domingo, 31 de março de 2019

"As Duas Faces da Felicidade", de Agnès Varda. A ironia de um casamento utópico através do olhar do homem


A cineasta e fotógrafa Agnès Varda foi sem dúvidas um dos grandes nomes do cinema. Nascida na Bélgica e radicada na França, a diretora infelizmente faleceu na semana passada. Seu cinema é focado em questões feministas e comentários sociais ao mesmo tempo em que concebe suas obras através de um olhar documental e até experimental. Também é comum encontrarmos em seus filmes, o uso de atores não profissionais. Historiadores citam o trabalho de Varda como algo essencial para a Nouvelle Vague, considerando a própria diretora como a mãe do movimento francês.
Agnés Varda costuma dar voz aos protagonistas marginalizados socialmente. Por conta de seu background na fotografia, as imagens estáticas são bastante usadas em seus filmes. Às vezes é possível notar conflitos entre imagens fixas e em movimento. Tudo que está ali apresenta sua própria implicação e empresta a mensagem de todo o filme.
Varda tem sua obra frequentemente considerada feminista por causa do uso de protagonistas femininos e da criação de uma voz cinematográfica feminina. Mesmo sem ligação de fato a algum movimento feminista, a cineasta apenas concentra essas questões nos temas de seus filmes.
Em As Duas Faces da Felicidade (Le Bonheur, 1965), Varda cria uma obra muito interessante e que pode até mesmo ganhar mais de uma interpretação, embora dado ao seu contexto e ao próprio fazer cinema da diretora, podemos entender o longa como uma grande ironia. De qualquer forma, essas duas leituras serão citadas no texto.

A sinopse traz François (Jean-Claude Drouot), um homem que trabalha como carpinteiro para seu tio. Ele  vive uma vida feliz com sua esposa Thérèse (Claire Drouot) e seu dois filhos. Um dia,  François se apaixona por Émilie (Marie-France Boyer), que trabalha como balconista em uma agência dos correios do bairro. Temas como a possibilidade de ser feliz por completo (ou a ideia de uma felicidade acumulada) e até mesmo relações e estruturas familiares, são discutidos no filme. Melhor que isso, é como a cineasta concebe todas essas questões.
O filme é inteiro do ponto de vista de François, um homem que trabalha e vive essa vida tranquila e prazerosa com todos à sua volta. Para isso, Varda não poupa na fotografia e na direção de arte que criam um visual que enche os olhos. Cores e mais cores compõem a vida do nosso protagonista, principalmente o amarelo e o azul. Também não faltam flores, campos de girassóis, piqueniques com a família e até um ambiente de trabalho harmonioso e feliz. Ironia?
Chegamos até a nos incomodar com tanta perfeição na tela. Mas mesmo diante dela, acompanhamos a rotina de François e sua família. Thérèse trabalha como costureira e está fazendo um vestido de noiva para uma de sua clientes. Ironicamente temos esse casal também feliz que irá se casar, enquanto há esse contraste com o que já sabemos (pelo menos para quem leu a sinopse) que irá acontecer.
As imagens dos objetos estáticos na casa de François parecem frisar tanto sua rotina, quanto essa ordem existente em sua vida. Ordem essa que logo sofrerá um arranhão quando o personagem conhecer Émilie. É nesse momento que o filme começa a mostrar mais ainda seu diferencial. Quando conhece a mulher e não demora muito para que ambos iniciem um romance extra conjugal, o longa claramente não parece julgar nenhum dos dois personagens por isso. Seria por estarmos justamente acompanhando o filme do ponto de vista de um homem? Praticamente não há mudança de tom no filme, e a amante de François é retratada como se fosse sua segunda esposa.
Há apenas um detalhe interessante que mais para frente, chamará a atenção. Émilie está de mudança para um novo apartamento e chama François para ajudá-la a montar os móveis. No apartamento da mulher, a câmera estática também frisa nos objetos, agora amontoados em cantos da parede. Aliás, durante boa parte do filme, o apartamento de Émilie será visto ainda sem ter todos os móveis montados enquanto os tons brancos predominam na cama e lençóis.  É como se a ideia de família ainda não possa ser concretizada, porque ainda temos Thèrése como a esposa, além da mesma não saber ainda do caso que seu marido está tendo.
Já as duas mulheres envolvidas no triângulo amoroso, nunca se confrontam, mas chegam a dividir a mesma tela duas vezes. A primeira é quando uma passa pela outra em uma rua. A outra, bem mais elaborada, é durante uma festa. Aqui o encontro ocorre durante uma dança em que diversos casais dançam e trocam de parceiros. François é visto dançando com Thèrése, mas também com Émilie. Uma árvore no meio da tela é responsável por fazer essa transição de casais ao mesmo tempo em que divide as duas mulheres.
Quando finalmente resolve revelar para a esposa sobre Émelie, O longa mais uma vez surpreende. Mais uma vez sem julgamento, Thèrése parece aceitar o relacionamento de seu marido, quando descobre que a felicidade do mesmo é sempre plena quando ele se vê com as duas mulheres. Por mais utópico que pareça, também podemos interpretar isso como uma ideia de evolução como pessoa e até mesmo uma mente aberta por parte da personagem, que nos mostra que a ideia de tratar as pessoas como posses é errada. Se por um lado o filme tem essa linha de interpretação, por outro podemos problematizar mais uma vez a questão irônica de estarmos vendo o filme do ponto de vista de François e de que a fácil aceitação da esposa, seria na verdade um mundo utópico visto do ponto de vista de um homem.
Com a morte de Thèrése, não sabemos ao certo se ela teve um acidente ou se suicidou, cabendo ambas interpretações. Podemos reparar como o efeito do luto devasta François, porém o filme não gasta muito tempo no processo de luto, mas sim em um processo de configuração de uma nova família, agora com Émilie, que passamos a vê-la assumindo o papel da esposa, buscando os enteados na escola, arrumando a casa e fazendo piqueniques com François e seus filhos.

Provocativo e até subversivo, Os Dois Lados da Felicidade é um filme que cabe mais de uma forma de interpretação e que é estruturado sem dúvida alguma, como forma de provocar e nos tirar da zona de conforto, ao mesmo tempo em que nos conforta enquanto nossos olhos são praticamente acalentados com uma vida aparentemente perfeita e livre de problematizações e questionamentos.

terça-feira, 26 de março de 2019

Crítica: Nós - Terror questionador


E finalmente Nós (Us, 2019) já está nos cinemas! Um dos filmes mais aguardados deste ano, traz novamente o cineasta Jordan Peele se aventurando no gênero do terror. Se em Corra! (Get Out, 2017) Peele também colocou alguns elementos de comédia, característica evidente em seus filmes anteriores, em Nós as coisas são diferentes. Descrito pelo próprio diretor como um filme 100% de terror, Jordan também chegou a anunciar que seu novo filme também não trataria de aspectos raciais como no longa anterior, tendo desta vez como um dos temas do filme, a questão dos privilégios.
Como bem definido no trailer que circulou na Internet e que conta com mais de dezoito milhões de views, a sinopse trata da família composta por Adelaide (Lupita Nyong'o), seu marido Gabriel (Winston Duke) e seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex), que viajam até a casa de praia da família, quando se veem confrontados por um grupo de doppelgängers (ser fantástico proveniente de lendas germânicas que representa a cópia idêntica de uma pessoa e que tem a característica de trazer transtorno para a vida de seu duplicata). No longa, cada integrante da família tem seu sósia equivalente, que persegue seu original.
Assim como em Corra!, Peele manteve a atmosfera de estranhamento que já se inicia logo no começo do filme. A história nos apresenta a infância de Adelaide em 1986. O próprio caminhar da personagem em uma parque de diversões já é o suficiente para nos deixarmos meio que à espreita de que algo ali pode ser suspeito. Na casa de espelhos do parque, o visual abusa dos reflexos que multiplicam e distorcem a menina. Muita coisa fará sentido no final do filme. Isso aliás é muito interessante, pois Nós é um filme que busca provocar no espectador a reflexão, além de exigir uma atenção especial a diversas pistas ao longo do filme. Em um nível mais simplório, a história está lá, fácil de ser compreendida e absorvida pelo espectador. Mas se você procura por algo a mais em um filme e não só a diversão, esse filme é perfeito para isso. Sabemos que não é todo dia que um filme mais comercial do gênero de terror, busca instigar seu espectador a pensar sobre ele.
SPOILERS ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
É quando falamos em interpretar tudo aquilo o que vimos e tentamos entender as alegorias usadas, é que Nós se torna ainda mais interessante. Você pode ler diversas interpretações do filme que já estão disponíveis para leitura em vários sites. Isso já é muito louvável porque com certeza essa foi a intenção de Peele. Independente de qual seja sua interpretação do filme, está claro o engajamento social do mesmo. Dessa vez o discurso está claro quando se fala em privilégios e minorias à margem da sociedade. Nosso lugar de conforto e o desconhecimento da existências de pessoas menos favorecidas em diversos aspectos de suas vidas, parece ser o ponto principal do filme.
A ideia de pensarmos nas pessoas como nossos semelhantes, cai bem no filme quando são colocadas cópias dos protagonistas como aqueles que estão ali para reivindicar por algo. O final revelador (que para muitos não foi tão surpreendente assim), parece trazer uma discussão que não necessariamente busca categorizar quem são os vilões do filme. Adelaide foi retirada de sua vida, ainda na infância por sua cópia que viu a possibilidade de ter uma vida melhor. Quando essa cópia assume a vida privilegiada da verdadeira Adelaide, ela ao mesmo tempo não se importa mais com aqueles que estão vivendo lá embaixo. Cabe à real Adelaide ter empatia pelas cópias e reivindicar o lugar que era seu como uma vingança à sua cópia. Aqui Adelaide leva todos com ela para assim se rebelarem.
Até mesmo a questão dos movimentos repetidos pelos doppelgängers que imitam as ações de suas versões originais, pode ser entendida como uma quebra de um sistema que entorpece as pessoas e as impede de agir por si próprias.
Vale destacar a campanha publicitária Hands Across America organizada em 1986 e que aparece no filme. Na época, aproximadamente 6,5 milhões de pessoas seguraram as mãos em uma cadeia humana por quinze minutos ao longo de um caminho através dos Estados Unidos contíguos. Dos 34 milhões de dólares arrecadados, apenas 15 milhões foram entregues às instituições de caridade para o combate a fome. O resto do dinheiro foi usado para pagar os custos operacionais da organização da campanha.
De fato a intenção foi boa, mas sabemos que não resolveu o problema da pobreza nos EUA. O evento acabou ganhando mais notoriedade e destaque, e quando voltamos ao filme, fica claro como o final recria essa união formada em 1986. As cópias se unem de mãos dadas após assassinarem suas versões originais. Se de um lado temos os personagens que mal sabem da existência da população que vive abaixo deles, será que essas cópias vão conseguir se impor e vencer através da violência? O longa apenas nos aponta questões sem necessariamente julgar nenhum lado, mais uma vez buscando nossa reflexão.
Claro que como já foi dito, cada um pode ter sua própria interpretação. Há até quem interprete os Doppelgängers como os próprios imigrantes que vivem nos EUA e vivem à margem da sociedade americana. Podemos ver como esse filme pode ser enriquecedor ao render longos debates, não é mesmo?
As atuações não poderiam estar melhores. Todos os atores conseguem uma distinção clara e sinistra entre suas versões originais e suas cópias. Lupita Nyong'o está fantástica tanto como Adelaide, como sua cópia. Principalmente quando lembramos do plot twist no final, percebemos as nuances e ambiguidade necessárias na personagem para que o final não fosse descoberto logo no início. Fora o sofrimento misturado com insanidade na doppelgänger de Adelaide que causa um desconforto no espectador.
A tensão em Nós está mais intensa, se comparada a Corra!. Há muitas cenas de perseguição que alternam entre os personagens, já que cada cópia persegue seu equivalente. 
Como em um episódio da série Além da Imaginação (que por sinal teve o episódio Image Mirror como inspiração para Peele fazer o filme), Nós já é um dos melhores filmes de 2019. Com um terror de qualidade e bem dirigido, Jordan Peele parece ter conseguido fazer filmes de terror que têm o alcance do grande público ao mesmo tempo em que busca nos fazer refletir sobe questões atuais e pertinentes. Mais uma vez é o terror e o absurdo a favor dos verdadeiros horrores do nosso dia a dia.  

domingo, 17 de março de 2019

Na Netflix: "Cam" e a exploração dos excessos da exposição e da ambição em ser visto




Com dois curtas de drama/comédia no currículo, Daniel Goldhaber fez sua estreia com Cam (2018), seu primeiro longa-metragem que está há algum tempo no catálogo da Netflix. Dessa vez se aventurando no gênero do terror, a história adentra o mundo das camgirls, mulheres que ganham a vida fazendo shows de exibicionismo pela webcam.
Alice (Madeline Brewer) usa o nome Lola para fazer suas apresentações. Ambiciosa para alcançar o primeiro lugar de visualizações no site em que trabalha, ela inclui em uma de suas apresentações, um falso suicídio. Um dia ela descobre que sua conta foi roubada e que uma mulher exatamente como ela, está se apresentando em seu lugar, para desespero total de Alice.
Não é a primeira vez em que o audiovisual aborda os perigos da exposição na internet. Aqui Goldhaber escolhe uma abordagem que pode conter tanto explicações reais, quanto fantásticas sobre quem seria essa sósia tão idêntica à Lola. Independente de qual seja a interpretação, fica clara a alegoria do poder da exposição e como a mesma domina as pessoas que fazem o possível para estarem em evidência. A sede por essa forma de poder que deve sempre resultar em um número de visualizações favorável  no canal da protagonista, parece despertar na personagem, seu lado competitivo e ambicioso. Lado esse que cria vida própria e compete com ela mesma. Mesmo que no caso de Alice essa exposição faça parte do seu ganha pão, o longa felizmente não quer pregar nenhum moralismo, muito menos um julgamento da personagem por conta de sua profissão.
Vale a pena destacar em uma cena em que Alice pede ajuda, o descaso da polícia, justamente por conta do julgamento, preconceito e machismo dos próprios policias. É a velha história de culpar sempre a vítima, seja porque ela usa roupa curta ou ainda pior, porque ela se expoe na internet para várias pessoas. Isso também ajuda muito para a empatia que criamos pela personagem, que independente da forma como ganha a vida, ela é uma vítima dessa sua cópia que tomou o seu lugar e está usando sua imagem para ganhar dinheiro. 
As cores usadas no filme não poderiam fazer mais sentido dentro do contexto do filme. Quando está em seu quarto, fazendo as apresentações, as cores predominantes são o vermelho e o roxo. Como cita Patti Bellantoni no livro If It’s Purple, Someone is Gonna Die (Se for Roxo, Alguém Vai Morrer), na tradução livre, a cor roxa no cinema tem várias interpretações. A autora cita que a cor roxa já foi usada para representar sensualidade, poesia e romantismo. Porém, com o tempo a representatividade da cor acabou ganhando um status místico e até paranormal. Por ser uma cor difícil de se encontrar na natureza, ela acaba adquirindo essa identidade daquilo que está além do nosso mundo físico. A morte é uma associação muito comum e pode ser vista em vários filmes. Mas Bellantoni aponta também que a morte também pode ser simbólica, como a perda de algo ou até mesmo ligada a transformação.
No longa isso fica claro quando o conflito do filme é claramente algo que parece fugir de uma explicação natural. Lembrando que as interpretações podem variar, mas existe uma essência que acaba inclinando o tom do filme para o fantástico. Já o vermelho, claro, descreve ao mesmo tempo a sensualidade e o perigo. Uma dicotomia entre o prazer e os perigos encontrados no trabalho de Alice.
Já a tensão e o mistério são garantido à medida em que a personagem tenta descobrir quem está se passando por ela. Destaque para a cena do aniversário de Jordan (Devin Druid), irmão de Alice, em que a família de Anna e os amigos de seu irmão, descobrem sua verdadeira profissão. A cena é feita quase toda em plano sequência e cria um suspense quando deixa o espectador ciente de que os amigos de Jordan estão na casa assistindo a um dos vídeos eróticos do clone da protagonista. Enquanto a própria Anna, seu irmão, sua mãe e suas amigas estão na casa e ainda não sabem o que está acontecendo, ficamos esperando o momento em que tudo irá “explodir” e trazer o segredo da personagem à tona.
Cam é uma boa pedida para os fãs da série Black Mirror e para quem curte um terror mais psicológico, cheio de tensão e mistério.

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...