domingo, 15 de abril de 2018

Quebrando Estereótipos


A representação da mulher na terceira idade nos filmes

 Glória e Party Girl




Sabemos como o cinema pode ser cruel quando se fala em envelhecimento. Principalmente quando se trata de uma mulher. Não é raro vermos reclamações de atrizes sobre como Hollywood as ignora e como muitos papeis acabam favorecendo atrizes mais novas. A TV por vezes acaba sendo uma fuga para essas atrizes, que acabam ganhando seu espaço.

Jessica Lange é um bom exemplo disso. A atriz vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme Tootsie (1982), começou sua carreira no filme King Kong, remake do longa de 1933 de mesmo nome. Nos anos 80 e 90 a atriz participava de diversas produções até sofrer um certo declínio em sua carreira. Tudo mudou com a série American Horror Story, de Ryan Murphy, que reanimou a carreira de Lange e a apresentou para as novas gerações. Em Feud, série também criada por Murphy, Lange contracenou com Susan Sarandon no enredo que contava sobre a rivalidade de Bette Davis e Joan Crawford durante as filmagens do filme O Que Aconteceu com Baby Jane? (1962) de Robert Aldrich. Mais do que a rivalidade, a série chegou a também abordar sobre o preconceito com as atrizes de Hollywood por conta da idade e como isso afetava (e afeta) a carreira delas.



Ainda sobre televisão, antes de retornar ao cinema, vale a pena destacar a série Grace and Frankie. Produzida pela Netflix, o enredo foca em duas mulheres na casa dos 70 anos que depois de descobrirem que seus respectivos maridos são gays e vão se casar, precisam seguir com suas vidas depois de uma relação tão duradoura. A série trata de questões como solidão, sexualidade e até vida profissional. Mesmo com o humor, as dificuldades e limitações da idade são levadas de uma forma descontraída ao mesmo tempo em que há um respeito para com as personagens.

Essa cultura da juventude existe desde o início do cinema, como citam Nadine Muller e Joel Gwynne no livro Postfeminism and Contemporary Hollywood Cinema, publicado em 2013. No final de 1910 e 1920, a imprensa, assim como as revistas de cinema voltada para os fãs dos astros e estrelas, constantemente enfatizavam a juventude de Hollywood. A indústria cinematográfica era apoiada por atores e atrizes que sempre passavam uma imagem cheia de vitalidade. A tela grande não tolerava falhas e imperfeições que eram facilmente disfarçadas nos palcos, o que fazia com que muitas atrizes vissem suas carreiras começarem a declinar antes mesmo dos trinta anos de idade. Tudo isso só alimentava o interesse por dietas e cirurgias plásticas. As mulheres que eram o principal alvo, viam o envelhecimento e até mesmo a menopausa como questões patológicas ligadas a perda de algo. Envelhecer não parecia ser algo natural do corpo, mas sim algo a ser curado.

Claro que hoje já podemos encontrar algumas exceções. Em O Diabo Veste Prada (David Frankel, 2006), Muller e Gwynne citam a personagem de Miranda Priestly (Meryl Streep) como uma personagem inovadora ao colocar uma mulher com mais de cinquenta anos, como alguém bem-sucedido e independente, mesmo que isso a tenha feito pagar um preço alto com relação ao seu casamento e a relação com suas filhas.

Tom Brook escreve no artigo Hollywood: No longer scared of the over 40’s, que você pode conferir aqui (em inglês), que muita coisa está começando a mudar. Terry Lawler, diretor executivo do New York Women in Film and Television enxerga um progresso, mas que ainda há muito a ser feito. Ele comenta que já começam a surgir papeis escritos especialmente para mulheres mais maduras. Essa pequena demanda por atrizes com mais de 40 anos se dá também pelo fato do público querer se ver representado nas telas do cinema. Adam Moore, do US actors’ union SAG-AFTRA, destaca uma mudança nas bilheterias: “Muitas pessoas que gastam o dinheiro delas, não estão na casa dos vinte. É um público bem mais velho. Eles exigem ver suas próprias histórias refletidas. ”

Mesmo com a lentidão de Hollywood em buscar mais representação de histórias sobre mulheres na terceira idade, podemos encontrar em outros países filmes que não só procuram dar mais voz a essas mulheres, como também representá-las da forma mais natural possível. Glória (2013) de Sebastián Lelio e Party Girl (2014) de Marie Amachoukeli-Barsacq e Claire Burger, são dois filmes interessantes e pouco conhecidos que se destacam por suas premissas e principalmente pela forma que as conduz. Ambos não se tratam de produções hollywoodianas, o que talvez explique a importância em olharmos para outros países, para encontrarmos histórias que deem valor a temas e personagens pouco explorados nos EUA.

O primeiro longa foi produzido no Chile e conta a história de Glória, uma mulher perto dos sessenta anos, divorciada, que conhece Rodolfo, um homem de sua faixa etária que mesmo interessado numa relação com a personagem, ainda se vê preso à sua relação anterior.



Já no segundo longa, produzido na França, acompanhamos a história de Angélique (Angélique Litzenburger), uma mulher na casa dos sessenta anos, que trabalhou a vida toda como anfitriã de um bordel na divisa da Alemanha com a França. Ao receber o pedido de casamento de um cliente, Michel (Joseph Bour) acostumado a frequentar o lugar, Angélique resolve deixar a vida no prostíbulo para viver junto com o homem.



Essas duas personagens com vidas tão diferentes, são ao mesmo tempo semelhantes pelo brilhantismo com que tanto o roteiro, quanto a direção, retratam suas vidas de uma forma simples, mas também eficaz. Tanto em Glória quanto em Party Girl, a mulher está no controle de sua vida e se permite viver uma relação, mesmo precisando lidar com dúvidas, inseguranças, tentativas e falhas.

Sobre aproveitar a vida

Se Angélique aprecia as noites no bordel, enquanto bebe seus drinks em conversas com suas amigas, Glória curte sua vida de divorciada saindo para dançar, beber e conhecer pessoas novas. A personagem nos é esplendidamente apresentada na primeira cena, enquanto está perto do balcão bebendo algo. O destaque está justamente nos casais mais novos que dançam em primeiro plano enquanto a protagonista aparece de costas e no segundo plano. É como se a câmera falasse: “Que tal se ao invés de contarmos a história de um desses casais, não falamos daquela senhora que está ali? ” E que bom que Sebastián Lelio tomou tão louvável decisão. Com toques de comédia no tom e momento certos, jamais vemos a ridicularização de Glória. A mulher que às vezes se desequilibra com o salto enquanto anda, ou que não consegue alcançar os pés na aula de yoga, não cai no caricato da imagem da mulher exageradamente extrovertida, nem de uma mulher introvertida ou conservadora. Glória é alguém que você poderia encontrar facilmente no seu dia a dia e que poderia passar facilmente despercebida no cinema hollywoodiano.
A música também é algo muito importante no filme. A personagem canta no carro e mesmo quando a canção é interrompida no corte da cena que pula para a monotonia de seu trabalho, podemos vê-la cantar mais adiante em cenas em que ela se depila, ou no próprio baile que frequenta.



Já Angélique, relembra com alegria o seu passado quando fala para suas amigas dos tempos em que trabalhava no bordel enquanto ainda era jovem. As cores das luzes no local, sempre quentes, representam seu verdadeiro estado de ânimo, sua alegria e liberdade.


Quanto ao sexo


Glória também não se preocupa em transar com Rodolfo em tão pouco tempo depois de conhecê-lo. O sexo aliás é algo que deve ser notado. Se já não é todo dia que encontramos uma narrativa disposta a retratar a vida de uma mulher com sessenta anos, imagina ela fazendo sexo? Sim, Glória faz sexo e a câmera não tem pudor em mostrar o nu frontal da personagem e até de Rodolfo, muito menos em não fazer cortes que subtraiam o momento da relação. Falando em relação, a personagem vai se mostrando cada vez mais interessada por Rodolfo, que mesmo retribuindo o interesse e o carinho com ela, ainda não consegue deixar de se preocupar com sua ex-esposa e suas filhas, que parecem aproveitar disso para tê-lo sempre por perto.




Por outro lado, enquanto Angélique se mostra mais à vontade na companhia de Michel no prostíbulo, o mesmo não se pode dizer quando ela decide viver com ele. A personagem traz consigo muitas incertezas quanto a sua decisão. Isso automaticamente bloqueia a personagem fazendo com que ela não consiga ter relações com Michel. Se em Party Girl temos uma mulher mais reservada, com certeza não se trata de uma decisão conservadora da direção, mas sim do contexto em que se encontra a personagem principal.

Sobre o Passado

Ambos os filmes se aproveitam da relação de suas personagens para nos apresentar o passado de cada protagonista. Se Glória tem uma boa relação com seus filhos e com seus ex-marido, Angélique quase consegue o mesmo. No caso de Party Girl, a personagem não tem muito contato com uma das filhas, que já adolescente, mora com outra família. A jovem que não sabe quem é seu pai, vai ao casamento da mãe, a pedido da própria. Aqui as relações podem não ser tão otimistas quanto em Glória, mas no filme há espaço para percebermos que Angélique é uma mulher como outra qualquer, com suas falhas, arrependimentos e com direito a se redimir. Seu casamento com Michel tem uma única função: mesmo que por um momento, se aproximar mais da família.

Em um jantar na casa de seu filho que faz aniversário, Glória leva Rodolfo para conhecer seus filhos e seu ex-marido. Lá ela relembra outros tempos e se emociona com o contexto do momento, quando sua filha lê uma mensagem que recebeu do namorado. O momento de arrependimento, fica com seu ex-marido, que depois de beber mais do que devia, se sente culpado pelo fim do casamento.   

Em busca de uma “salvação” e o papel do homem

Talvez o fato mais interessante em ambos os filmes, seja a quebra de nossas expectativas com relação às protagonistas. Angélique pode facilmente ser vista pelo espectador, como uma mulher que está sendo “salva” por um homem. Sabemos que há um romantismo na mulher que larga uma vida em meio a prostituição para se casar e constituir uma família. Angélique tem total aprovação de seus filhos para se casar com Michel, que veem na oportunidade uma maneira da mãe ser mais responsável e se estabilizar na vida. Mas será isso mesmo o que a personagem quer? Será que ele precisa disso? No bordel ela sempre contou com a amizade de suas amigas que costumam sair juntas para dar risada e conversar. Angélique dança com alegria, como alguém que não precisa de um salvador. Esse é o grande ponto no roteiro, que causa na personagem uma incerteza angustiante até o dia do casamento e que vai se concluir na primeira noite do casal após a cerimônia.

Com Glória, podemos apontar a subversão do clichê da mulher que precisa de um companheiro ao seu lado. Glória já inicia o filme só, mas se abre para uma relação com Rodolfo, que mesmo apresentando conflitos, mantém o interesse da personagem. Quando a situação se agrava, Glória sabe que chega o momento de terminar a relação e seguir em frente. O tom do filme em nenhum momento cai em um dramalhão cômico e cheio de clichês que seriam facilmente usados em um filme com essa temática. A protagonista, porém, se permite dar uma segunda chance a Rodolfo depois de dois momentos em especial, que ficam mais na sugestão do que em algo mais explícito. O primeiro é descobrir um glaucoma e o segundo, uma cena simples em que a Glória de depara com um homem que faz uma apresentação com uma marionete que dança. O boneco é um esqueleto. Seria uma forma sutil da personagem enxergar a morte e perceber que a vida deve ser aproveitada e que Rodolfo talvez mereça outra chance?

Disposta a tentar e mais uma vez magoada, a personagem resolver ir no salão de jogos do hotel onde está hospedada e lá conhece um homem. Depois de uma noite regada a muita bebida e de um breve envolvimento com o estranho, a personagem acorda em uma praia. Essa força interior da personagem e sua alegria pela vida são passados para o visual de uma forma simples e eficaz. Um simples brinquedo que faz a mulher girar faz parte de uma das melhores cenas do filme. Enquanto gira, as luzes da cidade desfocadas ao fundo, parecem dar a personagem justamente essa sensação de algo único que emana da mesma. Podemos chamar de amor próprio, superação, alegria, ou simplesmente nos deixar sentir o que ela também está sentindo.

Sem dúvidas temos tanto em Gloria quanto em Party Girl, dois filmes bem representativos e que sabem como retratar essas duas mulheres com o devido respeito através de uma sutileza e singularidade de personalidades, ao mesmo tempo em que se mantém a naturalidade. Angélique e Gloria só querem aproveitar a vida e não precisam de nenhum homem que as “salve”.


Texto de : Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo





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