terça-feira, 26 de março de 2019

Crítica: Nós - Terror questionador


E finalmente Nós (Us, 2019) já está nos cinemas! Um dos filmes mais aguardados deste ano, traz novamente o cineasta Jordan Peele se aventurando no gênero do terror. Se em Corra! (Get Out, 2017) Peele também colocou alguns elementos de comédia, característica evidente em seus filmes anteriores, em Nós as coisas são diferentes. Descrito pelo próprio diretor como um filme 100% de terror, Jordan também chegou a anunciar que seu novo filme também não trataria de aspectos raciais como no longa anterior, tendo desta vez como um dos temas do filme, a questão dos privilégios.
Como bem definido no trailer que circulou na Internet e que conta com mais de dezoito milhões de views, a sinopse trata da família composta por Adelaide (Lupita Nyong'o), seu marido Gabriel (Winston Duke) e seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex), que viajam até a casa de praia da família, quando se veem confrontados por um grupo de doppelgängers (ser fantástico proveniente de lendas germânicas que representa a cópia idêntica de uma pessoa e que tem a característica de trazer transtorno para a vida de seu duplicata). No longa, cada integrante da família tem seu sósia equivalente, que persegue seu original.
Assim como em Corra!, Peele manteve a atmosfera de estranhamento que já se inicia logo no começo do filme. A história nos apresenta a infância de Adelaide em 1986. O próprio caminhar da personagem em uma parque de diversões já é o suficiente para nos deixarmos meio que à espreita de que algo ali pode ser suspeito. Na casa de espelhos do parque, o visual abusa dos reflexos que multiplicam e distorcem a menina. Muita coisa fará sentido no final do filme. Isso aliás é muito interessante, pois Nós é um filme que busca provocar no espectador a reflexão, além de exigir uma atenção especial a diversas pistas ao longo do filme. Em um nível mais simplório, a história está lá, fácil de ser compreendida e absorvida pelo espectador. Mas se você procura por algo a mais em um filme e não só a diversão, esse filme é perfeito para isso. Sabemos que não é todo dia que um filme mais comercial do gênero de terror, busca instigar seu espectador a pensar sobre ele.
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É quando falamos em interpretar tudo aquilo o que vimos e tentamos entender as alegorias usadas, é que Nós se torna ainda mais interessante. Você pode ler diversas interpretações do filme que já estão disponíveis para leitura em vários sites. Isso já é muito louvável porque com certeza essa foi a intenção de Peele. Independente de qual seja sua interpretação do filme, está claro o engajamento social do mesmo. Dessa vez o discurso está claro quando se fala em privilégios e minorias à margem da sociedade. Nosso lugar de conforto e o desconhecimento da existências de pessoas menos favorecidas em diversos aspectos de suas vidas, parece ser o ponto principal do filme.
A ideia de pensarmos nas pessoas como nossos semelhantes, cai bem no filme quando são colocadas cópias dos protagonistas como aqueles que estão ali para reivindicar por algo. O final revelador (que para muitos não foi tão surpreendente assim), parece trazer uma discussão que não necessariamente busca categorizar quem são os vilões do filme. Adelaide foi retirada de sua vida, ainda na infância por sua cópia que viu a possibilidade de ter uma vida melhor. Quando essa cópia assume a vida privilegiada da verdadeira Adelaide, ela ao mesmo tempo não se importa mais com aqueles que estão vivendo lá embaixo. Cabe à real Adelaide ter empatia pelas cópias e reivindicar o lugar que era seu como uma vingança à sua cópia. Aqui Adelaide leva todos com ela para assim se rebelarem.
Até mesmo a questão dos movimentos repetidos pelos doppelgängers que imitam as ações de suas versões originais, pode ser entendida como uma quebra de um sistema que entorpece as pessoas e as impede de agir por si próprias.
Vale destacar a campanha publicitária Hands Across America organizada em 1986 e que aparece no filme. Na época, aproximadamente 6,5 milhões de pessoas seguraram as mãos em uma cadeia humana por quinze minutos ao longo de um caminho através dos Estados Unidos contíguos. Dos 34 milhões de dólares arrecadados, apenas 15 milhões foram entregues às instituições de caridade para o combate a fome. O resto do dinheiro foi usado para pagar os custos operacionais da organização da campanha.
De fato a intenção foi boa, mas sabemos que não resolveu o problema da pobreza nos EUA. O evento acabou ganhando mais notoriedade e destaque, e quando voltamos ao filme, fica claro como o final recria essa união formada em 1986. As cópias se unem de mãos dadas após assassinarem suas versões originais. Se de um lado temos os personagens que mal sabem da existência da população que vive abaixo deles, será que essas cópias vão conseguir se impor e vencer através da violência? O longa apenas nos aponta questões sem necessariamente julgar nenhum lado, mais uma vez buscando nossa reflexão.
Claro que como já foi dito, cada um pode ter sua própria interpretação. Há até quem interprete os Doppelgängers como os próprios imigrantes que vivem nos EUA e vivem à margem da sociedade americana. Podemos ver como esse filme pode ser enriquecedor ao render longos debates, não é mesmo?
As atuações não poderiam estar melhores. Todos os atores conseguem uma distinção clara e sinistra entre suas versões originais e suas cópias. Lupita Nyong'o está fantástica tanto como Adelaide, como sua cópia. Principalmente quando lembramos do plot twist no final, percebemos as nuances e ambiguidade necessárias na personagem para que o final não fosse descoberto logo no início. Fora o sofrimento misturado com insanidade na doppelgänger de Adelaide que causa um desconforto no espectador.
A tensão em Nós está mais intensa, se comparada a Corra!. Há muitas cenas de perseguição que alternam entre os personagens, já que cada cópia persegue seu equivalente. 
Como em um episódio da série Além da Imaginação (que por sinal teve o episódio Image Mirror como inspiração para Peele fazer o filme), Nós já é um dos melhores filmes de 2019. Com um terror de qualidade e bem dirigido, Jordan Peele parece ter conseguido fazer filmes de terror que têm o alcance do grande público ao mesmo tempo em que busca nos fazer refletir sobe questões atuais e pertinentes. Mais uma vez é o terror e o absurdo a favor dos verdadeiros horrores do nosso dia a dia.  

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