segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Rebecca, A Mulher Inesquecível

Crítica
Rebecca, A Mulher Inesquecível


Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo 


Rebecca, A Mulher Inesquecível, é o primeiro filme em solo americano de Alfred Hitchcock. A obra é uma adaptação do romance de Daphne du Maurier, Rebecca, publicado em 1938.


David O. Selznick, famoso produtor americano, mais conhecido por produzir E o Vento Levou, pretendia comprar os direitos de Titanic, que também contaria com a direção de Hitchcock, porém mudou de ideia ao adquirir os direitos de Rebecca.
Joan Fontaine interpreta uma jovem mulher (a personagem não tem nome) que trabalha como dama de companhia para Edythe Van Hopper (Florence Bates). Em Monte Carlo a jovem conhece Maximilian de Winter (Laurence Olivier) e em pouco tempo ambos se apaixonam e se casam.
Os dois vão morar em Manderley, uma casa de campo em Cornwall, mas a jovem moça não ganha a simpatia da Sra. Danvers (Judith Anderson), que trabalha como governanta na mansão desde o casamento anterior do milionário com já sua falecida esposa, Rebecca. A Sra. Danvers tem uma admiração exagerada por Rebecca, alimentando um ódio pela nova esposa de Maximlian, atrapalhando assim a vida da jovem.
David O. Selznick pediu que o filme fosse fiel ao romance (que é mais simples), e embora Hitchcock não considere um filme caracterizado pelo seu suspense, sua direção consegue fazer um grande diferencial. É nítido um mistério e uma sensação de desconforto vivido pela personagem principal enquanto está na mansão de seu novo esposo.
Logo na chegada do casal à mansão, a chuva já prevê que as coisas não serão nada fáceis para a nova senhora de Winter. Joan Fontaine está muito bem no papel e traz na uma expressão corporal mais curvada e introvertida, reflexo de total desconforto no novo ambiente. Isso mudará no decorrer do filme, principalmente quando alguns mistérios forem revelados, e o espectador perceberá a evolução da personagem que refletirá em sua postura e até figurino.
E já comentando as interpretações, a personagem de Judith Anderson, como a excêntrica Sra. Danvers está perfeita. Ela faz uma mulher cheia de mistérios e sua admiração excessiva por Rebecca, deixa implícito o amor platônico que a governanta nutria pela ex-patroa. Apesar de pouco se saber sobre a governanta, ela também tem uma expressão corporal (ou melhor, dizendo, quase nenhuma) que a deixa robótica, a favor da composição de sua personagem. Sua forma mecânica de se locomover e o fato de aparecer e desaparecer do nada em algumas cenas, a fazem parecer um espírito que anda pela mansão, vigiando o lugar que para ela, sempre pertencerá a Rebecca. Hitchcock pediu para que Judith Anderson mexesse as pernas o menos possível ao andar, além de seu vestido mal mostrar seus pés, para que se tivesse a impressão de que a personagem flutuasse.


E o que dizer de Rebecca? A mulher inesquecível e invisível, que ao mesmo tempo é tão presente durante o filme. Sua presença é constantemente relembrada pela Sra. Danvers propositalmente para que a esposa de Maxim se sinta constantemente coagida. Interessante observar que em uma cena em que Maxim relembra a falecida exposa, ele narra suas ações e a câmera começa a se mover pelo ambiente como se Rebecca estivesse em cena no momento. O próprio espectador a imagina se levantando e caminhando.
A fotografia está muito interessante. Planos valorizam a grandiosidade da cenografia e deixam a esposa de Maxim minúscula e desorientada em meio a quadros e espelhos enormes, como se a casa fosse devorá-la. O uso de sombras nas cenas certas também contribui para o suspense. Esse “assombro” no filme se cria na cabeça da personagem e na do espectador através da excelente direção de Hitchcock.



Rebecca, A Mulher Inesquecível recebeu os Oscars de melhor filme e melhor fotografia em preto e branco em 1940.

Ficha Técnica:
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Philip MacDonald, Michael Hogan
Gênero: Drama, Thriller
Elenco: Laurence Olivier, Joan Fontaine, George Sanders, Judith Anderson
Duração: 125 minutos
Ano da produção: 1940



domingo, 29 de outubro de 2017

Marnie, Confissões de uma ladra

Texto de: Danatielly Costa




Marnie, Confissões de uma ladra, é um filme americano do diretor Alfred Hitchcock de 1964, foi baseado no livro de mesmo nome de Winston Graham. O nome original do filme é apenas “Marnie” o subtítulo é brasileiro. 

É um filme do gênero suspense, que conta a história da jovem atraente Marnie Edgar, interpretada pela atriz Tippi Hedren (“Os Pássaros”), que costumava aplicar golpes e roubos de forma compulsiva, e também sofria com ataques de pânico. A moça tinha medos patológicos, como da cor vermelha, de chuva e trovões. Em meio a tudo isso Marnie acaba despertando o interesse de Mark Rutland (Sean Connery), que era seu patrão. Mark se apaixona por ela, e tenta assumir a responsabilidade de ajuda-la a se livrar de sua vida de compulsões.

Assistir Marnie, e refletir sobre o filme nos faz entender mais sobre o trabalho de Alfred Hitchcock, como ele explorava seus temas a fim de surpreender o espectador, e como por vezes fazia uso da psicanálise. O filme inteiro está muito ligado aos estudos de Sigmund Freud, a respeito da sexualidade, sonhos, traumas de infância, histeria, ao subconsciente e a própria psicanálise em si.

Marnie trás nela uma personalidade que é típica de casos de tratamentos psiquiátricos psicanalíticos, que vão sendo identificados no desenrolar da trama, e apesar dela ser uma ladra e golpista, nos sentimos envolvidos com ela ao ponto de torcemos para a personagem, de nos identificarmos com a moça que acaba por se revelar uma vitima das circunstâncias, todo o filme é construído para que possamos fazer esta identificação.

Na primeira cena do filme já vemos Marnie, com uma peruca de cabelos pretos carregando uma bolsa amarela, e andando rapidamente, como se estivesse fugindo de algo, e ficamos sabendo logo de inicio que ela havia dado um golpe em uma empresa, por isso foge, mudando a cor dos cabelos se transformando em uma outra pessoa.
Vemos ela arrumando suas coisas, em um plano detalhe organizando suas múltiplas identidades, e escondendo o dinheiro que roubou, fica evidente de que Marnie é uma ladra.


Na cena em que Marnie visita sua mãe Bernice Edgar (Loise Latham), ao chegar na rua da casa de sua mãe, crianças brincam e cantam uma musica que faz referência a doenças, elas citam o nome de varias doenças, o que nos trás um clima sombrio, nos revelando outro aspecto da personalidade de Marnie que não gostava de crianças.

Na casa com a mãe percebemos o quanto elas tem um relacionamento distante e o quanto isso fazia efeito sobre sua vida, também nessa cena vemos o pânico de Marnie em relação a cor vermelha, ao ver flores vermelhas a tela inteira fica vermelha, nos mostrando o quanto a cor a incomoda, o mesmo recurso de efeito é criado em outras cenas onde objetos da cor aparecem.

Marnie tem pesadelos, o que nos da dicas do seu sofrimento, reforçando a ideia de que tem algo errado com ela. No momento em que sua mãe vai ao seu quarto, e Marnie esta tendo um pesadelo, tem-se um enquadramento da mãe na porta encoberta pela sombra, e permanecendo distante da filha, o que é muito emblemático no sentido de que a situação em que as duas viviam estava escondida, estava na parte escura de Marnie e de sua mãe, uma ideia do subconsciente explorada na construção das imagens formando planos, que ajudam a explorar a narrativa e seus desdobramentos psicológicos 

Marnie usava de sua boa aparência para atrair os homens e engana-los, e assim consegue um novo emprego em um cargo de confiança, e acaba tendo o plano de aplicar outro golpe. O que ela desconhecia era o fato de seu novo chefe saber que ela era uma ladra.

No emprego novo de Marnie temos mais uma cena em que o vermelho aparece, é quando ela se suja com tinta, e entra em pânico para limpar sua blusa, isso chama a atenção de Mark Rutland seu novo chefe, que havia influenciado em sua contratação, por se sentir atraído por ela, mesmo conhecendo seu verdadeiro caráter. Vemos Marnie se limpar com desespero, temos a certeza de que a cor vermelha a remete mais do que apenas medo, a desperta para algo que está soterrado em seu subconsciente.

Enquanto Marnie trabalha, subjetivas dela olhando onde cada coisa ficava observando quando abriam o cofre e onde guardavam a chave, mostram que ela esta prestes a agir, mas que ao mesmo tempo ela é meticulosa e aprecia seus planos com prazer nos revelando que não rouba simplesmente pelo dinheiro, mas sim para se sentir melhor, como um mecanismo para sentir prazer.

Outro detalhe no ambiente de trabalho de Marnie é que apesar do uso que faz de sua sensualidade, não aceita o convite de um colega de trabalho para tomar café, mesmo o moço insistido. Em uma conversa com sua mãe fica bem claro o quanto as duas desprezam homens, e de como tentam afasta-los “Não precisamos de homem nessa casa” cita a mãe de Marnie, “Uma mulher descente não precisa de homem” diz a própria Marnie, esse outro aspecto de sua personalidade nos mostra como é uma mulher confusa de atitudes conflitantes, e como sua vida está cheia de limitações as quais ela mesma se colocava.

Ao ficar para uma hora extra para Trabalhar com Mark Rutland, uma tempestade tira ela de si entrando em pânico, Mark tenta acalma-la e percebe que tem algo errado. Nessa cena tumultuada, com um jogo de luz e sobras acontece o beijo entre Marnie e Mark, uma cena que explora o medo e a sexualidade de forma delicada. O próprio Alfred Hitchcock no trailer do filme e em sua campanha de marketing dizia “Será um filme de suspense? de Sexo? Mistério ou tudo isso junto?”.

Na mesma cena ocorre um dialogo muito importante para a construção da relação entre as personagens onde Mark se coloca como o Psicólogo e Marnie como sua paciente. Onde ele diz ter treinado um Jaguar, e Marnie pergunta “Para fazer o que?”, “Confiar em mim” o responde, e sabemos que essa mesma relação será estabelecida entre eles. A mesma relação acaba acontecendo entre um médico e paciente, estabelecendo uma relação de confiança.

A partir daí a maioria das cenas são de intensos diálogos entre eles, Mark tentando assumir o papel de quem vai tratar de Marnie, sendo o psicanalista que está disposto a ouvir, e buscar a verdade da moça misteriosa.

Quando eles saem juntos para ir a uma corrida de cavalos em uma conversa Marnie diz que não confia nas pessoas, Mark vai ao ponto do problema dela “Você teve uma infância difícil?” pergunta ele. Fica claro que a personagem tinha conhecimentos de psicanálise; Freud em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1905” evidências na relação de problemas na vida adulta com experiências na infância. Mark já tinha informações necessárias para perceber que ela tinha problemas psicológicos, e por já ter conhecimento de seu comportamento, quando ela rouba a empresa novamente e foge sem deixar rastros consegue ir atrás dela, pois tem o desejo de ajuda-la, nesse aspecto temos a noção do envolvimento que Mark tem com Marnie “A Transferência afetiva do psicanalista com a paciente”.


Conforme ele vai se aproximando de Marnie, é cada vez mais revelado quanto perigosa e delicada é a relação entre os dois.

Quando Mark diz que gostaria de casar-se com Marnie para poder cuidar dela, que precisava de ajuda, ao invés de entrega-la a policia, fica claro que a dependência dele por ajuda-la também é doentia, a necessidade da repetição, da autoafirmação dele como alguém que pode ajudar, em uma situação de detentor do controle.
Marnie rejeita o pedido alegando que não é uma mulher comum “Que nunca antes na vida teve um homem”, mesmo assim ele leva à ideia do casamento a diante, convencido de que seria o melhor para ela. A tensão e o suspense do filme vão se configurando na medida em que Mark vai entrando no mundo de Marnie, ficamos aflitos sobre o desenrolar da história, em um jogo de o quanto Mark Rutland consegue pressionar Marnie sem que isso a destrua ou destrua ele. Um drama psicológico, que vai se construindo,  chegando ao ápice na lua de mel em um navio, onde ela não permite que ele a toque.

O suspense de como isso será resolvido nos intriga, temos vários insertes dos dois conversando pelo navio, com Mark sempre fazendo “Sessões de análise” com a esposa.
Em uma noite Mark arranca à camisola de Marnie a força, temos uma Marnie desprotegida, com a feição inexpressiva, e mergulhada na sombra, a estética da iluminação fazendo sombra na metade do rosto de Mark, o revelando como o “Marido que quer o que é seu”, contrastando com o “Psicanalista”, e a sombra no rosto de Marnie em uma bela construção dramática, onde a moça mergulha em todo o seu lado sombrio, a câmera acompanha seu rosto enquanto se deita na cama, e permanece em um close em seu rosto, em um mergulho sombrio, sexual, dramático, Hitchcokiano, Freudiano.



O desafio de Hitchcock durante o resto do filme, é o que fazer depois dessa cena para que Marnie confie em Mark, para que ele possa ajuda-la a se recuperar de seus medos.

Mark não desiste de tentar ajudar Marnie, tenta ensina-la a se sentir amada, a leva para a casa para morarem juntos, leva seu cavalo para que Marnie se sinta melhor, pois se sentia mais segura com o animal, é um tratamento intensivo que ele tenta para ajudar a esposa mentirosa, ladra e frigida.


Marnie volta a ter pesadelos, e nos são fornecidas pistas de seus problemas, que são o mistério no qual a trama gira, ela chama pela mãe, as batidas na porta, que a remetem ao pesadelo e ao pavor, e diz sentir frio ao acordar. O subconsciente dela influenciando o físico. Ao acompanhar isso Mark tenta fazer com Marnie algo muito conhecido do tratamento de Freud, causar a “Catarse”, para que ela se abra e se descubra.

Ela percebendo o que ele tentava fazer diz a frase emblemática “You Freud me jane?” , ela acaba aceitando o desafio que conduz os dois em um jogo de perguntas e respostas rápidas, onde ela se defende o quanto pode até que ele se refira a Cor, ao “Vermelho”, pronto, ela se entrega, entra em uma crise, e pede por ajuda.

Uma personagem fundamental para o filme é Lil Mainwaring (Diane Baker), que apaixonada por Mark, assume um papel recorrente nos filmes de Hitchcock a espiã, aquela que acompanha a história dando o ar de surpresa em momentos importantes, ela logo desconfia do casamento de Marnie e Mark, e se coloca a investigar a relação dos dois. Lil que fornece a informação da mãe de Marnie a Mark, a personagem esta sempre em tons de vermelho contrastando com os outros tons mais claros dos ambientes, revelando o perigo para o espectador que associa a cor ao medo de Marnie.



Um incidente em uma caçada com cavalos, onde Marnie entra em uma crise, ao ver homens cavalgando com roupas vermelhas, a leva para um acidente no qual ela perde seu cavalo de estimação, que se fere muito, Marnie atira no cavalo para sacrifica-lo, a construção da cena, mostra o ódio que Marnie sentia e o desejo de vingança, atira no cavalo no exato momento que Lil diz “Deixe que um homem faça isso”.

Todo o desequilíbrio mental de Marnie chega a seu Máximo, ela foge novamente para roubar, quer buscar equilíbrio no que a conforta. Porém Marnie não consegue tirar dinheiro do cofre de Mark, não tem forças para isso.

Percebemos que toda a terapia dela com o marido estavam começando a funcionar, Mark vai atrás de Marnie, e a leva para a fase final de seu tratamento, o encontro com a mãe a qual ela escondia.

Na casa da mãe, escutamos junto com Marnie a confissão de Bernice Edgar, sobre o que aconteceu no passado que atormentava tanto a filha, com o recurso de um flashback finalmente acompanhamos o que marcará de forma tão terrível toda a vida de Marnie, a cena é a fundamental no filme, com excelente desempenho do elenco. Uma construção perfeita de crime.

“Marnie presenciará em sua infância o abuso de um homem a sua mãe, o homem que também se aproveita dela, a mãe luta com ele e Marnie usa um ferro para matar o homem, quando era apenas uma garotinha”.

Marnie havia bloqueado a lembrança aterrorizante em sua mente, que acabou enchendo seu subconsciente de traumas medos e compulsões, tudo é revelado de forma catártica, tanto para as personagens quanto para o espectador. O Vermelho, o sangue do crime, que inundou o chão, em uma imagem forte e marcante, revelando o motivo do cronico de tempestades, já que no dia que Marnie passara por seu maior trauma chovia fortemente, as batidas, representavam as batida que Marnie havia dado na cabeça do homem, isso explicava o seu desprezo pelos homens.

O caso estava solucionado, Hitchcock não é preciso sobre o futuro de Marnie cabendo ao público a reflexão final, se ela ia se livrar de suas compulsões, e como ela se acertaria com a lei. Tudo que sabemos é que agora ela sabia da verdade sobre a sua história de vida e seu passado.

O filme marca o fim das obras primas de Alfred Hitchcock, em alguns detalhes técnicos como cenários tem uma direção de um tanto ultrapassada para a época, no entanto, esta definitivamente não era a preocupação do diretor, que tinha a ideia de explorar o universo do subconsciente, adicionando isto a sua forma de montagem icônica, para  prender o espectador a suas narrativas.

Na obra o subconsciente é utilizado como possível lugar onde os medos moram, o medo que sempre foi matéria prima para Alfred Hitchcock, e que em Marnie, Confissões de uma ladra,  é revelado ao publico o que constrói o tom de suspense e do mistério. 

O filme que certamente foi polêmico na época, continua sendo nos dias atuais, e de extrema relevância, não só por seus aspectos fílmicos, mas também por sua relevância social, que nos leva a questionar e refletir sobre a posição das mulheres na sociedade o espaço que ela ocupa.   

domingo, 8 de outubro de 2017

Alfred Hitchcock: Um Cinema Extremamente Visual

Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo


Conhecido como “O Mestre do Suspense”, Alfred Hitchcock defendia a ideia de que não há o elemento do suspense na surpresa, mas sim na antecipação do que pode ou não acontecer. Presentear o espectador com uma informação enquanto seus personagens não estão cientes da mesma, cria muito mais tensão do que a surpresa em si. Rotulá-lo apenas como um mestre na arte de fazer suspense seria muito superficial, uma vez que sua grande habilidade técnica a favor do visual de seus filmes favorecia a narrativa e a destacava, muitas vezes com elementos nas entrelinhas.

O Próprio Hitchcock considerava o diálogo bem menos importante na narrativa, acreditando que uma boa história pode ser bem contada com elementos visuais bem construídos. Desde que as primeiras imagens projetadas pelo cinematógrafo dos irmãos Lumière foram exibidas, o mundo nunca mais foi o mesmo: nascia o cinema. A experiência adquirida por Hitchcock no cinema mudo tem forte influência na sua linguagem, caracterizando assim seu estilo fortemente visual.

Após ler uma revista corporativa, Hitchcock soube que a empresa Famous Players-Lasky abriria uma filial em seu país e lá iniciaria a construção de estúdios e um programa de produções. Quando começou a trabalhar na indústria cinematográfica, Hitchcock escrevia e desenhava intertítulos para filmes em uma época em que o cinema ainda era algo muito recente. Cinéfilo muito antes de seu primeiro emprego, ele já acompanhava as pré-estreias dos filmes de Chaplin e Griffith (sua grande influência), além de ler publicações profissionais sobre cinema. Conforme as oportunidades foram surgindo, Hitchcock foi crescendo na indústria cinematográfica e com isso surgiram os primeiros filmes dos quais assumiu a direção. Mas foi em “O Inquilino” (seu terceiro filme) que o diretor nos mostra uma forte característica do seu estilo: o apuro visual.

Uma vez em que no cinema mudo o visual era o elemento chave na arte de contar histórias e encantar plateias do mundo todo, Hitchcock mostrou que tinha talento e sabia dominar esse cinema essencialmente feito apenas de imagens. Esse apuro fortemente visual, continuou acompanhando o cineasta mesmo quando o cinema falado se fez presente.

Considerado pelo próprio Alfred Hitchcock como o primeiro filme que reúne os elementos que compõem seu estilo, O Inquilino (The Lodger, 1927) conta a história de um serial killer que está à solta em Londres e que tem preferência por assassinar mulheres loiras. O longa é baseado no romance de Belloc-Lowndes e na peça Who Is He, co-escrita também por Lowndes.



Drew (Ivor Novello) se hospeda na pensão do casal Bounting (Arthur Chesney e Marie Ault). Eles são os pais de Daisy (June Tripp), uma jovem modelo que é paquerada por Joe (Malcolm Keen), um policial que busca pistas sobre o assassino. A excentricidade de Drew e suas saídas durante a noite levantam suspeitas da dona da pensão e de Joe, que suspeita que o novo inquilino seja o serial killer. No filme, Hitchcock entrega uma obra de forte visual, técnicas inteligentes e várias simbologias.

Existe uma cena em que Drew anda pelo quarto enquanto os outros personagens no andar de baixo, escutam seus passos. Como representar isso no cinema mudo, sem a utilização de intertítulos que expliquem através de diálogos, essa ação? Hitchcock sabiamente faz uso de um piso de vidro (no qual Novello caminha por ele) que nos sugere a noção do som dos passos do personagem.

Não podemos deixar de mencionar também elementos na fotografia do filme que fazem parte do expressionismo alemão, como o uso de sombras distorcidas na janela do quarto da dona da pensão e os próprios intertítulos que apresentam fontes variadas junto com formas geométricas disformes. Mais uma influência na carreira do diretor, que trabalhou no estúdio alemão Universum Film Aktiengesellschaft (UFA), em Neubabelsberg, nos anos 1920. O estúdio foi responsável pelo filme O Gabinete do Doutor Caligari, dirigido em 1919 por Robert Wiene, grande clássico do cinema expressionista.

Hitchcock também faz uso de simbologias religiosas, como uma cena em que uma possível culpa de Drew é representada por sombras  em seu rosto que formam a imagem de um crucifixo. 



O diretor sempre acompanhou a mudanças e inovações técnicas na indústria do cinema que iam surgindo com o passar dos anos e sempre as encarou como um desafio. Mais do que a importância da história, estava em como contá-la.

O suspense, marca registrada de Hitchcock, está presente durante todo o filme, incluindo outros elementos típicos de suas obras, como a perseguição de um homem acusado de cometer um crime e até uma cena em um banheiro que facilmente fará o espectador se lembrar de “Psicose”.

Vale observar que Alfred Hitchcock pretendia deixar o suspense ainda mais evidente ao fazer com que Drew fosse embora numa noite, sem que ninguém soubesse se ele era de fato o serial killer, mas como na época não era aceitável que um astro do cinema fizesse o papel de um assassino, foi preciso contornar a situação.

O Inquilino é uma boa indicação para quem quer começar a conhecer os filmes da carreira de Alfred Hitchcock e perceber que sua inteligência e domínio técnico vieram para marcar o cinema para sempre.

É interessante falar também sobre Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958) e como seu visual reforça sentimentos e constrói uma atmosfera cheia de suspense, obsessão e aspectos psicológicos. Ao começar pela sequência de abertura do filme, que contou com efeitos visuais bem atípicos para a época. Desenhos de espirais se formam na tela simbolizando uma escada caracol e uma queda, que acabam tendo total ligação com a acrofobia de John. Esses elementos são fortemente presentes na narrativa por marcaram um aspecto importante par o personagem.


As cores têm caráter de extrema importância em Um Corpo que Cai. O vermelho, também presente na abertura do filme, pode ser interpretado como sensação de perigo e do romance entre John e “Madeleine” que será conferido logo adiante no decorrer da história. Quando John decide aceitar seguir a esposa de seu amigo, ele entra em um mundo de sedução e fascínio que vão marcar sua vida.

Na cena que marca o primeiro encontro dos dois personagens, a direção de arte já destaca as emoções. O restaurante onde John verá “Madeleine” pela primeira vez é tomado pelo vermelho presente no papel de parede, carpete e cadeiras. Ao mesmo tempo John está sendo tomado pela paixão que logo parece sentir por “Madeleine”. Depois desse primeiro encontro marcado pelo desejo do personagem, ele passa a segui-la a pedido de seu amigo, que suspeita que ela esteja possuída pelo espírito de sua bisavó, Carlotta Valdes. 


Interessante notar, como a personagem passa a ser enquadrada em planos inteiros bem distantes. Além de esses planos fazerem jus ao fato de ela estar sendo seguida por John, (justificável esse distanciamento) ela incorpora tanto para o espectador quanto para John, a figura de uma mulher misteriosa e inalcançável. Lembrando que durante todas essas cenas, não há diálogos entres eles, reforçando ainda mais o mistério e a incerteza. Na galeria Madeleine observa o quadro de Carlotta Valdes enquanto é observada por John. Mais elementos visuais dessa vez convidam o espectador a acreditar na possível possessão. As rosas são o elemento icônico na cena. Elas estão presentes no quadro de Carlotta, no buquê que está ao lado de  Madeleine e também no penteado da própria, que também lembra um botão de rosa. São as imagens mais uma vez reforçando uma ideia.

Já mais adiante, após o resgate de Madeleine na baía de São Francisco, John a leva para seu apartamento e mais uma vez a cor vermelha (no roupão de Madeleine) reforça a paixão em um encontro mais próximo dos dois. A partir daí a atração entre os dois fica mais evidente, porém Madeleine ainda continua com seu status de espectro e de mulher misteriosa e inalcançável. Isso está presente na cena do parque em que a personagem parece “desaparecer” entre as enormes árvores do local. A partir daí a narrativa vai se avançando e uma grande reviravolta acontece: o espectador é levado a achar que Madeleine se suicidou. Isso causa um enorme trauma em John e resulta em uma cena de sonho muito bem elaborada visualmente. Nela, alguns elementos icônicos do filme surgem: pétalas de rosas, uma cova vazia, o fantasma de Carlotta Valdes e a acrofobia de John. Mais uma vez o vermelho está presente na fotografia, dessa vez dando um tom de ameaça.

 O ato de ir ao cinema nos coloca durante um tempo considerável como observadores de vidas que se passam diante de nós em uma tela grande. E quando somos convidados a presenciar um protagonista que também assume o papel de observador dentro do filme? Em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) isso é possível. O filme pode parecer ter um ritmo mais lento, mas conforme ele vai se desenvolvendo e vamos tendo mais informações, essa impressão logo é deixada para trás.



Já que estamos focando em imagens a favor das histórias, Janela Indiscreta é uma prova de que elas falam por si só em boa parte do filme. Logo na cena de abertura, as cortinas que vão se abrindo uma a uma, parecem fazer um convite ao espectador para que ele acompanhe um “espetáculo” que tem como tema a observação. Logo depois, um movimento de traveling adentra para o mundo que vai movimentar toda a história e atiçar o prazer em observar que existe dentro do protagonista e do próprio espectador.

Outro movimento de câmera assume a posição do espectador que observa e segue apresentando alguns dos apartamentos e de seus respectivos moradores, que logo serão objeto da observação do protagonista. Depois a câmera segue pelo apartamento de Jeff, mostrando sua perna engessada, sua câmera quebrada, fotos de um acidente e diversas outras fotos que já nos colocam a par de sua profissão e do motivo que o deixou na sua atual condição. Há também a foto de Lisa, namorada de Jeff, que também assumirá o papel de observadora junto com o namorado, para ajudá-lo. Uma vez confinado em seu apartamento por conta de seu acidente, Jeff passa a dar atenção ao mundo exterior, e ao observar a vida dos vizinhos, suspeita que um deles tenha matado a esposa.


Interessante como a câmera varia em alguns momentos ao assumir o olhar de Jeff e em um determinado momento quando assume o olhar do espectador, ela entrega uma informação apenas para nós que estamos assistindo ao filme e nos faz duvidar se o vizinho de Jeff matou mesmo sua esposa. Isso pode ser observado na cena em que Jeff está dormindo e a câmera mostra uma mulher saindo do apartamento de seu vizinho. Esse momento sabiamente criou um jogo com o espectador que por um momento deixou o protagonista de fora, para que só mais adiante ele tomasse conhecimento de que não viu a mulher saindo do apartamento, pois estava dormindo.

No confronto final, Jeff e seu vizinho estão cara a cara. Embora ambos estejam no mesmo apartamento, a sombra que cobre o rosto dos dois, consegue criar certo distanciamento entre eles. Essa sombra para Jeff também representa seu constrangimento e culpa como observador da vida alheia. Já para seu vizinho, ela também ganha uma representação de constrangimento por ser descoberto, além da “mancha” em sua consciência por ser um assassino.
  
Hitchcock é sem dúvida um diretor que merece ser estudado e ter seus filmes conferidos. Sua forma visual de contar histórias atravessou tantas fases e avanços tão importantes dentro da história do cinema, que não é à toa que diversos diretores se inspiraram e ainda se inspiram no seu estilo único e inconfundível. 







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