domingo, 29 de outubro de 2017

Marnie, Confissões de uma ladra

Texto de: Danatielly Costa




Marnie, Confissões de uma ladra, é um filme americano do diretor Alfred Hitchcock de 1964, foi baseado no livro de mesmo nome de Winston Graham. O nome original do filme é apenas “Marnie” o subtítulo é brasileiro. 

É um filme do gênero suspense, que conta a história da jovem atraente Marnie Edgar, interpretada pela atriz Tippi Hedren (“Os Pássaros”), que costumava aplicar golpes e roubos de forma compulsiva, e também sofria com ataques de pânico. A moça tinha medos patológicos, como da cor vermelha, de chuva e trovões. Em meio a tudo isso Marnie acaba despertando o interesse de Mark Rutland (Sean Connery), que era seu patrão. Mark se apaixona por ela, e tenta assumir a responsabilidade de ajuda-la a se livrar de sua vida de compulsões.

Assistir Marnie, e refletir sobre o filme nos faz entender mais sobre o trabalho de Alfred Hitchcock, como ele explorava seus temas a fim de surpreender o espectador, e como por vezes fazia uso da psicanálise. O filme inteiro está muito ligado aos estudos de Sigmund Freud, a respeito da sexualidade, sonhos, traumas de infância, histeria, ao subconsciente e a própria psicanálise em si.

Marnie trás nela uma personalidade que é típica de casos de tratamentos psiquiátricos psicanalíticos, que vão sendo identificados no desenrolar da trama, e apesar dela ser uma ladra e golpista, nos sentimos envolvidos com ela ao ponto de torcemos para a personagem, de nos identificarmos com a moça que acaba por se revelar uma vitima das circunstâncias, todo o filme é construído para que possamos fazer esta identificação.

Na primeira cena do filme já vemos Marnie, com uma peruca de cabelos pretos carregando uma bolsa amarela, e andando rapidamente, como se estivesse fugindo de algo, e ficamos sabendo logo de inicio que ela havia dado um golpe em uma empresa, por isso foge, mudando a cor dos cabelos se transformando em uma outra pessoa.
Vemos ela arrumando suas coisas, em um plano detalhe organizando suas múltiplas identidades, e escondendo o dinheiro que roubou, fica evidente de que Marnie é uma ladra.


Na cena em que Marnie visita sua mãe Bernice Edgar (Loise Latham), ao chegar na rua da casa de sua mãe, crianças brincam e cantam uma musica que faz referência a doenças, elas citam o nome de varias doenças, o que nos trás um clima sombrio, nos revelando outro aspecto da personalidade de Marnie que não gostava de crianças.

Na casa com a mãe percebemos o quanto elas tem um relacionamento distante e o quanto isso fazia efeito sobre sua vida, também nessa cena vemos o pânico de Marnie em relação a cor vermelha, ao ver flores vermelhas a tela inteira fica vermelha, nos mostrando o quanto a cor a incomoda, o mesmo recurso de efeito é criado em outras cenas onde objetos da cor aparecem.

Marnie tem pesadelos, o que nos da dicas do seu sofrimento, reforçando a ideia de que tem algo errado com ela. No momento em que sua mãe vai ao seu quarto, e Marnie esta tendo um pesadelo, tem-se um enquadramento da mãe na porta encoberta pela sombra, e permanecendo distante da filha, o que é muito emblemático no sentido de que a situação em que as duas viviam estava escondida, estava na parte escura de Marnie e de sua mãe, uma ideia do subconsciente explorada na construção das imagens formando planos, que ajudam a explorar a narrativa e seus desdobramentos psicológicos 

Marnie usava de sua boa aparência para atrair os homens e engana-los, e assim consegue um novo emprego em um cargo de confiança, e acaba tendo o plano de aplicar outro golpe. O que ela desconhecia era o fato de seu novo chefe saber que ela era uma ladra.

No emprego novo de Marnie temos mais uma cena em que o vermelho aparece, é quando ela se suja com tinta, e entra em pânico para limpar sua blusa, isso chama a atenção de Mark Rutland seu novo chefe, que havia influenciado em sua contratação, por se sentir atraído por ela, mesmo conhecendo seu verdadeiro caráter. Vemos Marnie se limpar com desespero, temos a certeza de que a cor vermelha a remete mais do que apenas medo, a desperta para algo que está soterrado em seu subconsciente.

Enquanto Marnie trabalha, subjetivas dela olhando onde cada coisa ficava observando quando abriam o cofre e onde guardavam a chave, mostram que ela esta prestes a agir, mas que ao mesmo tempo ela é meticulosa e aprecia seus planos com prazer nos revelando que não rouba simplesmente pelo dinheiro, mas sim para se sentir melhor, como um mecanismo para sentir prazer.

Outro detalhe no ambiente de trabalho de Marnie é que apesar do uso que faz de sua sensualidade, não aceita o convite de um colega de trabalho para tomar café, mesmo o moço insistido. Em uma conversa com sua mãe fica bem claro o quanto as duas desprezam homens, e de como tentam afasta-los “Não precisamos de homem nessa casa” cita a mãe de Marnie, “Uma mulher descente não precisa de homem” diz a própria Marnie, esse outro aspecto de sua personalidade nos mostra como é uma mulher confusa de atitudes conflitantes, e como sua vida está cheia de limitações as quais ela mesma se colocava.

Ao ficar para uma hora extra para Trabalhar com Mark Rutland, uma tempestade tira ela de si entrando em pânico, Mark tenta acalma-la e percebe que tem algo errado. Nessa cena tumultuada, com um jogo de luz e sobras acontece o beijo entre Marnie e Mark, uma cena que explora o medo e a sexualidade de forma delicada. O próprio Alfred Hitchcock no trailer do filme e em sua campanha de marketing dizia “Será um filme de suspense? de Sexo? Mistério ou tudo isso junto?”.

Na mesma cena ocorre um dialogo muito importante para a construção da relação entre as personagens onde Mark se coloca como o Psicólogo e Marnie como sua paciente. Onde ele diz ter treinado um Jaguar, e Marnie pergunta “Para fazer o que?”, “Confiar em mim” o responde, e sabemos que essa mesma relação será estabelecida entre eles. A mesma relação acaba acontecendo entre um médico e paciente, estabelecendo uma relação de confiança.

A partir daí a maioria das cenas são de intensos diálogos entre eles, Mark tentando assumir o papel de quem vai tratar de Marnie, sendo o psicanalista que está disposto a ouvir, e buscar a verdade da moça misteriosa.

Quando eles saem juntos para ir a uma corrida de cavalos em uma conversa Marnie diz que não confia nas pessoas, Mark vai ao ponto do problema dela “Você teve uma infância difícil?” pergunta ele. Fica claro que a personagem tinha conhecimentos de psicanálise; Freud em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1905” evidências na relação de problemas na vida adulta com experiências na infância. Mark já tinha informações necessárias para perceber que ela tinha problemas psicológicos, e por já ter conhecimento de seu comportamento, quando ela rouba a empresa novamente e foge sem deixar rastros consegue ir atrás dela, pois tem o desejo de ajuda-la, nesse aspecto temos a noção do envolvimento que Mark tem com Marnie “A Transferência afetiva do psicanalista com a paciente”.


Conforme ele vai se aproximando de Marnie, é cada vez mais revelado quanto perigosa e delicada é a relação entre os dois.

Quando Mark diz que gostaria de casar-se com Marnie para poder cuidar dela, que precisava de ajuda, ao invés de entrega-la a policia, fica claro que a dependência dele por ajuda-la também é doentia, a necessidade da repetição, da autoafirmação dele como alguém que pode ajudar, em uma situação de detentor do controle.
Marnie rejeita o pedido alegando que não é uma mulher comum “Que nunca antes na vida teve um homem”, mesmo assim ele leva à ideia do casamento a diante, convencido de que seria o melhor para ela. A tensão e o suspense do filme vão se configurando na medida em que Mark vai entrando no mundo de Marnie, ficamos aflitos sobre o desenrolar da história, em um jogo de o quanto Mark Rutland consegue pressionar Marnie sem que isso a destrua ou destrua ele. Um drama psicológico, que vai se construindo,  chegando ao ápice na lua de mel em um navio, onde ela não permite que ele a toque.

O suspense de como isso será resolvido nos intriga, temos vários insertes dos dois conversando pelo navio, com Mark sempre fazendo “Sessões de análise” com a esposa.
Em uma noite Mark arranca à camisola de Marnie a força, temos uma Marnie desprotegida, com a feição inexpressiva, e mergulhada na sombra, a estética da iluminação fazendo sombra na metade do rosto de Mark, o revelando como o “Marido que quer o que é seu”, contrastando com o “Psicanalista”, e a sombra no rosto de Marnie em uma bela construção dramática, onde a moça mergulha em todo o seu lado sombrio, a câmera acompanha seu rosto enquanto se deita na cama, e permanece em um close em seu rosto, em um mergulho sombrio, sexual, dramático, Hitchcokiano, Freudiano.



O desafio de Hitchcock durante o resto do filme, é o que fazer depois dessa cena para que Marnie confie em Mark, para que ele possa ajuda-la a se recuperar de seus medos.

Mark não desiste de tentar ajudar Marnie, tenta ensina-la a se sentir amada, a leva para a casa para morarem juntos, leva seu cavalo para que Marnie se sinta melhor, pois se sentia mais segura com o animal, é um tratamento intensivo que ele tenta para ajudar a esposa mentirosa, ladra e frigida.


Marnie volta a ter pesadelos, e nos são fornecidas pistas de seus problemas, que são o mistério no qual a trama gira, ela chama pela mãe, as batidas na porta, que a remetem ao pesadelo e ao pavor, e diz sentir frio ao acordar. O subconsciente dela influenciando o físico. Ao acompanhar isso Mark tenta fazer com Marnie algo muito conhecido do tratamento de Freud, causar a “Catarse”, para que ela se abra e se descubra.

Ela percebendo o que ele tentava fazer diz a frase emblemática “You Freud me jane?” , ela acaba aceitando o desafio que conduz os dois em um jogo de perguntas e respostas rápidas, onde ela se defende o quanto pode até que ele se refira a Cor, ao “Vermelho”, pronto, ela se entrega, entra em uma crise, e pede por ajuda.

Uma personagem fundamental para o filme é Lil Mainwaring (Diane Baker), que apaixonada por Mark, assume um papel recorrente nos filmes de Hitchcock a espiã, aquela que acompanha a história dando o ar de surpresa em momentos importantes, ela logo desconfia do casamento de Marnie e Mark, e se coloca a investigar a relação dos dois. Lil que fornece a informação da mãe de Marnie a Mark, a personagem esta sempre em tons de vermelho contrastando com os outros tons mais claros dos ambientes, revelando o perigo para o espectador que associa a cor ao medo de Marnie.



Um incidente em uma caçada com cavalos, onde Marnie entra em uma crise, ao ver homens cavalgando com roupas vermelhas, a leva para um acidente no qual ela perde seu cavalo de estimação, que se fere muito, Marnie atira no cavalo para sacrifica-lo, a construção da cena, mostra o ódio que Marnie sentia e o desejo de vingança, atira no cavalo no exato momento que Lil diz “Deixe que um homem faça isso”.

Todo o desequilíbrio mental de Marnie chega a seu Máximo, ela foge novamente para roubar, quer buscar equilíbrio no que a conforta. Porém Marnie não consegue tirar dinheiro do cofre de Mark, não tem forças para isso.

Percebemos que toda a terapia dela com o marido estavam começando a funcionar, Mark vai atrás de Marnie, e a leva para a fase final de seu tratamento, o encontro com a mãe a qual ela escondia.

Na casa da mãe, escutamos junto com Marnie a confissão de Bernice Edgar, sobre o que aconteceu no passado que atormentava tanto a filha, com o recurso de um flashback finalmente acompanhamos o que marcará de forma tão terrível toda a vida de Marnie, a cena é a fundamental no filme, com excelente desempenho do elenco. Uma construção perfeita de crime.

“Marnie presenciará em sua infância o abuso de um homem a sua mãe, o homem que também se aproveita dela, a mãe luta com ele e Marnie usa um ferro para matar o homem, quando era apenas uma garotinha”.

Marnie havia bloqueado a lembrança aterrorizante em sua mente, que acabou enchendo seu subconsciente de traumas medos e compulsões, tudo é revelado de forma catártica, tanto para as personagens quanto para o espectador. O Vermelho, o sangue do crime, que inundou o chão, em uma imagem forte e marcante, revelando o motivo do cronico de tempestades, já que no dia que Marnie passara por seu maior trauma chovia fortemente, as batidas, representavam as batida que Marnie havia dado na cabeça do homem, isso explicava o seu desprezo pelos homens.

O caso estava solucionado, Hitchcock não é preciso sobre o futuro de Marnie cabendo ao público a reflexão final, se ela ia se livrar de suas compulsões, e como ela se acertaria com a lei. Tudo que sabemos é que agora ela sabia da verdade sobre a sua história de vida e seu passado.

O filme marca o fim das obras primas de Alfred Hitchcock, em alguns detalhes técnicos como cenários tem uma direção de um tanto ultrapassada para a época, no entanto, esta definitivamente não era a preocupação do diretor, que tinha a ideia de explorar o universo do subconsciente, adicionando isto a sua forma de montagem icônica, para  prender o espectador a suas narrativas.

Na obra o subconsciente é utilizado como possível lugar onde os medos moram, o medo que sempre foi matéria prima para Alfred Hitchcock, e que em Marnie, Confissões de uma ladra,  é revelado ao publico o que constrói o tom de suspense e do mistério. 

O filme que certamente foi polêmico na época, continua sendo nos dias atuais, e de extrema relevância, não só por seus aspectos fílmicos, mas também por sua relevância social, que nos leva a questionar e refletir sobre a posição das mulheres na sociedade o espaço que ela ocupa.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...