domingo, 22 de julho de 2018

O questionamento visto como loucura no filme "Medo do Medo"


O Novo Cinema Alemão teve sua influencia nas famosas Nouvelle Vagues europeias, como aponta Mark Cousins no livro História do Cinema. Em 1962, um grupo de cineastas lançou um manifesto que rejeitava “o cinema alemão convencional”, que sob a ameaça da TV, se encontrava em queda livre. Segundo esses cineastas, esse cinema precisava de novas liberdades.
Com o forte crescimento da Alemanha Ocidental, aponta Cousins, a culpa sentida pelo país por conta das atrocidades do holocausto, passou a ser aos poucos anestesiada. Tabloides de direita passaram a cobrir esse lado sombrio da história alemã, e buscaram exaltar um nacionalismo em prol de um bem-estar. Com isso, os jovens criativos politicamente mais à esquerda, começaram a se incomodar com essa ideia de que tudo ia bem e que nada precisava ser questionado ou exposto. A produção alemã nessa época renascia artisticamente enquanto subsídios públicos desempenhavam um papel chave nesse renascimento. Por doze anos, o Novo Cinema Alemão contou com nomes como Alexander Kluge, Jean-Marie Straub, Margarethe von Trotta e Rainer Werner Fassbinder. Esse cinema buscava revelar o falso otimismo da época e causar propositalmente uma inquietude no espectador.
Dirigido por Rainer Werner Fassbinder, O Medo do Medo (Angst vor der Angst, 1975), foi lançado para a TV. O cineasta foi influenciado pelo cinema do também alemão, Douglas Sirk, conhecido pelos seu trabalho com o melodrama durante a década de 50 em Hollywood. É possível notarmos o melodrama no cinema de Fassbinder, porém não podemos confundir com melodramas caricatos e rasos como os das famosas novelas mexicanas. Esse melodrama menos escancarado no cinema de Sirk e Fassbinder, traz críticas sociais e personagens mais complexos.
Em O Medo do Medo, Margot (Margit Carstensen) é uma mulher de classe-média, casada com Kurt (Ulrich Faulhaber) e mãe de uma menina. Prestes a dar à luz a um menino, Margot sente que algo está errado com sua vida aparentemente perfeita. Sua sogra, interpretada por Brigtte Mira, e sua cunhada, Lore (Irm Hermann) são hostis com ela e frequentemente reprovam tudo o que ela faz. Já Kurt, prefere dedicar todo o seu tempo estudando para um exame importante, ignorando Margot quase que por completo.
Em um primeiro momento estamos diante de uma história sobre uma dona de casa que descobre sofrer de esquizofrenia. Fassbinder faz ao longo do filme, o uso de um efeito que dá à imagem vista através do ponto de vista da protagonista, um efeito de ondulação, que distorce a imagem. Isso claramente apresenta a forma com que Margot passa a enxergar sua realidade.
Como dito acima, em um primeiro momento, esse drama pessoal parece ser unicamente o ponto principal da história. No entanto, estamos diante de um filme que busca ir mais além ao retratar a esquizofrenia de Margot. A doença aqui parece nada mais que uma metáfora para apontar a vida de uma mulher que se vê sem rumo, ou até pior, que descobriu que está vivendo uma vida que talvez nunca quis ou simplesmente um despertar para a realidade.
Motivos para essa interpretação, vão ficando cada vez mais óbvios no decorrer do filme. Primeiro somos apresentados a uma imagem de família comum. A casa é bem arrumada, colorida, o marido chega em casa e vai ler o jornal enquanto Margot prepara um bolo. Por vezes a imagem da sala com todos presentes e reunidos é emoldurada por uma porta que ao mesmo tempo em que coloca essa família próxima e enquadrada como em um porta retrato, também espreme e dá uma sensação claustrofóbica para Margot.
Isso sem contar nos enquadramentos em que a protagonista tem seu rosto mostrado pela metade, simbolizando uma mulher incompleta. O espelho, símbolo forte no cinema expressionista alemão, também surge aqui de forma nada sutil, mas nem por isso busca insultar nossa inteligência. Margot claramente é vista através de espelhos que parecem nos mostrar explicitamente o questionamento de sua imagem dentro de uma sociedade (que se dá através de sua família e de seu médico e do farmacêutico do bairro) conservadora e retrógada que a vê como mãe, esposa e objeto sexual. O que começa como algo visual, fica claro para nós quando ela se encara no espelho e diz: “Essa sou eu?”.
Os sintomas da “loucura” de Margot são os de questionar a escola da filha, onde as crianças mal podem falar e são enfileiradas como uma linha de montagem de uma fábrica. Sair para comprar um vestido também é algo que já não traz mais alegria para a personagem, que encontra no médico que a examina, o vício em Valium. Ele nem mesmo parece se importar com a mulher, que quando fica em um estado catatônico, ouve do médico que está tudo bem. Seu marido pouco tem interesse em conversar com ela, dedicando seu tempo unicamente aos estudos e a assistir televisão, que ironicamente, ao mesmo tempo em que o objeto aliena Kurt, foi justamente na TV em que foi exibido o filme que está sendo discutido aqui.
Mesmo dentro do que podemos chamar de uma “loucura sã”, Margot toma a iniciativa de chamar o médico quando sua bolsa estoura e seu marido pensa em chamar sua mãe e sua cunhada para ajudar. Ela nega a ajuda e faz tudo praticamente só. Fassbinder coloca duas mulheres (sogra e cunhada de Margot) como personagens machistas e conservadores, que pensam que a mulher deve se dedicar unicamente a cuidar da casa e dos filhos.
Já o misterioso Sr. Bauer, parece o único que entende Margot, uma vez que também compartilha da mesma insanidade que a personagem. A própria mulher se esquiva dele sempre que o vê na rua, enquanto nunca sabemos de fato sua participação na vida de Margot. Talvez um amante? Um amor do passado? Não importa. O Sr. Bauer entende a protagonista e aparentemente quer ajudá-la, mas a personagem não entende sua insanidade como uma fuga sadia de uma vida monótona que não faz mais sentido para ela, optando assim ouvir por ouvir os outros e se internar em uma clínica.
Lá ela consegue finalmente a cura de sua doença e está pronta para voltar a ter uma vida normal dentro dessa status quo que já define seu papel para o resto da vida. Mesmo assim, ainda enxergamos a imagem distorcida ao vermos o Sr. Bauer sendo buscado pelo IML depois de ter se suicidado. Será o suicídio a resposta do personagem ao perceber que não pôde buscar sozinho uma mudança significativa? Será a imagem distorcida a visão de Margot de que ela ainda não se curou de sua capacidade de questionar? Ou somos nós, espectadores que no dia a dia parecemos insanos quando somos contrários a pensamentos retrógrados que nunca visam uma evolução do pensamento?
Confira um trecho do filme!

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