terça-feira, 22 de janeiro de 2019

"Grey Gardens" - Documentando passado e presente



Os irmãos Albert e David Maysles, foram dois grandes documentaristas conhecidos por um estilo chamado de cinema direto. O termo nada mais é que um gênero de documentário também conhecido como documentário observativo. Nesse estilo há literalmente uma observação do que está sendo apresentado. Não há uma interferência direta do cineasta, que aqui é ignorado, assim como a câmera. Há uma pretensão de neutralidade e naturalidade, transmitindo a ideia de realidade. Não há narração nem entrevistas, muitas vezes sem uso até mesmo de uma trilha musical.
Os avanços tecnológicos no Canadá, na Europa e nos Estados Unidos, logo após a Segunda Guerra Mundial, trouxeram as câmeras de 16mm e gravadores de áudio que possibilitavam o carregamento de uma só pessoa. Captação de som já podia ser sincronizada com as imagens, sem a necessidade de equipamentos volumosos ou cabos que uniam gravadores e câmeras. Câmera e gravador se moviam livremente no espaço no momento em que tudo acontecia, como aponta Bill Nichols no livro Introdução Ao Documentário, lançado em 2001.
O trabalho dos irmãos Maysles rompeu com a tradição dos documentário narrativos e faixas de música que guiavam o espetador a sentir algo. A montagem (edição) pode ser entendida como a "voz" narrativa desses filmes. Albert construiu sua própria câmera de 16mm que possibilitou que a mesma ficasse confortavelmente em seu ombro, eliminando a necessidade de um tripé e permitindo que ele filmasse com fluidez.
Com mais de vinte documentários realizados juntos, os irmãos Maysles fizeram história no cinema documental. Com David já falecido em 1987, Albert foi saudado em 1999 pela Eastman Kodak como um dos cem melhores cineastas do mundo. Além desse prêmio, vieram outros como o Prêmio de Cinematografia para Documentários do Festival de Sundance em 2001 pelo filme LaLee's Kin: The Legacy of Cotton. Albert também ganhou a Medalha Nacional das Artes que foi entregue pelo então presidente Barack Obama em 28 de julho de 2014. Albert faleceu em 2017 aos 88 anos.
Grey Gardens, filme de 1975 dirigido pelos irmãos Maysles, foi eleito em 2014 pela revista britânica de cinema Sight and Sound como o nono melhor documentários de todos os tempos. Filmado como um documentário observativo, a sinopse por si só já é bem cativante. Edith Beale, conhecida como "Big Edie", e sua filha Edith Beale, conhecida como "Little Edie", eram tia e a prima (de primeiro grau) respectivamente, de Jacqueline Kennedy Onassis, ex-Primeira-dama dos Estados Unidos e que ficou viúva do ex-presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy.
“Big” e “Little” Edie viveram juntas na propriedade de Grey Gardens por décadas, com recursos limitados, em meio a miséria e o isolamento. A casa foi projetada em 1897 por Joseph Greenleaf Thorpe e comprada em 1923 por "Big Edie" e seu marido Phelan Beale. Depois que Phelan deixou sua esposa, "Big Edie" e "Little Edie" viveram lá por mais de 50 anos. O nome Grey Gardens se deu por causa da cor das dunas, das paredes de cimento do jardim e da névoa do mar no local onde está a casa das duas mulheres, no vilarejo de East Hampton, condado de Suffolk em Nova York.
Entre 1971 e 1972, a casa estava infestava de pulgas e era habitada por gatos e guaxinins, sem água corrente na casa, além do lixo que estava por todo lado. mãe e filha foram notícia em um artigo no National Enquirer e uma reportagem de capa na New York Magazine. Os irmãos Maysles se interessaram pela história das duas mulheres e obtiveram a permissão para filmar o documentário sobre as duas mulheres. Lançado em 1976 com grande aclamação da crítica, a forma com que o filme foi conduzido, fez com que mãe e filha simplesmente contassem sua história diante da câmera.
Grey Gardens é fascinante na forma com que apresenta essas duas personagens e suas histórias de vida. Um contraponto se instala no filme entre as imagens que mostram a deterioração da casa e de seus objetos com a forma com que as personagens lembram o passado. É como se o espectador ainda pudesse visualizá-lo apesar de tudo já ter sido consumido pela poeira e pelos danos do tempo.
O notório, porém inofensivo dano psicológico presente em “Little Edie”, permite que a mulher traga em seu semblante um devaneio constante em sua fala e olhar. É como se às vezes presente e passado estivessem juntos na mesma pessoa. Mesmo quando ciente do estado da casa e de que nada é como antes, “Little Edie” parece encontrar na oportunidade de ver sua vida documentada, uma chance de poder aparecer (no bom sentido) e ser vista. Mesmo sem ter coragem de fato de deixar sua mãe, a personagem sonha com sua liberdade e pode viver em Nova York.
“Big Edie” por outro lado, não traz arrependimentos e sempre se orgulha em dizer que viveu a vida como quis. Mesmo vivendo em situação deplorável em meio ao lixo e em uma casa que precisa urgentemente ser limpa e reformada, ficamos com pena dessas duas mulheres, mas ao mesmo tempo embarcamos na história de vida de ambas. Quase de forma teatral, mas não forçada, “Little Edie” canta, se orgulha em exibir suas roupas e as combinações feitas por ela mesma, esquecendo por vezes a sua realidade. A câmera por vezes se fixa em alguns objetos do passado, como um retrato pintado de “Big Edie” ainda na juventude, que faz um contraste com a mulher no momento do filme.
Grey Gardens tem um efeito raro de nos apresentar uma história de uma realidade triste, ao mesmo tempo em que a força de suas duas personagens, faz o filme ser coberto por uma utopia que nos faz acompanhar dois mundos simultâneos: o da realidade mais dura e o dos sonhos e das bonitas lembranças que de tão vívidos ainda na memória de suas personagens, nos faz esquecer do pó que os cobrem. 

domingo, 6 de janeiro de 2019



"Ironia da Sorte" - Lágrimas de um palhaço
Ironia da Sorte (He Who Gets Slapped, 1924) foi dirigido por Victor Sjöström e baseado no livro russo escrito por Leonid Andreyev. Foi o primeiro filme a ser produzido na época pela recém inaugurada Metro-Goldwyn-Mayer, que usou pela primeira vez nesse filme, o famoso leão rugindo no seu logo. Curiosamente, no próprio longa há a presença de um leão durante um momento importante da história.
O elenco traz Norma Shearer, John Gilbert e ninguém menos que Lon Chaney (o homem das mil faces) como o protagonista. Considerado por muitos como um do melhores filmes do ator, Ironia da Sorte traz Chaney por traz de uma maquiagem relativamente simples, se comparada com algumas outras mais elaboradas e até arriscadas para a saúde do ator, que costumava criar grandes efeitos em seu rosto, muito antes do látex ser usado.
No longa, Chaney vive um cientista desconhecido chamado Paul Beaumont, que durante anos finalmente conseguiu reunir provas sobre a origem da humanidade. Ele é acolhido pelo Barão Regnard (Marc McDermott), que se torna seu patrono e permite que Beaumont viva em sua mansão enquanto o cientista realiza suas pesquisas. Um dia, Paul é traído por sua namorada e pelo próprio Regnard, que rouba suas pesquisas e as apresenta durante um congresso como se fossem suas. Paul assiste à tudo e ao tentar confrontar o Barão, é humilhado por ele ao receber um tapa no rosto e ser motivo de piada por todos presentes no local.
Cinco anos depois, Paul está trabalhando em um circo onde é conhecido pelo nome artístico de HE (Ele). Ironia da Sorte é mais um retrato interessante (e trágico) do velho palhaço que ao mesmo tempo em que faz todos rirem, quando conhecido mais a fundo, se desfaz da figura cômica e se deixa humanizar e mostrar suas falhas e sofrimentos. O longa combina muito bem drama, romance e vingança, ao mesmo tempo em que traz uma boa reflexão sobre a perda da dignidade e até o sadismo humano.

Interessante como algumas metáforas reforçam características de seus personagens, como a própria ideia do palhaço carregar a imagem do bobo que se permite virar motivo de riso de todos. Ao mesmo tempo em que Paul parece usar sua humilhação no congresso para fazer disso sua profissão, se sentindo até bem nessa posição, podemos entender sua decisão também como um reflexo de sua baixa autoestima. O problema está no conflito do palhaço quando percebe que na plateia está o Barão que roubou suas pesquisas. Para completar, Paul se vê apaixonado por Consuelo (Norma Shearer), que também trabalha no circo e que é praticamente obrigada por seu pai a se casar com Regnard..
Nunca levado a sério, HE vira essa figura cômica para os próprios personagens do filme, até mesmo quando se declara para Consuelo, que mesmo sem a intenção de humilhá-lo, entende os sentimentos de Paul como uma grande brincadeira por parte do mesmo. O interessante no filme é justamente a contradição do cômico com a real história de vida do cientista. As cenas em que ele se apresenta no circo e leva tapas de outros palhaços, chega a nos constranger quando sabemos que Paul está lembrando de sua humilhação no congresso. Tudo está no contexto, já que passamos a nos incomodar com as humilhações no momento em que todo o passado do personagem está volta.   
O uso de um globo terrestre traz alguns significados interessantes. Antes de se tornar um palhaço, Paul arremessa as folhas contendo suas pesquisas (depois de serem lidas pelo Barão) em um globo terrestre, como a representação de um ressentimento do personagem com relação ao próprio mundo, mais especificamente às pessoas e à frustração de não poder confiar em ninguém.

Essa mesmo globo terrestre é “transformado” em uma bola que é vista sendo girada por um palhaço em um momento que marca a passagem de uma cena para outra. Aqui parece termos a representação de um mundo que dá voltas e que traz consigo mudanças nas vidas dos personagens, ao mesmo tempo em que a bola ganha o status de brinquedo nas mãos do palhaço, que gira como se de certa forma representasse o “controle do mundo” que Paul adquiriu ao fazer com que suas humilhações virassem o seu ganha pão. Uma forma de levar a vida de forma menos séria, ou um conformismo com sua dignidade rebaixada?
Mesmo com essa perseverança e com a possibilidade de se vingar do Barão, Paul não tem tanta sorte e os momentos finais de HE, são tão irônicos quanto tristes. Risos se misturam com um final nada cômico, enquanto nosso palhaço acaba pagando um preço por sua vingança. Mesmo com uma plateia que ignora o que está de fato acontecendo com o HE, o filme parece buscar o lado perverso da humanidade, mesmo que de forma indireta, quando as gargalhadas e os aplausos tomam conta do picadeiro durante um momento dramático.
Ironia da Sorte é um interessante filme sobre a vida de um palhaço e do contraste amargo entre o cômico e o trágico, capaz de abranger questões sobre a dignidade humana e também sua perversidade.

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

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