Nosso cinema já retratou em muitos filmes, o sertão e a vida dos nordestinos. Questões como a seca, a pobreza, a fome, o conservadorismo e a forte religiosidade, durante anos, ilustraram uma característica extremamente forte na nossa cultura e na nossa história. Mesmo com sua grande importância para o cinema, muita coisa mudou e alguns filmes que se passam no sertão, começaram a trazer questões também pertinentes e mais pessoais dentro desse mundo.
Um bom exemplo é o filme Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro. O sonho aqui de ter uma vida melhor, deixa de lado a miséria extrema, quando o maior sonho do protagonista Iremar (Juliano Cazarré), é se tornar-se estilista no Polo de Confecções do Agreste. Enquanto trabalha nas famosas vaquejadas, o personagem cria e costura roupas ao mesmo tempo em que quebra muitos estereótipos.
Com A História da Eternidade (2015) não é diferente. Primeiro filme do pernambucano Camilo Cavalcante, o longa foi exibido no Festival de Roterdã, na Holanda e ganhou diversos prêmios, como o de melhor filme no Festival de Paulínia, além de ser eleito o melhor filme pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).
O filme se passa em um vilarejo do sertão e gira em torno de três personagens principais. Querência (Marcelia Cartaxo) acaba de perder seu filho e enquanto passa pelo processo de luto, é cortejada por Aderaldo (Leonardo França), um sanfoneiro cego que não desiste da mulher e está disposto a esperar até que a mesma esteja pronta para lhe corresponder. Dona Das Dores (Zezita de Matos) é uma senhora religiosa que vive sozinha. Ela espera a chegada de seu neto que veio de São Paulo para passar um tempo com ela. Por último, Afonsina (Débora Ingrid), é uma jovem que sonha em conhecer o mar. Ela vive com seu pai machista e conservador, Nataniel (Cláudio Jaborandy) e seus irmãos. Seu maior amigo é seu tio João “Dinho” (Irandhir Santos), um homem bom e ligado às artes, que sofre de crises de convulsão. O homem que vive na casa alugada de seu irmão Nataniel, que desaprova o lado artístico do irmão.
Em uma atmosfera cheia de poesia visual e uma fotografia belíssima, que algumas vezes parece lembrar uma versão do agreste de um quadro de Edward Hopper, o trabalho de luz e sombra contextualiza a emoção de suas personagens ao mesmo tempo em que fica entra uma representação naturalista e romântica do sertão brasileiro.
Se por um lado as casas dessas três mulheres ainda retratam a simplicidade, por outro cenas em que a família de Afonsina se reúne para almoçar e jantar, mostram uma refeição simples, mas o bastante para que todos possam se alimentar. Nataniel reclama da seca e de um período difícil que está enfrentando, mas no filme isso não se torna um problema notório. Já Dona das Dores, leva um prato farto de comida para Querência, que ainda chora pela morte do filho.
Dentro desse conservadorismo e machismo no núcleo de Afonsina, João faz questão de expressar sua veia artística em frente sua casa, sem se importar com o que dizem. Mais do que uma simples apresentação, a dança que o personagem faz enquanto toca a música “Fala” da banda Secos e Molhados, é na verdade uma explosão do que sente o personagem e de sua vontade de manifestar sua arte, mesmo que depois seja repreendido por Nataniel.
E o que dizer dessas três mulheres? Muito longe de uma abordagem focada na pobreza ou na seca, aqui isso já não tem importância. Se Afonsina poderia facilmente sonhar em ir para a cidade e buscar outras condições de vida, a garota quer apenas conhecer o mar. Esse desejo parece ser transferido para o tio, que à sua maneira (e diga-se de passagem, bem poética) mostra o “mar” para a sobrinha. A força de sua personagem também está na forma como fica em conflito com seu pai, num rumo polêmico e ousado, mesmo se o filme se passasse em São Paulo.
Mais polêmico é o núcleo de Dona das Dores. A religiosidade aqui se dá por parte dessa personagem, que sempre frequenta a missa e tem em sua casa, uma mesa com diversos retratos de santos, velas, rosários e com a bíblia. A chegada do neto traz memórias e lembranças que se dão antes da chegada do rapaz, quando a senhora pega uma caixa de fotos antigas e lembra do jovem ainda na infância. O que parece ser um simples relacionamento entre neto e avó, acaba tomando um rumo ainda mais polêmico do que na história de Afonsina. Repressão religiosa e sexualidade entram em conflito quando Dona das Dores encontra uma revista pornográfica nas coisas do neto. O despertar de uma sexualidade que parecia à muito tempo adormecida ou talvez nunca descoberta por completo, fará com que a senhora projete esse desejo no próprio neto. A culpa é inevitável e a auto punição também.
A mais romântica de todas, seja talvez a história de Querência e Aderaldo. O filme abre logo com sua história e é responsável por momentos em que a fotografia tem seus ápices. Aqui o processo do luto leva tempo e requer paciência. Tanto a nossa, quanto a de Aderaldo, que vai até a janela da mulher todas as manhãs, tocar sanfona. Detalhes como uma fresta de luz dentro do quarto da personagem, ou a janela que é aberta aos poucos, antes da porta ser finalmente aberta, mostra a delicadeza com que a personagem vai aos poucos abrindo o seu coração para o amor.
A chuva no filme tem outro papel muito importante. Aos mesmo tempo em que aflora as emoções das personagens e culminam no ápice das ações e da entrega (cada uma à sua maneira) ao desejo de cada uma dessas três mulheres, traz também algumas consequências que serão mais difíceis para Dona das Dores e Afonsina. Para Querência a chuva traz como consequência, a necessidade de um tempo só para ela, como se a água levasse de vez resquícios de seu luto e ela precisasse reerguer suas estruturas abaladas.
A História da Eternidade é um filme que quebra muitos conceitos já estabelecidos quando falamos sobre filmes passados no sertão do Brasil. Com ênfase em seus personagens e no que eles sentem, o sertão deixa de ser o palco do sofrimento e da miséria, para se tornar um lugar cheio de atmosfera que dá ao filme e principalmente às histórias, um tom romântico e por vezes quase fabulesco, mas ao mesmo tempo em que fala de questões reais e palpáveis, como nosso desejos e emoções.
Confira o trailer!