segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O Canibalismo como Autoconhecimento e Canalização de Tensões



Se tem algo capaz de expandir o cinema de horror/terror e dar a ele substância para que o roteiro não seja algo que se resuma a ações e acontecimentos gratuitos,  é quando encontramos em um filme desse gênero, a capacidade de abordar temas reais e que afligem as pessoas serem transformados em alegorias que nos chocam e perturbam. Felizmente, filmes mais recentes têm trazido questões pertinentes e que rendem boas discussões, tanto sobre a forma, quanto sobre o conteúdo.
Imagine um filme sobre as inseguranças e pressões de uma adolescente que acaba de começar a faculdade. Até aí tudo bem. Mas imagine como esse assunto seria em uma abordagem que explora o canibalismo. É isso o que a francesa Julia Ducournau retrata em Grave (Raw, 2016), seu primeiro longa-metragem.
O filme foi um dos que mais chamaram a atenção do público e da crítica em 2017, principalmente pelos relatos de espectadores que teriam passado mal durante a exibição. Independente de notícias e até entrevistadores que estão mais preocupados em falar sobre o quão chocante o filme pode ser (embora seja compreensível que cada pessoa reaja de uma forma a cenas bem pesadas), Grave explora de forma eficaz as descobertas de Justine (Garance Marillier), uma jovem vegetariana que acaba de entrar na faculdade de veterinária. Após uma espécie de ritual realizado pelos veteranos para receber (e humilhar) os calouros, Justine passa a sentir um impulso que a faz desejar por carne, seja ela crua, cozida, de animal, ou…humana.
Ainda na França, Marina de Van lançou Em Minha pele (Dans ma peau, 2002). A história gira em torno de Esther (Marina de Van), uma mulher que após se cortar em uma festa, descobre um desejo crescente em consumir pequenos pedaços de sua própria carne.
Da mesma forma que Mate-me, por favor (2015), filme brasileiro dirigido por Anita Rocha da Silveira, trouxe o horror através das angústias da protagonista, o mesmo acontece em Grave e Em Minha Pele. Se no primeiro filme as reações da personagem podem ser entendidas como metáforas para suas inseguranças, mas talvez o mais importante, suas descobertas, no filme de Marina as questões que parecem mais obvias são de fato as preocupações, inseguranças e pressões de Esther.
Em Grave Justine sofre praticamente uma enxurrada de descobertas que parecem forçá-la a um amadurecimento em tão pouco tempo. A escolha da faculdade como local onde ocorre tudo isso, foi uma opção bem interessante. Em um dos diversos trotes que ocorrem no lugar, os calouros precisam engatinhar, o que pode facilmente remeter a ideia do engatinhar de uma criança que depois irá aprender a andar sozinha. O ato como alegoria para a própria ideia de amadurecimento, se encerra quando os alunos chegam a uma festa de boas-vindas, agora podendo ficar em pé e se divertirem.
Para Justine o engatinhar tem mais de um significado. Ele representa um ato meio animalesco e primitivo, levando em conta a descoberta que será feita pela própria garota, que começará a querer comer carne crua. Na festa, ela se sente completamente perdida enquanto procura por Alexia (Ella Rumpf), sua irmã mais velha, já veterana na faculdade.
Durante as aulas Justine observa um cavalo sendo anestesiado, autopsia de animais ou os mesmos dentro de potes de vidro para se manterem conservados. Esses símbolos casam muito bem tanto com o mórbido, quanto com a ideia da presa fácil, assim como parecem representar a vulnerabilidade de Justine diante de sua insegurança, que a torna naquele momento um “animal” acuado.
Com tantas exigências e hostilidade vindas até do próprio professor, começam os atos da personagem como forma de canalizar toda essa situação desconfortável. A tricofagia (transtorno comportamental na qual a pessoa transtornada passa a engolir os próprios cabelos), é retratada aqui em uma cena agoniante e repulsiva. São nesses momentos que o gênero do horror mostra sua maestria ao maximizar algo que por si só já seria aflitivo.
Mas mais visceral, é claro, está na descoberta da protagonista em comer carne crua. Essa descoberta é sem dúvidas a mais importante para o amadurecimento da personagem. O que no primeiro momento pode parecer algo feito apenas para chocar ou causar repulsa, ainda mais pelo fato do filme ser de terror, traz um significado que vai mais além do gore: uma descoberta de instintos que Justine sabe que se não controlados, podem fazer mal às pessoas à sua volta. Sua vontade de comer carne vai aos poucos extrapolando as fronteiras do permissível quando ela passa a olhar para Adrien (Rabah Nait Oufella), seu colega de quarto, de uma forma diferente. Aqui esse olhar representa também tanto uma afloração da sexualidade, já que a personagem ainda não teve nenhuma relação sexual, como o desejo pela carne do colega.
Justine então tem a tarefa de usar o racional para que nada saia do controle. O canibalismo aqui é retratado como algo que não pode ser negado, pois faz parte de Justine, ao mesmo tempo em que deve ser usado o bom senso, culminando numa forma excêntrica em como o filme aborda a importância do autoconhecimento como forma de evoluirmos como pessoa.
Além disso, a relação entre Justine e Alexia também é retratada no filme. A relação das duas irmãs é responsável pela exploração rica das personagens, que tantas vezes é deixado de lado nos filmes de terror. A relação que se por um lado está entre o amor e o ódio, além de muita competição entre ambas, por outro mostra um amor incondicional entre elas que está acima de qualquer desavença. Até mesmo em uma briga entre Justine e Alexia, o trabalho corporal das duas atrizes as fazem parecer dois animais selvagens, marcando mais uma vez o animalesco e o visceral tão presentes no longa.
Em Minha Pele a complexidade da protagonista pode ser considerada até mais simples, do que em Grave.Sem haver de fato uma explicação para o que desencadeou o comportamento de Esther, algumas pistas dão a entender que a mulher sofre várias pressões, seja no trabalho ou até em seu relacionamento com o seu namorado. Mais intimista, seu vício não prejudica ninguém ao seu redor, a não ser ela mesma.
A direção se concentra em cenas demoradas como forma de deixar tudo ainda mais perturbador. A personagem analisa seu corpo de forma lenta antes de começar a se morder. Em uma cena em que Esther estica a pele de sua barriga, o desconforto para o espectador aumenta gradativamente enquanto a cena propositalmente demorada, cria essa inquietude em quem assiste.
Diferente de Grave, Esther passa o filme todo escondendo sua situação de todos e acaba ficando completamente só. A personagem parece não sentir dor, como se já estivesse anestesiada diante do mundo e sendo assim incapaz de sentir. Aliás ela até sente algo, que é justamente tudo aquilo que a faz insegura e inquieta. Mas essas questões parecem tão mais fortes, que morder seu próprio braço acaba sendo algo que além de servir como escapatória para seus problemas emocionais, serve para aliviar certas dores que podem ser mais fortes do que a dor física.
Conforme vai se isolando de tudo e todos, Esther muitas vezes é vista por nós como uma usuária de drogas, como se de fato seu vício em comer sua própria carne fosse também uma alegoria para uma fuga nas drogas e que ganha aqui um sentido mais literal de autodestruição.
Sem dúvidas tanto Grave quanto Em Minha Pele, conseguem chocar sem deixar de lado uma boa construção de personagens, que através de diversos aspectos psicológicos e comportamentais, cria uma narrativa sólida e capaz de usar o horror para abordar questões que fazem parte dos males da humanidade.

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