quarta-feira, 26 de junho de 2019

O enigmático "Picnic na Montanha Misteriosa"



Dirigido por Peter Weir (Sociedade dos Poetas Mortos, O Show de Truman), Picnic na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock, 1975)  é uma adaptação feita por Cliff Green do livro homônimo escrito por Joan Lindsay. Propositalmente ambíguo na grande questão sobre o que teria acontecido as personagens, Lindsay nunca foi clara em relação se os eventos ocorridos são baseados em histórias reais.


Em 14 de fevereiro de 1900, dia de São Valentin, um grupo de alunas do colégio Appleyard College saem para um passeio até a Hanging Rock, uma formação rochosa de origem vulcânica. Após um piquenique, um grupo de alunas, acompanhadas de uma professora, resolve explorar a rocha mais de perto até que ao entrarem em uma fenda, desaparecem misteriosamente.

Com essa sinopse convidativa e os dizeres a cima que surgem na tela antes da primeira imagem do filme,  Picnic na Montanha Misteriosa teria tudo para ser mais um filme de mistério, cuja investigação minuciosa levaria a uma descoberta espantosa e quem sabe até trágica. Mas não se engane. Um dos grandes trunfos desse filme australiano, é atmosfera única e hipnotizante, que facilmente nos prende.




O primeiro ato que antecede o conflito, é usado para criar uma ambientação onírica logo quando as alunas acordam e se arrumam para o passeio. A felicidade das personagens, juntamente com a música, também evocam essa sensação quase que fora da realidade.

“Uma história de fantasma sem os fantasmas, um enigma sem solução e uma história de repressão sexual, sem sexo”. Assim é definido o filme na primeira linha do texto escrito por Joshua Klein, que está na edição de 2016 do livro 1001 Movies You Must See Before You Die (1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer). Se você se pergunta a razão de assistir a um filme em que pouco será revelado para o espectador, a razão é simplesmente que poucos filmes conseguem ser bem realizados e afetar seu público justamente com aquilo que não se pode ver ou entender.

Do ponto de vista temático, essas meninas que desaparecem após passarem por uma fresta da rocha, pode ser entendido como justamente a passagem da inocência para a maturidade, ou até mesmo uma quebra da repressão sexual, caminho esse que não tem mais volta. Mas como esse momento chega para todos em momentos diferentes, temos em apenas quatro personagens (três, porque uma das alunas é depois encontrada) como as “escolhidas” para terem essa experiência.

Falando em experiência, nós também a sentimos graças a direção de Weir. Na montanha a atmosfera onírica se eleva quando as personagens, em especial as alunas que irão desaparecer, estão em contato com o lugar. A própria natureza ali presente é evocada e parece tomar conta das personagens, como se as mesmas estivessem em um transe. A fotografia (que contou com um véu por cima da lente da câmera), reforça ainda mais esse clima etéreo que hipnotiza até mesmo o espectador.

A personagem de Edith (Christine Schuler) é a única no grupo que não entre na fenda da pedra. Assustada, ela constantemente diz que quer ir embora e mostra não estar bem ali. Poderia essa reação da personagem representar o medo que às vezes podemos ter de amadurecer? Edith enxerga a rocha desde o início como algo ameaçador, que não acabará bem, enquanto as alunas e a professora nem se quer parecem se importar. Pelo contrário. Um momento de entrega se dá quando “as escolhidas” tiram suas meias e ficam descalças. Contato esse que frisa a ideia de que elas estão de fato preparadas para aquele momento. Irma (Karen Robson) no entanto, é encontrada depois de um tempo. Teria a personagem “desistido” de ir com as colegas no último momento, por ainda não se sentir preparada?



Teorias e teorias. Assim é Picnic na Montanha Misteriosa, um filme capaz de nos deixar pensando durante horas sobre interpretações diversas para os eventos ocorridos e que nos fará analisar e provavelmente rever o filme, para que possamos notar algo que tenha passado batido. Com uma história que se mostra mais eficiente justamente por não trazer respostas, o longa cumpre o seu papel ao fazer parte de um cinema que busca nos fazer questionar.

domingo, 9 de junho de 2019

A Sombra do Pai - terror brasileiro que vale a pena ser visto

Gabriela Amaral Almeida nasceu na Bahia e se formou na UFBA (Universidade Federal da Bahia). Em Cuba, se especializou em Roteiro na EICTV (Escuela Internacional de Cine y TV). Chamou a atenção da crítica com seu primeiro longa-metragem, O Animal Cordial (2017). Antes de ir para os longas, a cineasta também se destacou pelo seus curtas que renderam diversos prêmios em festivais, como o Festival de Paulínia, Prêmio Abraccine,  Festival Curta Cabo Frio, entre outros.
Agora com A Sombra do Pai (2019), Almeida usa claras referências de filmes que contribuíram para sua bagagem dentro do gênero que mais agrada a diretora: o terror. Como dito em algumas de suas entrevistas, Gabriela passou sua infância na era dourada para qualquer fã de cinema de horror, em que muitos clássicos passavam na TV aberta quase sem nenhuma preocupação com a faixa etária, fora as locadoras de bairro que ajudaram ainda mais no consumo desses clássicos.
Mesmo com tantas referências de filmes americanos, a diretora sabe adaptar tudo isso para o Brasil e a partir do olhar de uma família que represente uma família brasileira, assim como a quantidade de rituais e crenças tipicamente brasileiros que também estão presentes no filme. Já o medo, o desamparo e o luto, claro, são elementos universais que no filme são bem representados.
Dalva (Nina Medeiros) tem nove anos e vive com seu pai, Jorge (Júlio Machado) e sua tia, Cristina (Luciana Paes) em uma casa simples em São Paulo. O pai que trabalha como pedreiro em uma construção, perdeu a esposa há dois anos, mas ainda não superou a perda. Quando Cristina resolve sair de casa para viver com o namorado, Dalva fica só e se torna a responsável por tomar conta de seu pai e da casa.
Em Estátua! (2014), um dos curtas de Gabriela, a diretora também tocou em temas como negligência e apego, quando coloca uma menina por volta de nove anos de idade, aos cuidados de uma babá que está grávida. A mãe da menina, que trabalha como aeromoça, parece pouco se importar com ela.  
A atmosfera do filme inteiro é pesada e fúnebre. As primeiras cenas mostram Dalva desenterrando sua boneca enquanto o pai está no cemitério para a exumação dos restos mortais de sua esposa, para que os mesmos sejam colocados em uma gaveta. Em uma caixa estão uma correntinha, alguns dentes e a trança de sua mulher. Os itens, levados para casa por Jorge, por mais macabros que sejam para nossa cultura, são as lembranças que Dalva tem e guarda da falecida mãe.  
A casa simples, ganha tons acinzentados nas paredes e na fotografia, enquanto a câmera quando resolve mostra o imóvel por fora, fica no nível do chão. Talvez não para enaltecer o lugar, mas sim para mais uma vez fazer referência ao solo. O fúnebre acompanha até as expressões faciais de Dalva e Jorge, que estão quase sempre sem emoção e sérias. É nítido como o filme e o cinema de Gabriela, não tem interesse em chocar ou assustar (mesmo com o tema), optando mais por uma atmosfera carregada, estranha e desconfortável.
O elemento da fantasia no longa, como ponto de vista da menina, pontua a falta que a mesma sente da mãe falecida e do pai ausente. Sua ligação com a morte se estende para os filmes que assiste. A Noite dos Mortos Vivos e Cemitério Maldito, são referências importantes para a diretora, que estudou toda a obra de Stephen King. Os temas e cenas pontuais desses filmes são exibidos na TV da sala da casa de Dalva, que mesmo com medo, abraça a ideia de que alguém morto possa voltar. Essa mistura do macabro com questões emocionais e tão universais para nós, parece ser uma marca da cineasta.
Importante apontar como o pai de Dalva vai aos poucos se parecendo com um zumbi. O andar levemente desengonçado, a palidez e a falta de expressão, são aqui no filme, fruto do excesso do trabalho que exausta Jorge e impede o personagem de ter um tempo com a família e muito menos de ter tempo para absorver melhor a morte da esposa. A alegoria do zumbi o transforma em um escravo do capitalismo, como disse a cineasta, ao mesmo tempo em que a criatura morta e viva faz parte do imaginário de Dalva.
A Sombra do Pai é mais uma prova (junto com Mate-me Por FavorTrabalhar CansaAs Boas ManeirasO Animal Cordeal) de como o cinema de gênero, tão pouco realizado no Brasil, tem capacidade de usar o terror para abordar questões sociais sérias e pertinentes. Só resta a qualquer fã desse gênero, dar valor também ao que é nosso. 

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...