Quando o cinema surgiu, a câmera representava o olhar de um mero espectador que estava ali, exercendo seu papel de observador. Os filmes traziam no próprio ato de mostrar alguma coisa, o entretenimento para o seu público. O termo cinema de atrações, citado por Flávia Cesariano Costa no livro O Primeiro Cinema – Espetáculo, Narração, Domesticação, designa a experiência do cinema vivida pela plateia, muito semelhante a uma apresentação teatral.
Nesse tipo de cinema que se iniciou em 1895 com os irmãos Lumière, não havia motivações nos personagens que apareciam nos filmes. Já os planos, não se aproximavam do rosto dos atores, ou até mesmo dos transeuntes que estavam nas ruas e tinham sua imagem captada por aquele objeto chamado cinematógrafo.
Com D. W. Griffith, esse cinema de atração, cita Flávia, sofre uma transição que muda o cinema drasticamente. A partir de 1915, Griffith integra o cinema à cultura dominante ao mudar a gramática do fazer cinema. A câmera passa a dar dimensões psicológicas aos personagens a partir do momento em que ela se aproxima do rosto dos atores e das atrizes. No cinema de atrações, as expressões exageradas passavam para o espectador a ideia de sentimentos e sensações vividos pelos personagens. Em alguns filmes de Griffith no entanto, já podemos perceber expressões mais amenas de algumas atrizes, uma vez que a câmera já assume o importante papel de frisar as dimensões psicológicas das personagens.
A câmera estática foi aos poucos se movimentando até ganhar uma infinidade de movimentações e ângulos essenciais para a dramaticidade dos filmes. O gênero do terror, que com o tempo foi evoluindo, fez surgir alguns subgêneros que se tornaram grandes sucessos. Entre eles está o found footage, que permitiu o registro em vídeo de acontecimentos atemorizantes a partir do próprio personagem do filme, que segura a câmera e registra tudo o que acontece. Muitas vezes o registro é feito por um cinegrafista profissional que simula o movimento amador de segurar a câmera, para que o espectador imagine que as imagens tenham sido feitas pelo próprio personagem do filme.
Como aponta o site foundfootagecritic.com, uma forte característica do found footage é de que essa imagens que fazem parte do filme, foram perdidas e subsequentemente descobertas e disponibilizados para o espectador. Todas as câmeras usadas fazem parte do próprio filme, como um objeto de cena essencial. Segundo o site, outros elementos são apontados e importantes para caracterizar um filme como um autêntico found footage:
- Perspectiva em primeira pessoa (como um ponto de vista), mas que nesse caso a câmera não se torna o personagem, mas apenas registra aquilo que é vivenciado pelo mesmo, que está em um determinado lugar, segurando a câmera.
- Mockumentary (o falso documentário) - filmado/gravado na forma de entrevistas e reportagens investigativas dos eventos ocorridos.
- Imagens capturadas de forma jornalística por uma equipe de profissionais que está investigando os eventos.
- Imagens de câmera de segurança, que a partir de uma câmera estacionária, filma/ grava automaticamente o que acontece no filme.
- Diferente de um longa-metragem tradicional, um filme no estilo found footage carece de uma finesse na mise-en-scène, na edição e até mesmo em diálogos mais polidos. O efeito amador é importante nesse subgênero.
O caso é que essa ideia de uma “verdade” documental de algo sobrenatural ou não, (mesmo já apresentando um desgaste hoje em dia) conquista os fãs de terror. Essa estética composta por imagens brutas e uma câmera trepidante, às vezes consegue um efeito de real que consequentemente causa mais temor do que se o filme tivesse sido filmado de forma convencional.
Existe essa falsa sensação de estarmos dentro do filme, no lugar do personagem que realiza as imagens. Consequentemente há a sensação de vulnerabilidade do espectador, que está ali a mercê de qualquer perigo que possa surgir a qualquer momento.
Um elenco relativamente pequeno e composto por atores e atrizes desconhecidos do grande público, também é importante para que o espectador se desvincule, mesmo que inconscientemente, de que está diante de um filme de ficção. Com certeza deve ser mais impactante ver uma pessoa desconhecida ser jogada na parede por uma força sobrenatural, do que vermos Tom Cruise passando pela mesma situação.
Antes de falar sobre A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999), vale apontar que essa ideia de câmera na mão já foi usada há muito tempo atrás. Francesco Bertolini e Adolfo Padovan quando filmaram L'Inferno (1911), primeira adaptação (ainda que livremente) da Divina Comédia de Dante Alighieri, incluíam alguns planos feitos com a câmera na mão. A câmera no entanto, não representava um personagem que estivesse fazendo as imagens do filme, como cita William K. Everson em 1998 no livro American Silent Film.
A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960), dirigido por Michael Powell, traz Karlheinz Böhm na pele de um serial killerde mulheres que usa o tripé de sua câmera para cometer os assassinatos ao mesmo tempo em que filma tudo. O voyeurismo e o olhar da câmera, porém, estão presentes apenas no momento em que o personagem vai matar suas vítimas. O filme é um dos primeiros a inaugurar outro subgênero do terror: o slasher
Já o diretor italiano Ruggero Deodato revolucionou o estilo found footage como estilo narrativo no polêmico filme Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980). A popularidade no entanto, só viria a acontecer de fato com A Bruxa de Blair. Em uma resenha sobre o filme V/H/S para o site A.V Club, Scott Tobia aponta que o subgênero found footage se tornou entre os anos 2000 e 2010 o sucesso que o slasher foi para o cinema de horror nos anos 80. Podemos ver claramente isso nas franquias de Atividade Paranormal, V/H/S e em filmes como Poder Sem Limites(Chronicle, 2012), Cloverfield (Cloverfield: Monstro, 2008), O Último Exorcismo (The Last Exorcism, 2010), entre outros. A Conspiração (The Conspiracy, 2012), deu um novo gás ao subgênero, mostrando que o found footage ainda pode ser criativo e assustador.
Mas talvez o que pouca gente saiba, é que mesmo antes de A Bruxa de Blair ser um sucesso na época em que foi lançado, um filme chamado The McPherson Tape (também conhecido como UFO Abduction) foi filmado em 1989, antecedendo em dez anos A Bruxa de Blair.
Dean Alioto escreveu, dirigiu, filmou e produziu o filme pela Indie Syndicate Productions por $ 6.500. Concebido como um simples vídeo caseiro, a história gira em torno de uma família que está comemorando o aniversário de uma garotinha em 1983. Durante a festa, alguns personagens se deparam com uma invasão alienígena. Com duração de 45 minutos, o filme não é tão assustador ou intrigante como A Bruxa de Blair, mas tem seus momentos interessantes.
Dirigido e roteirizado por Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, A Bruxa de Blair fica em evidencia na discussão por ser o primeiro filme no estilo found footage a ser exibido nos cinemas de todo o mundo e por ter chamado a atenção na época em que foi lançado. Olhando hoje, ele pode parecer até bem simplório, mas é preciso contextualizá-lo no ano em que foi lançado. A Internet no Brasil, mesmo com sua chegada no ano de 1989, ou seja, dez anos antes da estreia de A Bruxa de Blair, não fazia parte da realidade dos brasileiros. Sendo assim, era impossível buscar mais informações sobre o longa, o que fez com que muita gente (até mesmo nos EUA) facilmente acreditasse que o filme fosse verdadeiro.
Sánchez e Myrick criaram uma lenda falsa sobre a maldição de uma bruxa e a apresentaram no canal Sci-Fi como um falso documentário, antes do lançamento do filme. Além disso, um site foi criado na época para que mais detalhes sobre a lenda fossem divulgados. O capricho foi grande, com direito a artigos de jornais e reportagens televisivas com entrevistas encenadas para enganar os espectadores.
Na sinopse, três colegas de uma faculdade de cinema, resolvem filmar um documentário sobre a lenda da Bruxa de Blair. Além de entrevistar as pessoas da pequena cidade para saberem mais sobre a tal lenda, os três colegas andam pela floresta em busca dos locais onde teriam acontecido desaparecimentos, rituais e assassinatos. Com o passar do tempo, o grupo começa a se perder enquanto à noite coisas estranhas começam a acontecer.
O filme conta com curiosidades tão interessantes quanto o filme, como o fato dos atores Heather Donahue, Joshua Leonard e Michael C. Williams, acreditarem durante as filmagens do longa, que a lenda da bruxa era real. O elenco só foi descobrir que tudo foi criado pelos cineastas, depois de uma exibição em um festival. As filmagens duraram oito dias, em compensação a edição levou oito meses para ser finalizada.
Os diretores venderam o filme como real, o que fez com que quase todo mundo acreditasse que as imagens fossem verídicas ou pelo menos uma dramatização de uma história real. Até mesmo cartazes anunciando o “desaparecimento” dos atores do filme foram colocados em postes em Cannes durante o festival.
Se por um lado assistir ao longa pela primeira vez no dias atuais, pode criar uma sensação de já termos visto algo parecido antes (já que a partir de 2010 houve a volta do found footage que contou com novas franquias e filmes), por outro lado A Bruxa de Blair parece ainda manter um frescor no que diz respeito à atmosfera criada para valorizar a tensão.
Heather é a personagem que assume o filme (real) e o documentário (dentro do filme) realizado por ela e seus colegas. A personagem é a mais interessada no projeto e graças a sua motivação em registrar tudo (afinal o registro de tudo o que acontece é essencial no found footage), o espectador tem acesso aos bastidores do documentário, assim como as imagens das entrevistas com pessoas da cidade que falam sobre a lenda. Aliás, os entrevistados da cidade também eram atores já instruídos a falarem sobre a lenda da bruxa, para total desconhecimento do elenco principal, fazendo com que as reações de Heather, Joshua e Michael fossem verdadeiras.
As imagens diurnas basicamente mostram a dinâmica dos colegas e as brigas que servem para criar um conflito, além daquele de caráter sobrenatural. Como num bom filme de terror, personagens desestruturados e vulneráveis às forças sobrenaturais, constituem dois ingredientes muito importantes tanto no subgênero do found footage, quanto no próprio terror. Esses conflitos aliás, ganharam mais verdade quando os diretores começaram a dar cada vez menos comida para os atores enquanto eles estavam na mata.
Com esse conflito como forma de desestabilizar os personagens, que se veem perdidos na mata durante o dia, à noite é preciso parar e acampar. Aqui é quando o filme consegue um de seus triunfos: criar o medo naquilo que não é visto. Com pouca luz na escuridão da noite, as imagens da floresta se reduzem a galhos torcidos, sombras e um câmera inquieta que busca captar algo a partir dos gritos de crianças vindos de algum lugar da mata. É aí que muitos espectadores ficam atentos a qualquer coisa que possa surgir do nada na frente da câmera. O longa consegue o feito de fazer o espectador até mesmo se enganar ao pensar que viu algo. Quando às vezes as luzes se apagam (quando os personagens decidem não chamar atenção à noite) ouvimos apenas as vozes dos mesmos, enquanto nossa imaginação pode ser preenchida com as imagens que quisermos.
Vale apontar que no roteiro, em um determinado momento, a imagem da bruxa era pra ser vista na câmera, mas o cinegrafista responsável por essa cena específica esqueceu de virar a câmera para enquadrar a atriz que seria a feiticeira. O resultado disso? Um erro essencial para o filme, que não traz sustos gratuitos e deixa muito para a imaginação do espectador.
A Bruxa de Blair é sem dúvida um filme pioneiro no found footage, mesmo sendo o segundo filme desse subgênero, ao abrir o caminho para tantos outros filmes que viriam por volta de onze anos depois. Sem sombra de dúvidas, o longa contribuiu para trazer algo de novo no gênero do terror.
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