segunda-feira, 9 de abril de 2018

Uma Mulher Fantástica


Enfrentar o preconceito é algo fantástico


A regulamentação do casamento homoafetivo no Brasil completará cinco anos neste ano. No dia 14 de maio de 2013, foi publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a Resolução 175, que passou a garantir aos casais homoafetivos o direito de se casarem no civil. Com a resolução, ficou proibida qualquer recusa de registro da união por tabeliães.

Essa grande conquista permitiu que homossexuais usufruíssem de mecanismos legais que até então eram uma exclusividade dos casais heterossexuais. Além de legitimar um núcleo familiar, há também a garantia de direitos patrimoniais que antes eram simplesmente negados. Muitas pessoas que estavam em um relacionamento homoafetivo, se viam sem chão quando a morte de um companheiro ou companheira acarretava na decisão da família do falecido (a) de praticamente expulsar do imóvel, por exemplo, a pessoa que viveu por anos sob o mesmo teto com seu companheiro (a). Antes da lei. LGBTs eram invisíveis para essas famílias cheias de preconceito. Talvez mais do que a questão patrimonial, existe também a questão afetiva e até moral, que muitas vezes impedia a própria vivência do luto e do direito de ter um momento para se despedir de quem se ama.

E é sobre isso (também) que se trata o longa Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, 2017), o grande vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na 90º edição do Oscar. O longa foi dirigido pelo Chileno Sebastián Lelio e conta a história de Marina (Daniela Vega), uma garçonete transexual que também canta em alguns clubes da cidade onde mora. Após a morte de Orlando (Francisco Reyes), seu companheiro, Marina precisará lidar com o preconceito da família do homem para poder vivenciar seu luto e se afirmar como um ser humano digno e que merece ser respeitado.

Se aqui no Brasil a lei citada acima, assegura o lado patrimonial de casais homoafetivos, no Chile, país onde se passa a história, esses direitos ainda não são garantidos. Mas o filme passa longe da questão da legislação, indo mais além ao falar sobre resistência e homofobia. O lado humano e o direito de Marina poder se despedir de Orlando e sua reafirmação como mulher, são os destaques no roteiro de Lélio.

A personagem que é muito bem resolvida com sua identidade de gênero, irá ver muito sobre si mesma ser posto à prova após o falecimento de Orlando, conflito esse no roteiro,  que abalam as estruturas da personagem. O forte preconceito da família de Orlando, mais especificamente vindo da sua ex-esposa e de seu filho, colocam a autoestima da personagem de escanteio enquanto ela se priva de ir ao enterro de seu companheiro.

Sebastián Lelio sabe como valorizar suas personagens, sem que isso se torne um discurso óbvio e piegas sobre autoestima. Em Uma Mulher Fantástica, o mecanismo já usado pelo diretor no filme Gloria (2013) – leia  mais aqui – de usar apenas as ações da personagem, ao invés de muitos diálogos, para exteriorizar tudo o que se sente, permanece. É possível notar, no entanto, a utilização de elementos que criam uma espécie de poesia que simbolizam as lutas da personagens, suas derrotas e alguns “mensagens” para a própria.



O espelho é algo bem presente. Seja quando Marina anda pela rua e dá de cara com dois homens levando o objeto para algum lugar, ou numa porta de vidro de algum prédio por onde ela passa. É  como se os espelhos quisessem mostrar para a protagonista que de fato ela é uma mulher fantástica. Até em uma ventania que poeticamente ganha proporções fora do comum, servem como metáfora para simbolizar a luta de Marina para não deixar que o preconceito anule sua autoestima. Essa luta na verdade é mais silenciosa e não envolve brigas judicias por propriedades nem nada do tipo. É algo mais interno, embora haja uma cenas de homofobia, e diz respeito a como a personagem se coloca no mundo. Até mesmo a questão de gênero é brilhantemente usada em um momento em que um pequeno espelho tampa a genitália da personagem, em uma forma brilhante de reforçar essa questão. Vemos o rosto de Marina no lugar de seu órgão sexual, o que retrata lindamente que o gênero está em como as pessoas se veem e não na genitália. 

 


No filme o preconceito aparece quase de forma escancarada, como nos olhares de alguns personagens que falam com Marina ou até em algumas palavras mais duras ditas pela ex-esposa de Orlando. Já o filho do homem, é mais agressivo, ainda que não parta para a violência física de fato. A humilhação que ele causa na personagem, termina com a mesma tendo seu rosto deformado por conta das voltas dadas com fita adesiva, como forma de intimidar a mulher por ter comparecido na igreja onde ocorria o funeral de Orlando. A personagem se vê no vidro do carro antes de tirar as fitas do rosto e mais uma vez temos a imagem da mulher, agora com o rosto disforme que simboliza uma agressão à sua moral e à sua própria imagem diante do mundo.  


A abordagem de uma delegada que insiste para que Marina faça exame de corpo de delito, frisa mais uma vez como esses personagens, que nunca fizeram parte da vida de Marina e de Orlando, não conseguem enxergar a relação deles como algo natural. Quando não é a repulsa da família, é a delegada que trata a relação desses dois personagens como um possível crime sexual. Curioso como o roteiro não nos fornece momentos em flashback que tragam mais informações sobre a vida de Marina e Orlando antes da morte do último, mas o pouco que nos é dito, é o suficiente para compreendermos como eles viviam. Nos contentamos com o constante “fantasma” do homem que surge regularmente para Marina, como a única forma de representar as lembranças do casal e o amor que eles tinham, e que nunca será compreendido pelo mundo que os rodeia. Além disso, a imagem recorrente do homem, parece também servir como estímulo para que Marina ganhe aos poucos coragem para se impor. Até mesmo a irmã da protagonista e seu cunhado, que não são necessariamente preconceituosos, também são colocados na história como pessoas que pouco compreendem a situação, encorajando a personagem a não comparecer ao ao enterro de Orlando.

Se por um lado Marina teve que devolver o carro e sair do apartamento de onde morava com Orlando, por outro há o lado do direito de se despedir e até o de vivenciar o luto e suas lembranças com seu marido. A personagem não poderá mudar o mundo a sua volta e é isso um dos grandes trunfos do roteiro. Marina consegue se impor como mulher e reivindicar o direito de dar o último adeus ao seu marido. Mesmo nesse momento, percebemos uma marginalização por conta do lugar onde é dado esse último adeus. Esse momento frisa bem a marginalização da comunidade LGBT, que sempre com muito custo e luta, consegue o que lhe é de direito, mesmo com um julgamento  social constante. Esse tom marginal também ocorre no início do filme, quando Marina simplesmente sai correndo quando ouve a notícia de que Orlando faleceu. Esse ato impulsivo e desesperador, trazem também uma ideia de marginalização, como se houvesse uma culpa internalizada pela morte de Orlando, que fizesse a protagonista sair correndo.

Uma Mulher Fantástica é um filme sobre direitos. Não os da lei, que também são importantes, mas mais do que isso. É o direito de ser o que é, de aprender a se impor, de compreender que às vezes o preconceito fará com que as pessoas reavaliem sua própria posição no mundo. E por último, o direito de poder gritar dizendo: “Eu estou aqui! Eu existo! Eu sou fantásticx!”. Sendo assim, nada mais justo do que uma estatueta dourada para celebrar um filme que fala justamente de encontrar nosso próprio valor como pessoa.

texto de : Tarcísio Paulo Dos Santos



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...