela da mulher todas as manhãs, tocar sanfona. Detalhes como uma fresta de luz dentro do quarto da personagem, ou a janela que é aberta aos poucos, antes da porta ser finalmente aberta, mostra a delicadeza com que a personagem vai aos poucos abrindo o seu coração para o amor.
A chuva no filme tem outro papel muito importante. Aos mesmo tempo em que aflora as emoções das personagens e culminam no ápice das ações e da entrega (cada uma à sua maneira) ao desejo de cada uma dessas três mulheres, traz também algumas consequências que serão mais difíceis para Dona das Dores e Afonsina. Para Querência a chuva traz como consequência, a necessidade de um tempo só para ela, como se a água levasse de vez resquícios de seu luto e ela precisasse reerguer suas estruturas abaladas.
A História da Eternidade é um filme que quebra muitos conceitos já estabelecidos quando falamos sobre filmes passados no sertão do Brasil. Com ênfase em seus personagens e no que eles sentem, o sertão deixa de ser o palco do sofrimento e da miséria, para se tornar um lugar cheio de atmosfera que dá ao filme e principalmente às histórias, um tom romântico e por vezes quase fabulesco, mas ao mesmo tempo em que fala de questões reais e palpáveis, como nosso desejos e emoções.
Confira o trailer!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Projeto férias Filme 1 : Capitão América o primeiro vingador

Filme 1 :  "Capitão América o primeiro vingador" - Direção :  Joe Johnston, 2011

Esse ano o Blog Simulacro resolveu  iniciar um projeto novo para as férias, e para dar o ponta pé inicial  traremos um especial sobre o  Universo Cinematográfico da Marvel.

Faremos  uma maratona pelos filmes, seguindo uma sequencia narrativa que interliga o universo dos Vingadores, e a cada filme assistido sairá aqui no blog e nas nossas redes sociais, resenhas e análises fílmicas com detalhes e curiosidades desse universo, que começou nas HQs e hoje em dia domina as bilheterias mundiais.

O primeiro filme da nossa lista é o  "Capitão América - O primeiro vingador" , dirigido por Joe Johnston, lançado no ano de 2011, o filme assim como o título sugere, traz para as telonas a proposta ambiciosa de remontar a saga dos Vingadores na linguagem cinematográfica. Esse não é o primeiro filme da franquia da Marvel em ordem cronológica de lançamento, mas é a primeira parte dessa narrativa. 


O filme é uma linda homenagem aos quadrinhos do Capitão América, e os fãs provavelmente notaram isso, ao começar pelo fato de que em toda a primeira parte do filme o personagem famoso por possuir um escudo circular com as cores da bandeira americana, possui um escudo um pouco diferente, se trata na verdade do primeiro modelo de escudo utilizado pelo capitão América nos quadrinhos.


O filme recria a gênese de  Steve Rogers o Capitão America(Chris Evans), que viria a se tornar um dos heróis mais icônicos da Marvel, personagem criado pelos lendários  Jack Kirby e  Joe Simon em 1940, bem antes da Marvel Comics ter esse nome, e antes mesmo dela representar o império que hoje representa.

Assim como nas HQs o Steve Rogers do cinema em um primeiro momento é apenas uma rapaz de aparência franzina e adoentada, mas com o desejo de servir o seu país na segunda gerra mundial, acima de tudo fica claro que Rogers tem um bom coração e é capaz de qualquer coisa para fazer um bem maior pelo próximo e pelos seus compatriotas. 

Essa veia de patriotismo do Capitão América vai além de suas vestes, fica bem clara em seu modo de vida que provavelmente é fortemente marcado pela época em que a história se passa, em um período de guerras mundiais e em um contexto de afirmação cultural de Estado Nação americano. Vale lembrar que não apenas as HQs, mas toda a produção cultural americana da época do lançamento da revista do Capitão America foi fortemente influenciada por esse contexto histórico politico social. Do qual saiu a figura do "Homem de Bem Americano", representado enumeras vezes no cinema do período, que marcou a estrutura do cinema clássico americano, que por sua vez é retomado com força na produção de filmes de heróis.

O filme  Capitão América o Primeiro Vingador, marca também a presença do que se tornaria a S.H.I.E.L.D. trazendo personagens memoráveis como a Agent Carter e Howard Stark, sim ele mesmo o pai do Tony Stark o Homem de Ferro!

A S.H.I.E.L.D. é uma agência secreta especial americana, criada pela própria Agente Carter, no filme o próprio governo americano o responsável pela transformação de Steve Rogers no Capitão América. 





Então o jovem doente que sonhava em servir o seu país, encontra sua oportunidade ao aceitar participar de um experimento cientifico do governo americano , que desejava criar super soldados, para representar os Estados Unidos em missões de extremo perigo.

A experiência funciona, e Steve Rogers  se torna o Capitão América, que nesse primeiro filme tem a missão de derrotar o Caveira Vermelha, um criador de armas que lutava ao lado de  Adolf Hitler e da Hidra famosa conhecida dos fãs dos quadrinhos e da série Agentes da S.H.I.E.L.D., o papel da Hidra nesse contexto cinematográfico da Marvel está em praticamente representar a ameça nazista tanto do período da segunda gerra mundial, quanto em seu ressurgimento nos tempos atuais, inspirando um certo medo coletivo, que só pode ser combatido por "Heróis honrados".

O filme é marcado por sequências de ação bem desenvolvidas, e uma fotografia bonita que recria ao máximo os enquadramentos de revistas em quadrinhos,  com um efeito de coloração que se aproxima da qualidade de HQs antigas. A direção de arte remonta a época da segunda gerra mundial, inclusive uma das sequências do filme na qual é feita a divulgação do Capitão América pelo governo americano, temos uma espécie de trecho musical, que demonstra o poder propagandista cultural da época, de forma muito interessante.


A trilha sonora do filme é imponente, e representa o tom heroico do longa, que ganha destaque em momentos decisivos da narrativa, o que remete muito a estrutura dos filmes Star Wars, alias percebe-se forte referência a franquia, não apenas na trilha sonora mas na montagem, o que nos dá uma dica da construção de um universo ainda maior para o filme, o que viria ocorrer depois nos próximos filmes que dão sequência na história. Vale lembrar que essa construção cinematográfica com uma narrativa que vai se expandindo, e interligando diversos personagens já era uma marca registrada das revistas em quadrinho da Marvel, bem antes dessa forma de narrativa se tornar popular no cinema.

Depois de derrotar o Caveira Vermelha o Capitão America passa por um longo período congelado, esse espaço de tempo aproveitado pelo filme, para dar sequencia em todo o universo dos Vingadores, se refere diretamente ao hiato verdadeiro de anos que a revista do Capitão América parou de ser produzida, e quando o projeto foi retomado pelo seu criador  Jack Kirby, ao ser indagado de como o herói poderia se encaixar novamente em um novo momento dos quadrinhos, respondeu com uma grande sacada de que o Capitão America passou anos congelado. Desse modo o personagem permanece intacto com seus princípios e história, mas pode viver em um novo mundo, com novos desafios e com outros personagens.



E assim nasce a historia do Capitão America no cinema, é claro que ao se tratar de uma outra mídia muitas coisas acabam de fato mudando, no entanto o fenômeno vindo dos quadrinhos nos anos 1940 permanece vivo, atraindo ainda mais pessoas em volta de histórias de heróis.

Abaixo a lista dos filmes do nosso especial para maratonar nessas férias ! =)

1- Capitão América o primeiro vingador.
2- Homem de ferro.
3- O incrível Hulk.
4- Homem de ferro 2.
5- Thor
6- os vingadores
7- Homem de ferro 3.
8- Thor o mundo sombrio.
9- Capitão América o soldado invernal.
10- Guardiões da galáxia.
11- os vingadores a era de Ultron.
12- Homem formiga.
13- Capitão América Guerra civil.
14- Dr Estranho.
15- Homem aranha de volta ao lar.
16- Guardiões da Galáxia 2.
17- Thor Ragnarok
18- Pantera Negra.
19- os vingadores guerra infinita.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O Cinema de Tim Burton










Timothy William Burton, nasceu em 25 de agosto de 1958 em Burbank, nos EUA. Na infância, Burton era muito recluso e não tinha amigos. Passava o tempo lendo livros de terror e ficção científica, e assistindo a filmes de terror B, universo esse que sempre o atraiu.
Tim Burton estudou desenho na California Institute of the Arts e logo ganhou uma oportunidade que mudou sua vida. Após seus trabalhos terem sido descobertos, Burton foi contratado imediatamente pela Disney, onde trabalhou nos filmes “O Cão E a Raposa” (1981) e “O Caldeirão Mágico” (1985). Depois de algumas desavenças com seus colegas por conta da parte criativa, a Disney reconheceu o talento de Burton e aprovou o seu projeto para o curta “Vincent” de 1982, que se tornou um sucesso de crítica e recebeu diversos prêmios.
Burton fez outros curtas, incluindo “Frankenweenie” de 1984, a primeira produção em live action do cineasta. O curta porém, não foi lançado por ser considerado não muito apropriado para crianças, por conta do tom sombrio demais. Paul Reubens (também conhecido como Pee-Wee Herman) viu “Frankenweenie” e apostou em Burton para dirigir seu filme “As Grandes Aventuras de Pee-wee” de 1985. O filme surpreendentemente foi um sucesso e Tim Burton se tornou popular. A partir daí vieram diversos filmes e clássicos como “Os Fantasmas se Divertem” (1988), “Edward Mãos de Tesoura” (1990), “Batman: O Retorno” (1992), e “O Estranho Mundo de Jack” (1993), que foi dirigido por Henry Selick, mas produzido por Burton.


O garoto solitário e excêntrico parece continuar vivo, mesmo que de formas diferentes nos temas dos filmes de Burton. É comum encontrarmos personagens desajustados socialmente mal interpretados pelas pessoas e que são cobrados a serem algo que não são, resultando na tentativa falha de se encaixarem no mundo. É curioso notar como esses excêntricos personagens conseguem facilmente conquistar a empatia do público e nos fazer torcer por eles, por mais estranhos que eles possam parecer. Mas afinal, quem é 100% “normal”? Talvez o diferencial no cinema de Burton, seja justamente colocar uma lente de aumento nas excentricidades humanas.
Os finais de seus filmes costumam fugir dos finais já estabelecidos e que geralmente são mais esperados pelo público. A sociedade dita como “normal”, também costuma ser alvo de reflexão nos seus filmes, que às vezes é representada de forma chata e monótona. O visual nos filmes de Tim Burton, são uma atração a parte. Eles costumam exaltar uma atmosfera mais sombria e cheia de fantasia,  havendo muito o uso de sombras e elementos disformes, que caracterizam uma fuga da realidade, influências essas que vêm do expressionismo alemão e dos filmes antigos de terror.     
O cinema de Tim Burton é sem dúvidas um grande diferencial para o cinema (pois questiona uma “normalidade” já está estabelecida e mais valorizada no mundo) e merece ser conferido por todos e principalmente pelos fãs de uma atmosfera diferente, mas que ao mesmo tempo pode encontrar espaço para um pouco de humor em um universo fantástico.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Na Netflix: "Flores" - um filme sobre gentilezas


Sabemos da diversidade no catálogo da Netflix, mas de vez em quando sempre surge um ou outro filme que parece fugir um pouco do conteúdo que às vezes parecem meio genérico, apresentando pouca novidade. Como uma flor simples, mas que se destaca entre as demais, assim é o filme espanhol Flores (Loreak, 2014), dirigido por Jon Garaño e Jose Mari Goenaga. O longa chegou a ser selecionado como representante da Espanha na edição do Oscar 2015.
Falado em Basco, língua falada no País Basco, região histórico-cultural localizada no extremo norte da Espanha e no extremo sudoeste da França, o longa é uma celebração do humano e dos seus sentimentos. Amor, perda, luto, perdão e superação, são temas facilmente reconhecíveis no longa que conta a história de quatro personagens. 
Ane (Nagore Aranburu) é uma mulher perto da casa dos quarenta, que descobre ter entrado na menopausa um pouco antes da hora. Ela trabalha em uma construtora e sua rotina implica em trabalhar, voltar para casa e encarar a monotonia de seu casamento. Tudo muda quando ela começa a receber flores (de alguém que não deixa cartão) em sua casa toda as quintas-feiras.
Paralela à sua história, Lourdes (Itziar Ituño) e Beñat (Joxean Bengoetxea) vivem um conflito no casamento por conta de Tere ( Itziar Aizpuru), sogra de Lourdes, que não gosta da nora e cobra de seu filho um neto. Um acontecimento muda a vida de Tere e Lourdes e ambas também serão afetadas e transformadas através da flores, que também são entregues por uma pessoa desconhecida para ambas.
O título do filme não poderia ser outro. Afinal, são as flores e as diversas situações em que elas podem se encaixar, que nos convidadam a presenciar no filme. Buquês dos mais variados tipos de flores enchem as telas de gentileza, agradecimento, homenagens e luto. O ato de presentear alguém com buquês, é o que move o filme e as ações de seus personagens.
Lourdes, Tere e Ane vivem diferentes questões de suas vidas que serão resolvidas no tempo certo. Enquanto Ane está infeliz no casamento, os conflitos de Tere e Lourdes se agravam com a presença do luto. Sem muitas palavras e priorizando os sentimentos dos personagens que são externizados através de seus gestos e expressões, o longa opta por conquistar o espectador através de um ritmo mais lento, mas nem por isso entediante.
As rimas visuais também estão presentes nas flores que murcham como a vida que também se vai, assim como a renovação de um buquê velho por um novo, parece simbolizar a própria renovação das personagens diante das dificuldades. Até mesmo um personagem em especial e uma ovelha, ganha uma interpretação etérea no longa. Enquanto Buñet pode ser visto como um anjo observador e aquele que inicia todo o desenrolar do filme, a ovelha parece ser sua “continuação” na Terra que irá pôr fim a uma discussão entre duas personagens.
No final, Flores traz uma jornada interna de seus personagens diante de conflitos que serão superados justamente através das flores. Não dá para falar mais, apenas ir correndo ver.    

domingo, 18 de novembro de 2018

Criaturas Marginalizadas: A figura do monstro nos filmes "Frankenstein" e "O Espírito da Colmeia"



Gonçalo Junior cita no livro Enciclopédia dos Monstros, como a ciência e a medicina influenciou indiretamente a ideia do monstro nas artes. Escritores e roteiristas buscavam em diversas teorias, elementos para compor suas tramas e romances que traziam criaturas cujo aspecto tinha explicação na medicina. Na ciência de modo geral, o termo está ligado à criptozoologia, área pouco conhecida que estuda a possível existência de monstros e criaturas estranhas, principalmente as de origem marinha.
Na medicina, eram chamadas de monstros, pessoas que apresentassem alguma deformidade, seja congênita, ou adquirida. A pessoa com hanseníase (vulgarmente conhecido como lepra) em um estado avançado, cuja doença atingia principalmente o rosto, era relacionada ao aspecto da monstruosidade. O mesmo ocorria com pessoas com membros atrofiados ou exagerados, que eram apresentadas em circos e parques de diversão principalmente nos Estados Unidos até metade do século passado.
A ideia do monstro também pode ser diferente em outras culturas. No Antigo Egito por exemplo, a noção do monstro carregava significados sacros, como nos animais representados como figuras humanoides.
Em alguns dicionaristas, o termo vem do latim monstrare, que quer dizer “mostrar”, no sentido de expor ou revelar algo. No Renascimento, “monstruoso” significava um sinal ou uma mensagem enviada por Deus aos homens, como forma de “demonstrar” sua vontade ou ira.  Já uma outra corrente de estudiosos, afirma que monstro vem de monera, quer dizer “avisar”.
Uma terceira corrente de estudos aposta no termo monstruim, que significa espetacular, aquele que se mostrou para além da forma. Dentre outras ideias de definição do que é um monstro, essa parece mais interessante, por fazer mais sentido no que diz respeito ao aspecto de algo e como o mesmo é capaz de se destacar daquilo que é considerado um padrão para a sociedade.
O cinema sempre retratou monstros. Uma grande maioria está ligada a algum mal que assola a humanidade e que sendo assim, deve ser exterminado. Uma das formas mais tradicionais de monstros, pode ser considerada aquela que durante os anos 1930 e 1940, faziam parte dos filmes da Universal Studios. Nem todas essas criaturas, porém, tinham uma maldade pura em sua natureza.
Frankenstein é sobre um monstro que foi criado com partes de corpos. Seu criador, o cientista Dr. Frankenstein, tem a ambição em ser capaz de criar a vida sem se importar com a ética, uma vez que os corpos usados foram exumados de um cemitério sem o consentimentos de seus familiares. Quando Fritz, seu assistente, deixa derrubar o cérebro que seria usado no monstro, ele acaba pegando outro, dessa vez que pertencia a um assassino. Quando finalmente dá vida à uma criatura, a mesma vem ao mundo sem saber de absolutamente nada sobre o que se passa ao seu redor. Tratado como um mero experimento que deu certo, o monstro costuma ser hostil quando se sente ameaçado, tendo essa hostilidade como herança do assassino cujo cérebro pertence agora ao monstro. A única oportunidade de mostrar uma outra faceta, se dá no encontro com Maria, uma garotinha de uns 7 anos. A famosa cena em que a menina joga flores no rio para mostrar à criatura que elas flutuam, simboliza um momento singelo de inocência e descoberta do mundo. Mas aí somos lembrados que estamos vendo um monstro e que mesmo que sua ação tenha sido errada, a mesma é carregada de boas intenções e tudo não passou de um grande equívoco. Sendo assim, a desajeitada criatura parece ter vindo ao mundo já com um estigma da marginalização e da má compreensão.  
Esse ícone do cinema de horror, já foi homenageado de diversas formas. Seja na cultura popular ou no próprio cinema, esse monstro incompreendido sempre carregará consigo a imagem do ser diferente e inadequado, porém longe de ser de fato considerado uma criatura maléfica e assustadora, despertando até mesmo a simpatia do público. Tanto é que a criatura sem nome, acabou ganhando com o tempo o nome de seu criador, como uma necessidade de dar nome a alguém que caiu nas graças do público.
Víctor Erice, cineasta espanhol, fez uma bonita homenagem ao longa Frankenstein (1931) no longa O Espírito da Colmeia, filmado em 1973. Aqui o encontro de uma menina de sete anos com um soldado, está cercado pelo contexto histórico da Guerra Civil Espanhola e de como esse período prejudicou a Espanha.
De forma resumida, o país se via dividido entre dois grupos com propostas bem diferentes para a sociedade espanhola. De um lado os Nacionalistas (formado por monarquistas que queriam o retorno do rei Alfonso XIII), os proprietários de terras, o exército e a igreja católica, estavam em atrito com os Republicanos, formados por trabalhadores urbanos, camponeses, organizações sindicais e diferentes grupos políticos de esquerda. A guerra se deu após uma tentativa de golpe de Estado de um setor do exército contra o governo da Segunda República Espanhola, iniciando assim o conflito em 17 de julho de 1936 e terminando em 1 de abril de 1939, com a vitória dos militares Nacionalistas e a instauração de um regime de caráter fascista, liderado pelo general Francisco Franco.
Nesse breve contexto histórico é que Ana (Ana Torrent), uma garota de sete anos, vive em uma casa com sua irmã, Isabel (Isabel Tellería) e seus pais Fernando (Fernando Fernán Gómez) e Teresa (Teresa Gimpera). A relação da família é um reflexo do início da ditadura franquista e do período devastador do recém término da guerra que se estende para a dinâmica da família, cujos integrantes são vistos juntos à mesa apenas uma vez durante todo o filme. 
O longa divide esses personagens em núcleos: o pai que está sempre concentrado no trabalho e que consequentemente dá pouca atenção para a esposa, Teresa, que por sua vez ainda está apegada a um romance vivido há alguns anos, cujo contato se dá apenas através das cartas que Teresa envia. Já Ana e Isabel vão a uma exibição do filme Frankenstein no vilarejo onde vivem. Enquanto Isabel passa ser uma menina mais madura, ao mesmo tempo em que gosta de fazer algumas brincadeiras mais perigosas e até de mal gosto com Ana, a segunda representa a essência do filme. Inocente e cheia de imaginação, a garota ao mesmo tempo é aquela que como a garotinha Maria, no filme de James Whale, enxerga o lado incompreendido desse contexto de guerra que ela nem ao menos compreende.
Vale apontar também o apresentador que surge antes de Frankenstein iniciar. O homem que adverte o público em 1931, alerta que a projeção a seguir irá retratar algo horrível e que pode chocar, mas que não precisa ser levado a sério. Esse momento exibido na cena em que Ana e sua irmã estão assistindo ao filme, parece simbolizar a própria guerra e como Ana absorveu a situação à sua maneira. O horror no caso de O Espírito da Colmeia seria a própria guerra, enquanto a noção de não se levar a sério, seria representada em Ana, cuja inocência a faz acreditar na existência de um monstro, o que a afasta da triste realidade que se passava na Espanha. Diferente de Isabel, que fala em um momento que filmes são truques, caracterizando mais a frieza da menina, que além de enganar a irmã, estraga a ilusão dela. 
Enquanto o filme Frankenstein e principalmente o Monstro, é usado pelos Nacionalistas no filme como símbolo de algo perverso que ameaçava a população e que devia ter sido destruído, Ana imediatamente parece compreendê-lo. A menina diante da projeção, questiona o porquê de a criatura jogar Maria no rio e o motivo do monstro ser morto pelas pessoas do povoado.
Nesse cenário pós-guerra, Erice usa muitos planos abertos que enquadram estradas cujo ponto de fuga parece levar a nenhum lugar, como se representassem um país com um rumo incerto. A mesma sensação é percebida nos campos, cujo vazio é predominante e nas poesias recitadas na escola de Ana que marcam uma falta de perspectiva do futuro.
Em meio a esse tom melancólico, ainda que não seja apreendido por Ana, ela acaba encontrando seu “amigo monstro” que é tão marginalizado quanto o monstro de Whale. O amigo em questão se trata de um soldado republicano que encontra refúgio em uma casa abandonada onde Isabel já havia falado antes para Ana que lá vive o monstro do filme, e que segundo a menina, ainda está vivo. 
A comunicação aqui se dá sem nenhum diálogo. Ana leva alimento para o homem e um relógio de bolso que pertence ao seu pai. Enquanto em Frankenstein a criatura mata Maria sem querer, após jogá-la no rio, esperando que a menina flutuasse como as flores que foram jogadas pela mesma, o “monstro” de Ana não lhe faz mal algum, mas acaba mesmo assim sendo fuzilado por soldados Nacionalistas por divergências políticas.
Mesmo com esse encontro entre Ana e o soldado, ainda podemos ver a menina frente a frente com a própria criatura de Frankenstein, mesmo que o acontecimento seja uma alucinação de Ana que comeu um cogumelo alucinógeno. Enquanto não tínhamos muita informação sobre Maria no filme de 1931, temos Ana vendo seu reflexo no lago se transformar na figura do monstro. Ana também foi mal compreendida e só queria ajudar o soldado, sem saber que colocaria seu pai em risco, quando o homem é questionado pelos militares de seu relógio estar com um soldado Republicano.
Ana é também uma criatura mal compreendida e alheia ao que está acontecendo com seu país. Além disso, ela cria um mundo seu em que acredita na existência de um monstro, enquanto Isabel, mesmo também alheia sobre a situação do país, é uma menina maldosa que maltrata um gato em uma cena.
Entre realidade e fantasia, O Espírito da Colmeia faz uma grande homenagem a um ícone do cinema de horror, ao mesmo tempo em que eleva o status de uma criatura que ganha analogias sobre temas sérios e políticos, enquanto lida com questões da infância e inocência de uma menina de sete anos.  

terça-feira, 13 de novembro de 2018

A Maldição da Residência Hill



A Assombração Da Casa Da Colina (The Haunting of Hill House) foi lançado em 1959 pela autora americana Shirley Jackson. O romance de terror gótico, chegou a ser finalista no Prêmio Nacional do Livro e já foi adaptado para o teatro e para o cinema. A obra de Jackson se destaca pelas relações complexas entre os personagens, em meio aos estranhos acontecimentos na residência.
A adaptação mais recente é a série de dez episódios da Netflix, intitulada A Maldição da Residência Hill, escrita e dirigida por Mike Flanagan. Diferente dos filmes, Flanagan não foi fiel à obra, mas usou muito de seus elementos e personagens para criar algo diferente e tão bom quanto o original.
Nessa nova adaptação, uma família composta pelos irmãos, Shirley (Elizabeth Reaser/Lulu Wilson), Theo (Kate Siegel/Mckenna Grace), Nell (Victoria Pedretti/Violet McGraw), Luke (Oliver Jackson-Cohen/Julian Hilliard) e Steven (Michiel Huisman/Paxton Singleton), viveu no início dos anos 1990 com os pais Olivia (Carla Gugino) e Hugh (Henry Thomas/Timothy Hutton). A mansão que ainda abriga espíritos de antigos moradores, interage com algumas crianças, cada um à sua maneira, marcando todos de formas diferentes. Uma tragédia ocorrida em uma noite, faz com que a casa seja abandonada por todos, mas mesmo anos depois, com todos já adultos, os integrantes da família ainda sofrem com o passado vivido na Residência Hill.

Mike Flanagan iniciou sua carreira como editor de séries de TV até começar a realizar seus próprios filmes. Os primeiros trabalhos eram mais voltados para o melodrama, gênero esse que depois foi deixado para trás pelo cineasta. Ghosts of Hamilton Street (2003), foi o primeiro filme do diretor depois de se forma na faculdade. A história gira em torno de um problemático escritor que passa a questionar sua sanidade enquanto as pessoas em sua vida desaparecem sem deixar vestígios. O longa chegou a ser premiado em um festival estudantil na época.
O Espelho (Oculus, 2013) foi o primeiro filme do cineasta que chamou a atenção da crítica e do público. Alguns elementos contidos na obra, são de fácil reconhecimento na série A Maldição da Residência Hill, como relacionamentos familiares e o retorno à casa para resolver questões mal resolvidas do passado.
A habilidade na edição, graças a experiência de Flanagan, nos permite a conexão constante entre o passado e presente de cada personagem da série. Às vezes um objeto usado por alguém em cena, também foi usado em algum momento pelo mesmo personagem na infância, como uma simples maçã. A edição também permite segurar informações que serão reveladas posteriormente para nós. Uma mesma cena pode ser vista mais de uma vez através de pontos de vista de personagens diferentes, afinal o roteiro dá a devida atenção a cada um dos personagens, criando uma forte empatia com o público.

Outro ponto importante é a dramaticidade da série em meio aos acontecimentos sobrenaturais e assustadores. Sabemos como muitos filmes, até mesmo por conta do pouco tempo para desenvolver a história, nem sempre conseguem desenvolver o drama e equilibrá-lo com as convenções do gênero do terror. Hereditário (Hereditary, 2018) foi um recente exemplo em que o equilíbrio fez total diferença, o que deu ao filme pontos positivos. A ideia de adaptar A Maldição da Residência Hill em série, foi fundamental para isso. Com dez episódios, alguns dedicados exclusivamente aos personagens principais, o roteiro explora bem o psicológico, o medo e nuances de cada indivíduo da série.
Fantasmas. Geralmente usados como pessoas vingativas que querem fazer mal aos habitantes de casas mal assombradas. Na série temos um diferencial, graças à história de Shirley Jackson, que concentra todo o mal na própria casa onde se passa a história e não em alguém específico. Já os espíritos que habitam o lugar, apresentam uma versatilidade especial na série. As aparições podem representar desde a consciência dos personagens, como seus pensamentos, ou de fato espíritos de alguém. Isso com certeza reforça a ideia de como o roteiro consegue equilibrar o terror com questões mais profundas da psique dos personagens.
Mas é na forma como Flanagan introduz esses espíritos nas cenas, que é de fácil reconhecimento o diferencial de A Maldição da Residência Hill. No lugar de uma aparição abrupta e mais fácil para assustar, a série aposta em cenas desconfortáveis que por vezes, os espíritos surgem aos poucos e de forma estranha. As poucas vezes em que eles aparecem de surpresa, são em cenas que no contexto, já estão tensas e são interrompidas com uma intervenção de um assombro. O uso da profundidade de campo em determinadas cenas, também acaba deixando sempre uma porta ou corredor ao fundo de algum personagem, como se algo fosse aparecer a qualquer momento.

Se você quer acompanhar uma série de terror que foge um pouco do óbvio, assista A Maldição da Residência Hill e perceba como essa série é sem dúvidas, uma das melhores produções lançadas pela Netflix neste ano. Confira abaixo o trailer da série!

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Se você assistiu "A Maldição da Residência Hill", confira "Desafio do Além"




Desafio do Além (The Haunting, 1963) é uma adaptação do livro The Haunting of Hill House, escrito por Shirley Jackson e lançado em 1959. O longa ganhou um fraco remake em 1999, enquanto uma excelente adaptação foi feita por Mike Flanagan para a Netflix, com o nome de A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House) A série conta com 10 episódios e foi lançada em 12 de outubro deste ano.
Desafio do Além foi dirigido e produzido por Robert Wise, responsável por grandes filmes como, A Maldição do Sangue da Pantera (The Curse of the Cat People, 1944), O Dia em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still, 1951) e A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965).
A história gira em torno do Dr. Markway (Richard Johnson), Luke Sanderson (Russ Tamblyn), Theodora (Claire Bloom) e Eleanor Lance (Julie Harris). Juntos durante duas semanas na mansão Hill House, esses três personagens estão lá para acompanhar a pesquisa do Dr. Markway,  que pretende provar a existência do sobrenatural. A casa localizada na Nova Inglaterra, existe há 90 anos e foi palco de diversos assassinatos que teriam origem em uma presença maligna, que já teria surgido junto com a própria mansão. 
Quantos filmes de terror já se passaram numa casa mal assombrada? Difícil até de contar, não é mesmo? Já vimos diversos lugares que são habitados por espíritos vingativos e que buscam de alguma forma fazer vítimas durante o filme, para que no final o protagonista enfrente esse mal existente e tudo seja resolvido. É melhor você esquecer um pouco isso, se estiver disposto a conferir o longa.
Desafio do Além é um filme que felizmente foge um pouco dessa estrutura. Para quem defende hoje em dia a ideia de um “pós-terror”, perceberá que esse tipo de filme já era produzido há muito e muitos anos, e temos aqui um filme de 1963 que se encaixa perfeitamente nessa ideia de um filme de terror diferenciado. Aqui o interesse está numa atmosfera desconfortável e tensa, deixando de lado o artifício barato e instantâneo, como os velhos sustos que só servem para causar algum efeito no segundo em que nos pega de surpresa.
No filme a fotografia em preto e branco acaba sendo muito importante para a forma com que brinca com as sombras e até mesmo para o visual da casa, tão cheia de detalhes em cada cômodo. Para criar um mal existente na casa, já que o lugar não conta com um espírito responsável por atormentar todos, a fotografia é essencial em Desafio do Além.
O uso do plongée e do contra plongée, frequentemente diminuem e enaltecem a casa respectivamente. Cortes rápidos na edição brincam com a ideia de espaço do espectador e ângulos tortos nos tira a noção de realidade. A noção do tempo também é confusa propositalmente, quando as poucas janela que são visíveis durante o filme, não mostram com exatidão se é dia ou noite. A casa em si não apresenta os cômodos de forma que os conecte uns aos outros, dificultando nossa orientação durante o filme. Como uma casa que se torna uma personagem no filme, esses artifícios são essenciais e até mais desconfortáveis que uma aparição de fato.
Já os personagens em Desafio do Além, expõem aspectos interessantes sobre si mesmos, em especial duas personagens. De forma sutil, mas ainda perceptível, a homossexualidade de Theodora se faz presente a partir de seu interesse por Eleanor, nossa protagonista. Seu interesse pela mulher está na forma com que ela aprecia a companhia e até mesmo nos ciúmes que Theodora tem ao ver Eleanor se interessar pelo Dr. Markway.
Eleanor por sua vez é a personagem mais fascinante do roteiro. Vivendo com sua irmã e seu cunhado na casa de sua mãe, já falecida, a mulher sempre foi responsável por cuidar da mãe doente. Fato esse que não permitiu que ela aproveitasse a vida e tivesse uma vida social. Impedida de usar o carro, ela o pega escondido para ir até a mansão. Com uma baixo autoestima notória, Eleonora enxerga a experiência na casa como uma oportunidade única para que algo de relevante aconteça em sua vida monótona. Ao mesmo tempo o medo do lugar é constante, como se ela fosse capaz de capturar todo o clima nefasto da casa.
Se no livro de Shirley o mal dentro da mansão é real, no filme o roteiro foi além. A ambiguidade nos permite diversas interpretações. Seria tudo fruto de uma alucinação de Eleanor? Theodora que alimenta um amor platônico, mas que às vezes parece misturar sua admiração pela protagonista com ciúmes, teria feito Eleanor pensar que a casa está assombrada? Ou seria o Dr. Markway que usou de alguns artifícios para enganar a todos? Eleanor estaria só querendo chamar a atenção? Ou talvez a casa seja de fato assombrada e Eleanor seja uma pessoal sensível demais e por isso captou todo o mal do lugar. Isso fica a critério do espectador.
No decorrer do filme, nossa protagonista vai sendo tomada pela atmosfera da mansão como uma forma de aceitação de que ela pertence ao lugar. Esse aspecto do filme cabe a leitura de uma aceitação de uma possível esquizofrenia da personagem, que se entrega de vez ao seu “destino”. O uso de espelhos reflete muito bem isso, já que é usado com certa frequência, caracterizando essa percepção da imagem, que no filme aparece algumas vezes distorcida.
Desafio do Além é uma da melhores adaptações de um livro para o cinema e já se tornou um clássico do gênero (ainda que pouco conhecido), presente quase sempre em diversas listas de filmes, como a edição de 2016 do livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer de Steven Jay Schneider.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Revisitando A Bruxa de Blair - O olhar da câmera no found footage




Quando o cinema surgiu, a câmera representava o olhar de um mero espectador que estava ali, exercendo seu papel de observador. Os filmes traziam no próprio ato de mostrar alguma coisa, o entretenimento para o seu público. O termo cinema de atrações, citado por Flávia Cesariano Costa no livro O Primeiro Cinema – Espetáculo, Narração, Domesticação, designa a experiência do cinema vivida pela plateia, muito semelhante a uma apresentação teatral.
Nesse tipo de cinema que se iniciou em 1895 com os irmãos Lumière, não havia motivações nos personagens que apareciam nos filmes. Já os planos, não se aproximavam do rosto dos atores, ou até mesmo dos transeuntes que estavam nas ruas e tinham sua imagem captada por aquele objeto chamado cinematógrafo.
Com D. W. Griffith, esse cinema de atração, cita Flávia, sofre uma transição que muda o cinema drasticamente. A partir de 1915, Griffith integra o cinema à cultura dominante ao mudar a gramática do fazer cinema. A câmera passa a dar dimensões psicológicas aos personagens a partir do momento em que ela se aproxima do rosto dos atores e das atrizes. No cinema de atrações, as expressões exageradas passavam para o espectador a ideia de sentimentos e sensações vividos pelos personagens. Em alguns filmes de Griffith no entanto, já podemos perceber expressões mais amenas de algumas atrizes, uma vez que a câmera já assume o importante papel de frisar as dimensões psicológicas das personagens.
A câmera estática foi aos poucos se movimentando até ganhar uma infinidade de movimentações e ângulos essenciais para a dramaticidade dos filmes. O gênero do terror, que com o tempo foi evoluindo, fez surgir alguns subgêneros que se tornaram grandes sucessos. Entre eles está o found footage, que permitiu o registro em vídeo de acontecimentos atemorizantes a partir do próprio personagem do filme, que segura a câmera e registra tudo o que acontece. Muitas vezes o registro é feito por um cinegrafista profissional que simula o movimento amador de segurar a câmera, para que o espectador imagine que as imagens tenham sido feitas pelo próprio personagem do filme.
Como aponta o site foundfootagecritic.com, uma forte característica do found footage é de que essa imagens que fazem parte do filme, foram perdidas e subsequentemente descobertas e disponibilizados para o espectador. Todas as câmeras usadas fazem parte do próprio filme, como um objeto de cena essencial. Segundo o site, outros elementos são apontados e importantes para caracterizar um filme como um autêntico found footage:
  • Perspectiva em primeira pessoa (como um ponto de vista), mas que nesse caso a câmera não se torna o personagem, mas apenas registra aquilo que é vivenciado pelo mesmo, que está em um determinado lugar, segurando a câmera.
  • Mockumentary (o falso documentário) - filmado/gravado na forma de entrevistas e reportagens investigativas dos eventos ocorridos.
  • Imagens capturadas de forma jornalística por uma equipe de profissionais que está investigando os eventos.
  • Imagens de câmera de segurança, que a partir de uma câmera estacionária, filma/ grava automaticamente o que acontece no filme.
  • Diferente de um longa-metragem tradicional, um filme no estilo found footage carece de uma finesse na mise-en-scène, na edição e até mesmo em diálogos mais polidos. O efeito amador é importante nesse subgênero.
O caso é que essa ideia de uma “verdade” documental de algo sobrenatural ou não, (mesmo já apresentando um desgaste hoje em dia) conquista os fãs de terror. Essa estética composta por imagens brutas e uma câmera trepidante, às vezes consegue um efeito de real que consequentemente causa mais temor do que se o filme tivesse sido filmado de forma convencional.
Existe essa falsa sensação de estarmos dentro do filme, no lugar do personagem que realiza as imagens. Consequentemente há a sensação de vulnerabilidade do espectador, que está ali a mercê de qualquer perigo que possa surgir a qualquer momento.
Um elenco relativamente pequeno e composto por atores e atrizes desconhecidos do grande público, também é importante para que o espectador se desvincule, mesmo que inconscientemente, de que está diante de um filme de ficção. Com certeza deve ser mais impactante ver uma pessoa desconhecida ser jogada na parede por uma força sobrenatural, do que vermos Tom Cruise passando pela mesma situação. 
Antes de falar sobre A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999), vale apontar que essa ideia de câmera na mão já foi usada há muito tempo atrás. Francesco Bertolini e Adolfo Padovan quando filmaram L'Inferno (1911), primeira adaptação (ainda que livremente) da Divina Comédia de Dante Alighieri, incluíam alguns planos feitos com a câmera na mão. A câmera no entanto, não representava um personagem que estivesse fazendo as imagens do filme, como cita William K. Everson em 1998 no livro American Silent Film.
 A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960), dirigido por Michael Powell, traz Karlheinz Böhm na pele de um serial killerde mulheres que usa o tripé de sua câmera para cometer os assassinatos ao mesmo tempo em que filma tudo. O voyeurismo e o olhar da câmera, porém, estão presentes apenas no momento em que o personagem vai matar suas vítimas. O filme é um dos primeiros a inaugurar outro subgênero do terror: o slasher
Já o diretor italiano Ruggero Deodato revolucionou o estilo found footage como estilo narrativo no polêmico filme Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980). A popularidade no entanto, só viria a acontecer de fato com A Bruxa de Blair. Em uma resenha sobre o filme V/H/S para o site A.V Club, Scott Tobia aponta que o subgênero found footage se tornou entre os anos 2000 e 2010 o sucesso que o slasher foi para o cinema de horror nos anos 80. Podemos ver claramente isso nas franquias de Atividade ParanormalV/H/S e em filmes como Poder Sem Limites(Chronicle, 2012), Cloverfield (Cloverfield: Monstro, 2008), O Último Exorcismo (The Last Exorcism, 2010), entre outros. A Conspiração (The Conspiracy, 2012), deu um novo gás ao subgênero, mostrando que o found footage ainda pode ser criativo e assustador.
Mas talvez o que pouca gente saiba, é que mesmo antes de A Bruxa de Blair ser um sucesso na época em que foi lançado, um filme chamado The McPherson Tape (também conhecido como UFO Abduction) foi filmado em 1989, antecedendo em dez anos A Bruxa de Blair.
Dean Alioto escreveu, dirigiu, filmou e produziu o filme pela Indie Syndicate Productions por $ 6.500. Concebido como um simples vídeo caseiro, a história gira em torno de uma família que está comemorando o aniversário de uma garotinha em 1983. Durante a festa, alguns personagens se deparam com uma invasão alienígena. Com duração de 45 minutos, o filme não é tão assustador ou intrigante como A Bruxa de Blair, mas tem seus momentos interessantes.
Dirigido e roteirizado por Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, A Bruxa de Blair fica em evidencia na discussão por ser o primeiro filme no estilo found footage a ser exibido nos cinemas de todo o mundo e por ter chamado a atenção na época em que foi lançado. Olhando hoje, ele pode parecer até bem simplório, mas é preciso contextualizá-lo no ano em que foi lançado. A Internet no Brasil, mesmo com sua chegada no ano de 1989, ou seja, dez anos antes da estreia de A Bruxa de Blair, não fazia parte da realidade dos brasileiros. Sendo assim, era impossível buscar mais informações sobre o longa, o que fez com que muita gente (até mesmo nos EUA) facilmente acreditasse que o filme fosse verdadeiro. 
Sánchez e Myrick criaram uma lenda falsa sobre a maldição de uma bruxa e a apresentaram no canal Sci-Fi como um falso documentário, antes do lançamento do filme. Além disso, um site foi criado na época para que mais detalhes sobre a lenda fossem divulgados. O capricho foi grande, com direito a artigos de jornais e reportagens televisivas com entrevistas encenadas para enganar os espectadores.
Na sinopse, três colegas de uma faculdade de cinema, resolvem filmar um documentário sobre a lenda da Bruxa de Blair. Além de entrevistar as pessoas da pequena cidade para saberem mais sobre a tal lenda, os três colegas andam pela floresta em busca dos locais onde teriam acontecido desaparecimentos, rituais e assassinatos. Com o passar do tempo, o grupo começa a se perder enquanto à noite coisas estranhas começam a acontecer.
O filme conta com curiosidades tão interessantes quanto o filme, como o fato dos atores Heather Donahue, Joshua Leonard e Michael C. Williams, acreditarem durante as filmagens do longa, que a lenda da bruxa era real. O elenco só foi descobrir que tudo foi criado pelos cineastas, depois de uma exibição em um festival. As filmagens duraram oito dias, em compensação a edição levou oito meses para ser finalizada.
Os diretores venderam o filme como real, o que fez com que quase todo mundo acreditasse que as imagens fossem verídicas ou pelo menos uma dramatização de uma história real. Até mesmo cartazes anunciando o “desaparecimento” dos atores do filme foram colocados em postes em Cannes durante o festival.
Se por um lado assistir ao longa pela primeira vez no dias atuais, pode criar uma sensação de já termos visto algo parecido antes (já que a partir de 2010 houve a volta do found footage que contou com novas franquias e filmes), por outro lado A Bruxa de Blair parece ainda manter um frescor no que diz respeito à atmosfera criada para valorizar a tensão.
Heather é a personagem que assume o filme (real) e o documentário (dentro do filme) realizado por ela e seus colegas. A personagem é a mais interessada no projeto e graças a sua motivação em registrar tudo (afinal o registro de tudo o que acontece é essencial no found footage), o espectador tem acesso aos bastidores do documentário, assim como as imagens das entrevistas com pessoas da cidade que falam sobre a lenda. Aliás, os entrevistados da cidade também eram atores já instruídos a falarem sobre a lenda da bruxa, para total desconhecimento do elenco principal, fazendo com que as reações de Heather, Joshua e Michael fossem verdadeiras.
As imagens diurnas basicamente mostram a dinâmica dos colegas e as brigas que servem para criar um conflito, além daquele de caráter sobrenatural. Como num bom filme de terror, personagens desestruturados e vulneráveis às forças sobrenaturais, constituem dois ingredientes muito importantes tanto no subgênero do found footage, quanto no próprio terror. Esses conflitos aliás, ganharam mais verdade quando os diretores começaram a dar cada vez menos comida para os atores enquanto eles estavam na mata.
Com esse conflito como forma de desestabilizar os personagens, que se veem perdidos na mata durante o dia, à noite é preciso parar e acampar. Aqui é quando o filme consegue um de seus triunfos: criar o medo naquilo que não é visto. Com pouca luz na escuridão da noite, as imagens da floresta se reduzem a galhos torcidos, sombras e um câmera inquieta que busca captar algo a partir dos gritos de crianças vindos de algum lugar da mata. É aí que muitos espectadores ficam atentos a qualquer coisa que possa surgir do nada na frente da câmera. O longa consegue o feito de fazer o espectador até mesmo se enganar ao pensar que viu algo. Quando às vezes as luzes se apagam (quando os personagens decidem não chamar atenção à noite) ouvimos apenas as vozes dos mesmos, enquanto nossa imaginação pode ser preenchida com as imagens que quisermos.
Vale apontar que no roteiro, em um determinado momento, a imagem da bruxa era pra ser vista na câmera, mas o cinegrafista responsável por essa cena específica esqueceu de virar a câmera para enquadrar a atriz que seria a feiticeira. O resultado disso? Um erro essencial para o filme, que não traz sustos gratuitos e deixa muito para a imaginação do espectador.
A Bruxa de Blair é sem dúvida um filme pioneiro no found footage, mesmo sendo o segundo filme desse subgênero, ao abrir o caminho para tantos outros filmes que viriam por volta de onze anos depois. Sem sombra de dúvidas, o longa contribuiu para trazer algo de novo no gênero do terror.

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