Enfrentar o preconceito é algo fantástico
A regulamentação do
casamento homoafetivo no Brasil completará cinco anos neste ano. No dia 14 de
maio de 2013, foi publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a Resolução
175, que passou a garantir aos casais homoafetivos o direito de se casarem no
civil. Com a resolução, ficou proibida qualquer recusa de registro da união por
tabeliães.
Essa grande conquista
permitiu que homossexuais usufruíssem de mecanismos legais que até então eram
uma exclusividade dos casais heterossexuais. Além de legitimar um núcleo
familiar, há também a garantia de direitos patrimoniais que antes eram
simplesmente negados. Muitas pessoas que estavam em um relacionamento
homoafetivo, se viam sem chão quando a morte de um companheiro ou companheira
acarretava na decisão da família do falecido (a) de praticamente expulsar do
imóvel, por exemplo, a pessoa que viveu por anos sob o mesmo teto com seu
companheiro (a). Antes da lei. LGBTs eram invisíveis para essas famílias cheias
de preconceito. Talvez mais do que a questão patrimonial, existe também a
questão afetiva e até moral, que muitas vezes impedia a própria vivência do
luto e do direito de ter um momento para se despedir de quem se ama.
E é sobre isso (também)
que se trata o longa Uma Mulher
Fantástica (Una Mujer Fantástica,
2017), o grande vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na 90º edição do
Oscar. O longa foi dirigido pelo Chileno Sebastián Lelio e conta a história de Marina
(Daniela Vega), uma garçonete transexual que também canta em alguns clubes da
cidade onde mora. Após a morte de Orlando (Francisco Reyes), seu companheiro, Marina
precisará lidar com o preconceito da família do homem para poder vivenciar seu
luto e se afirmar como um ser humano digno e que merece ser respeitado.
Se aqui no Brasil a lei
citada acima, assegura o lado patrimonial de casais homoafetivos, no Chile,
país onde se passa a história, esses direitos ainda não são garantidos. Mas o
filme passa longe da questão da legislação, indo mais além ao falar sobre resistência
e homofobia. O lado humano e o direito de Marina poder se despedir de Orlando e
sua reafirmação como mulher, são os destaques no roteiro de Lélio.
A personagem que é muito
bem resolvida com sua identidade de gênero, irá ver muito sobre si mesma ser
posto à prova após o falecimento de Orlando, conflito esse no roteiro, que abalam as estruturas da personagem. O
forte preconceito da família de Orlando, mais especificamente vindo da sua
ex-esposa e de seu filho, colocam a autoestima da personagem de escanteio
enquanto ela se priva de ir ao enterro de seu companheiro.
Sebastián Lelio sabe como
valorizar suas personagens, sem que isso se torne um discurso óbvio e piegas
sobre autoestima. Em Uma Mulher
Fantástica, o mecanismo já usado pelo diretor no filme Gloria (2013) – leia mais
aqui – de usar apenas as ações da personagem, ao invés de muitos diálogos, para
exteriorizar tudo o que se sente, permanece. É possível notar, no entanto, a
utilização de elementos que criam uma espécie de poesia que simbolizam as lutas
da personagens, suas derrotas e alguns “mensagens” para a própria.
No filme o preconceito
aparece quase de forma escancarada, como nos olhares de alguns personagens que
falam com Marina ou até em algumas palavras mais duras ditas pela ex-esposa de
Orlando. Já o filho do homem, é mais agressivo, ainda que não parta para a
violência física de fato. A humilhação que ele causa na personagem, termina com
a mesma tendo seu rosto deformado por conta das voltas dadas com fita adesiva,
como forma de intimidar a mulher por ter comparecido na igreja onde ocorria o
funeral de Orlando. A personagem se vê no vidro do carro antes de tirar as
fitas do rosto e mais uma vez temos a imagem da mulher, agora com o rosto disforme
que simboliza uma agressão à sua moral e à sua própria imagem diante do
mundo.
A abordagem de uma
delegada que insiste para que Marina faça exame de corpo de delito, frisa mais
uma vez como esses personagens, que nunca fizeram parte da vida de Marina e de
Orlando, não conseguem enxergar a relação deles como algo natural. Quando não é
a repulsa da família, é a delegada que trata a relação desses dois personagens
como um possível crime sexual. Curioso como o roteiro não nos fornece momentos
em flashback que tragam mais
informações sobre a vida de Marina e Orlando antes da morte do último, mas o
pouco que nos é dito, é o suficiente para compreendermos como eles viviam. Nos
contentamos com o constante “fantasma” do homem que surge regularmente para
Marina, como a única forma de representar as lembranças do casal e o amor que
eles tinham, e que nunca será compreendido pelo mundo que os rodeia. Além
disso, a imagem recorrente do homem, parece também servir como estímulo para
que Marina ganhe aos poucos coragem para se impor. Até mesmo a irmã da
protagonista e seu cunhado, que não são necessariamente preconceituosos, também
são colocados na história como pessoas que pouco compreendem a situação,
encorajando a personagem a não comparecer ao ao enterro de Orlando.
Se por um lado Marina
teve que devolver o carro e sair do apartamento de onde morava com Orlando, por
outro há o lado do direito de se despedir e até o de vivenciar o luto e suas
lembranças com seu marido. A personagem não poderá mudar o mundo a sua volta e
é isso um dos grandes trunfos do roteiro. Marina consegue se impor como mulher
e reivindicar o direito de dar o último adeus ao seu marido. Mesmo nesse
momento, percebemos uma marginalização por conta do lugar onde é dado esse último
adeus. Esse momento frisa bem a marginalização da comunidade LGBT, que sempre com
muito custo e luta, consegue o que lhe é de direito, mesmo com um
julgamento social constante. Esse tom
marginal também ocorre no início do filme, quando Marina simplesmente sai
correndo quando ouve a notícia de que Orlando faleceu. Esse ato impulsivo e
desesperador, trazem também uma ideia de marginalização, como se houvesse uma
culpa internalizada pela morte de Orlando, que fizesse a protagonista sair
correndo.
Uma Mulher Fantástica
é um filme sobre direitos. Não os da lei, que também são importantes, mas mais
do que isso. É o direito de ser o que é, de aprender a se impor, de compreender
que às vezes o preconceito fará com que as pessoas reavaliem sua própria
posição no mundo. E por último, o direito de poder gritar dizendo: “Eu estou
aqui! Eu existo! Eu sou fantásticx!”. Sendo assim, nada mais justo do que uma
estatueta dourada para celebrar um filme que fala justamente de encontrar nosso
próprio valor como pessoa.
texto de : Tarcísio Paulo Dos Santos
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