"Ironia da Sorte" - Lágrimas de um palhaço
Ironia da Sorte (He Who Gets Slapped, 1924) foi dirigido por Victor Sjöström e baseado no livro russo escrito por Leonid Andreyev. Foi o primeiro filme a ser produzido na época pela recém inaugurada Metro-Goldwyn-Mayer, que usou pela primeira vez nesse filme, o famoso leão rugindo no seu logo. Curiosamente, no próprio longa há a presença de um leão durante um momento importante da história.
O elenco traz Norma Shearer, John Gilbert e ninguém menos que Lon Chaney (o homem das mil faces) como o protagonista. Considerado por muitos como um do melhores filmes do ator, Ironia da Sorte traz Chaney por traz de uma maquiagem relativamente simples, se comparada com algumas outras mais elaboradas e até arriscadas para a saúde do ator, que costumava criar grandes efeitos em seu rosto, muito antes do látex ser usado.
No longa, Chaney vive um cientista desconhecido chamado Paul Beaumont, que durante anos finalmente conseguiu reunir provas sobre a origem da humanidade. Ele é acolhido pelo Barão Regnard (Marc McDermott), que se torna seu patrono e permite que Beaumont viva em sua mansão enquanto o cientista realiza suas pesquisas. Um dia, Paul é traído por sua namorada e pelo próprio Regnard, que rouba suas pesquisas e as apresenta durante um congresso como se fossem suas. Paul assiste à tudo e ao tentar confrontar o Barão, é humilhado por ele ao receber um tapa no rosto e ser motivo de piada por todos presentes no local.
Cinco anos depois, Paul está trabalhando em um circo onde é conhecido pelo nome artístico de HE (Ele). Ironia da Sorte é mais um retrato interessante (e trágico) do velho palhaço que ao mesmo tempo em que faz todos rirem, quando conhecido mais a fundo, se desfaz da figura cômica e se deixa humanizar e mostrar suas falhas e sofrimentos. O longa combina muito bem drama, romance e vingança, ao mesmo tempo em que traz uma boa reflexão sobre a perda da dignidade e até o sadismo humano.
Interessante como algumas metáforas reforçam características de seus personagens, como a própria ideia do palhaço carregar a imagem do bobo que se permite virar motivo de riso de todos. Ao mesmo tempo em que Paul parece usar sua humilhação no congresso para fazer disso sua profissão, se sentindo até bem nessa posição, podemos entender sua decisão também como um reflexo de sua baixa autoestima. O problema está no conflito do palhaço quando percebe que na plateia está o Barão que roubou suas pesquisas. Para completar, Paul se vê apaixonado por Consuelo (Norma Shearer), que também trabalha no circo e que é praticamente obrigada por seu pai a se casar com Regnard..
Nunca levado a sério, HE vira essa figura cômica para os próprios personagens do filme, até mesmo quando se declara para Consuelo, que mesmo sem a intenção de humilhá-lo, entende os sentimentos de Paul como uma grande brincadeira por parte do mesmo. O interessante no filme é justamente a contradição do cômico com a real história de vida do cientista. As cenas em que ele se apresenta no circo e leva tapas de outros palhaços, chega a nos constranger quando sabemos que Paul está lembrando de sua humilhação no congresso. Tudo está no contexto, já que passamos a nos incomodar com as humilhações no momento em que todo o passado do personagem está volta.
O uso de um globo terrestre traz alguns significados interessantes. Antes de se tornar um palhaço, Paul arremessa as folhas contendo suas pesquisas (depois de serem lidas pelo Barão) em um globo terrestre, como a representação de um ressentimento do personagem com relação ao próprio mundo, mais especificamente às pessoas e à frustração de não poder confiar em ninguém.
Essa mesmo globo terrestre é “transformado” em uma bola que é vista sendo girada por um palhaço em um momento que marca a passagem de uma cena para outra. Aqui parece termos a representação de um mundo que dá voltas e que traz consigo mudanças nas vidas dos personagens, ao mesmo tempo em que a bola ganha o status de brinquedo nas mãos do palhaço, que gira como se de certa forma representasse o “controle do mundo” que Paul adquiriu ao fazer com que suas humilhações virassem o seu ganha pão. Uma forma de levar a vida de forma menos séria, ou um conformismo com sua dignidade rebaixada?
Mesmo com essa perseverança e com a possibilidade de se vingar do Barão, Paul não tem tanta sorte e os momentos finais de HE, são tão irônicos quanto tristes. Risos se misturam com um final nada cômico, enquanto nosso palhaço acaba pagando um preço por sua vingança. Mesmo com uma plateia que ignora o que está de fato acontecendo com o HE, o filme parece buscar o lado perverso da humanidade, mesmo que de forma indireta, quando as gargalhadas e os aplausos tomam conta do picadeiro durante um momento dramático.
Ironia da Sorte é um interessante filme sobre a vida de um palhaço e do contraste amargo entre o cômico e o trágico, capaz de abranger questões sobre a dignidade humana e também sua perversidade.
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