A cineasta e fotógrafa Agnès Varda foi sem dúvidas um dos grandes nomes do cinema. Nascida na Bélgica e radicada na França, a diretora infelizmente faleceu na semana passada. Seu cinema é focado em questões feministas e comentários sociais ao mesmo tempo em que concebe suas obras através de um olhar documental e até experimental. Também é comum encontrarmos em seus filmes, o uso de atores não profissionais. Historiadores citam o trabalho de Varda como algo essencial para a Nouvelle Vague, considerando a própria diretora como a mãe do movimento francês.
Agnés Varda costuma dar voz aos protagonistas marginalizados socialmente. Por conta de seu background na fotografia, as imagens estáticas são bastante usadas em seus filmes. Às vezes é possível notar conflitos entre imagens fixas e em movimento. Tudo que está ali apresenta sua própria implicação e empresta a mensagem de todo o filme.
Varda tem sua obra frequentemente considerada feminista por causa do uso de protagonistas femininos e da criação de uma voz cinematográfica feminina. Mesmo sem ligação de fato a algum movimento feminista, a cineasta apenas concentra essas questões nos temas de seus filmes.
Em As Duas Faces da Felicidade (Le Bonheur, 1965), Varda cria uma obra muito interessante e que pode até mesmo ganhar mais de uma interpretação, embora dado ao seu contexto e ao próprio fazer cinema da diretora, podemos entender o longa como uma grande ironia. De qualquer forma, essas duas leituras serão citadas no texto.
A sinopse traz François (Jean-Claude Drouot), um homem que trabalha como carpinteiro para seu tio. Ele vive uma vida feliz com sua esposa Thérèse (Claire Drouot) e seu dois filhos. Um dia, François se apaixona por Émilie (Marie-France Boyer), que trabalha como balconista em uma agência dos correios do bairro. Temas como a possibilidade de ser feliz por completo (ou a ideia de uma felicidade acumulada) e até mesmo relações e estruturas familiares, são discutidos no filme. Melhor que isso, é como a cineasta concebe todas essas questões.
O filme é inteiro do ponto de vista de François, um homem que trabalha e vive essa vida tranquila e prazerosa com todos à sua volta. Para isso, Varda não poupa na fotografia e na direção de arte que criam um visual que enche os olhos. Cores e mais cores compõem a vida do nosso protagonista, principalmente o amarelo e o azul. Também não faltam flores, campos de girassóis, piqueniques com a família e até um ambiente de trabalho harmonioso e feliz. Ironia?
Chegamos até a nos incomodar com tanta perfeição na tela. Mas mesmo diante dela, acompanhamos a rotina de François e sua família. Thérèse trabalha como costureira e está fazendo um vestido de noiva para uma de sua clientes. Ironicamente temos esse casal também feliz que irá se casar, enquanto há esse contraste com o que já sabemos (pelo menos para quem leu a sinopse) que irá acontecer.
As imagens dos objetos estáticos na casa de François parecem frisar tanto sua rotina, quanto essa ordem existente em sua vida. Ordem essa que logo sofrerá um arranhão quando o personagem conhecer Émilie. É nesse momento que o filme começa a mostrar mais ainda seu diferencial. Quando conhece a mulher e não demora muito para que ambos iniciem um romance extra conjugal, o longa claramente não parece julgar nenhum dos dois personagens por isso. Seria por estarmos justamente acompanhando o filme do ponto de vista de um homem? Praticamente não há mudança de tom no filme, e a amante de François é retratada como se fosse sua segunda esposa.
Há apenas um detalhe interessante que mais para frente, chamará a atenção. Émilie está de mudança para um novo apartamento e chama François para ajudá-la a montar os móveis. No apartamento da mulher, a câmera estática também frisa nos objetos, agora amontoados em cantos da parede. Aliás, durante boa parte do filme, o apartamento de Émilie será visto ainda sem ter todos os móveis montados enquanto os tons brancos predominam na cama e lençóis. É como se a ideia de família ainda não possa ser concretizada, porque ainda temos Thèrése como a esposa, além da mesma não saber ainda do caso que seu marido está tendo.
Já as duas mulheres envolvidas no triângulo amoroso, nunca se confrontam, mas chegam a dividir a mesma tela duas vezes. A primeira é quando uma passa pela outra em uma rua. A outra, bem mais elaborada, é durante uma festa. Aqui o encontro ocorre durante uma dança em que diversos casais dançam e trocam de parceiros. François é visto dançando com Thèrése, mas também com Émilie. Uma árvore no meio da tela é responsável por fazer essa transição de casais ao mesmo tempo em que divide as duas mulheres.
Quando finalmente resolve revelar para a esposa sobre Émelie, O longa mais uma vez surpreende. Mais uma vez sem julgamento, Thèrése parece aceitar o relacionamento de seu marido, quando descobre que a felicidade do mesmo é sempre plena quando ele se vê com as duas mulheres. Por mais utópico que pareça, também podemos interpretar isso como uma ideia de evolução como pessoa e até mesmo uma mente aberta por parte da personagem, que nos mostra que a ideia de tratar as pessoas como posses é errada. Se por um lado o filme tem essa linha de interpretação, por outro podemos problematizar mais uma vez a questão irônica de estarmos vendo o filme do ponto de vista de François e de que a fácil aceitação da esposa, seria na verdade um mundo utópico visto do ponto de vista de um homem.
Com a morte de Thèrése, não sabemos ao certo se ela teve um acidente ou se suicidou, cabendo ambas interpretações. Podemos reparar como o efeito do luto devasta François, porém o filme não gasta muito tempo no processo de luto, mas sim em um processo de configuração de uma nova família, agora com Émilie, que passamos a vê-la assumindo o papel da esposa, buscando os enteados na escola, arrumando a casa e fazendo piqueniques com François e seus filhos.
Provocativo e até subversivo, Os Dois Lados da Felicidade é um filme que cabe mais de uma forma de interpretação e que é estruturado sem dúvida alguma, como forma de provocar e nos tirar da zona de conforto, ao mesmo tempo em que nos conforta enquanto nossos olhos são praticamente acalentados com uma vida aparentemente perfeita e livre de problematizações e questionamentos.