Filmado na França em 1928 por Carl Th. Dreyer,
“O Martírio de Joana D'Arc” foi censurado antes do lançamento, e o negativo
original foi destruído em um incêndio. Um segundo negativo de planos
alternativos reeditados por Dreyer também foi considerado perdido em um
incêndio. Por mais de meio século só haviam versões de cópias mutiladas ou em
versão sonora que eram bem diferentes da versão original. Tudo mudou quando em
1981 uma cópia dinamarquesa completa e em bom estado de conservação, foi
encontrada no armário de um sanatório norueguês. Iby Monty, diretor do museu do
cinema dinamarquês e Maurice Drouzy (que ajudou na recuperação dos
intertítulos), juntamente com a Cinemateca Francesa, reconstruíram o filme que
ficou bem próxima da versão original.
Carl Theodor Dreyer nasceu em Copenhagen em 3
de fevereiro de 1889. Passou os primeiros anos de sua vida em orfanatos até ser
adotado pela família Dreyer aos dois anos de idade. Conhecido por
frequentemente lidar com temas religiosos em sua filmografia, sua família
adotiva era adepta a ideias modernas. Quando criança, o cineasta nunca se
sentiu amado pelos pais que o adotaram e o desejo de conhecer sua mãe biológica
era algo sempre presente no diretor.
Entrou para o cinema após trabalhar como jornalista
e passou do cargo de fazer leitura de roteiros, para a direção dos mesmos.
Conhecido pelo perfeccionismo, o que fazia de Dreyer um diretor difícil de
trabalhar, seus filmes são lentos e trazem estudos intensos da psicologia
humana com personagens passando por crises pessoais ou religiosas. No artigo de
Edvin Kau no site dedicado ao cineasta http://english.carlthdreyer.dk,
Kau faz uma interessante
análise da estética de Dreyer na forma como ele organiza a câmera e o espaço em
cena. Muitas das observações se aplicam no filme “O
Martírio de Joana D'Arc”, que será discutido aqui.
Edvin Kau cita em seu artigo uma influência da
arte cubista que se dá através dos ângulos de câmera que são onipresentes.
Lembrando que o longa está focado exatamente (como diz no título) no martírio
de sua protagonista, seu julgamento, sua humilhações, até chegar em sua morte
na fogueira. Esses ângulos diversos que Dreyer usa, traz para o autor
justamente a ideia de uma imagem que busca fluidez na dimensão do espaço
durante o filme. Enquadramentos tortos e o uso do contra-plongée, dão ao filme uma
ideia de uma experencia do que de uma representação histórica exata de como
tudo aconteceu. Esses enquadramentos frisam as autoridades da igreja e a
superioridade de suas posições que engradecem os personagens diante da câmera e
diminuem Joana, que se resume a expressões faciais de sofrimento capazes de
emocionar e impactar o espectador. Já no rosto dos atores, a falta de maquiagem sim, traz uma realidade que
não busca esconder nada. Linhas de expressão, sardas, pintas, tudo é mostrado
como são para que a emoção mais uma vez se torne evidente.
A religiosidade presente nos filmes de Dreyer,
aparecem claramente em “O Martírio de Joana D'Arc” uma vez em que a igreja é
responsável pelo julgamento da protagonista. Alguns símbolos de religiosidade
aparecem em objetos como forma de frisar ainda mais isso. Joana usa uma coroa feita
de junco assim com Jesus usou uma de espinhos. No caso do filme, a tentativa de
ferir a personagem principal se dá através da humilhação do que pela dor
física. Também é possível vermos como as grades da janela do local onde se
encontra Joana, formam uma cruz, assim como na sombra da grade que se forma no
chão.
Nos momentos que antecedem a morte de Joana
d’Arc, já em cenas externas, os enquadramentos por vezes deixam algumas cruzes
em segundo plano, porém, tortas. Talvez como símbolo de uma própria distorção
dos valores da igreja que julga Joana e a condena de forma tão cruel e
desumana. A morte surge através de um crânio que coberto por terra e com a
câmera na altura do chão, anunciam o destino da protagonista. Já presa à
estaca, as pessoas que a apoiavam se reúnem revoltadas com a condenação de
Joana. Dreyer traz essa comoção até para a própria natureza, cujos pássaros são vistos pousando em
cima da igreja, como se também estivessem lá pela personagem. Os mesmos
pássaros são vistos depois voando como um contraste da liberdade com a
condenação de Joana.
Por fim, a morte na fogueira impressiona mesmo
sendo vista depois de tantos anos. A expressão de Joana enquanto o fogo a
consome, não passa a dor e o desespero que seriam esperados. É como se a
personagem já não sentisse mais nada e já estivesse fazendo sua passagem
naquele momento. A câmera por sinal, faz um leve movimento em tilt (debaixo
para cima), como se simulasse a alma de Joana que sai de seu corpo. “O Martírio de Joana D'Arc” é um marco no cinema
mudo (que muito em breve teria som) e a representação máxima do uso das imagens
como forma de representação do sofrimento humano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário