domingo, 15 de abril de 2018

Dicas de Filmes

3 Filmes para pensar

A lista de hoje traz filmes que contam histórias comoventes, que nos tiram da zona de conforto e que nos fazem refletir sobre questões muitas vezes ignoradas por nós, além de abordarem temas polêmicos, porém de uma forma delicada, conquista a crítica e o público.

Cada um desses 3 filmes são baseados em livros e  está repleto de citações nas quais vale a pena prestar atenção. Além de serem produções recentes que trazem uma abordagem politica de forma interessante, que dialogam bem com o grande público. 

“Trem Noturno para Lisboa” – 2013 – Bille August





O filme começa na Suíça, quando Raimund Gregorius (Jeremy Irons), um professor de meia-idade e de vida pacata, salva uma moça de se atirar de uma ponte. Depois do incidente, Raimund acaba ficando com um livro misterioso que pertencia à moça. Ele fica muito envolvido com o livro, que é uma espécie de diário com relatos de um jovem idealista, que havia vivenciado o terrível regime de ditadura militar em Portugal há muitos anos atrás.


Raimund larga seu emprego, e parte para Portugal para encontrar os personagens do livro e seu escritor, para tentar obter respostas, não só da história que estava mergulhado, mas também de sua própria vida, em uma jornada de auto-conhecimento. Com um grande elenco, o filme faz viagens no tempo, nos fazendo refletir e mergulhar no mundo desses personagens, ao nos colocar na mesma posição do protagonista, sempre buscando um sentido para as coisas.

“A Onda” – 2009 – Dennis Gansel




“A Onda” é um filme profundo e toca no tema do nazismo na Alemanha atual de uma forma muito interessante. 

O filme conta a história de um professor de história que tem  que falar sobre o fascismo aos estudantes do Ensino Médio e, para conseguir a atenção da turma, ele inicia um projeto que tinha como meta mostrar como determinadas ideais poderiam contaminar qualquer pessoa.

 A princípio, a ideia parecia inofensiva, mas, aos poucos, os alunos vão ficando cada vez mais entregues ao projeto denominado “A Onda”, fazendo com que pensamentos extremistas dominem a escola. O filme consegue nos fazer refletir profundamente sobre o comportamento humano.

Com um elenco jovem coeso e muito bom diga-se de passagem, o filme alemão é um bom exemplo de uma produção para quem quer conhecer mais filmes europeus recentes. O filme ainda conta com a participação do ator Max Riemelt, que ganhou notoriedade recentemente por estrelar a série da Netflix “Sense 8”. 


“Historias Cruzadas” – 2011 – Tate Taylor



Esse filme nos leva aos Estados Unidos dos anos 60, na época em que os costumes começavam a sofrer grandes mudanças. O filme vai além ao abordar com muita coragem a segregação racial americana, mostrando, também, a posição da mulher em uma sociedade patriarcal, na qual sua única função era conseguir um bom casamento.


A protagonista é Skeeter (Emma Stone), uma jovem independente que almeja apenas sucesso profissional (sem dar ouvidos à mãe e às suas amigas), convence um grupo de mulheres negras que trabalham como empregadas domésticas a dividir suas experiências, para que ela pudesse escrevê-las e publicá-las, evidenciando, assim, a luta dessas fortes mulheres.
O elenco conta com belíssimas atuações de Viola Davis, Octavia Spencer (Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante) e Jessica Chastain.

Quebrando Estereótipos


A representação da mulher na terceira idade nos filmes

 Glória e Party Girl




Sabemos como o cinema pode ser cruel quando se fala em envelhecimento. Principalmente quando se trata de uma mulher. Não é raro vermos reclamações de atrizes sobre como Hollywood as ignora e como muitos papeis acabam favorecendo atrizes mais novas. A TV por vezes acaba sendo uma fuga para essas atrizes, que acabam ganhando seu espaço.

Jessica Lange é um bom exemplo disso. A atriz vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme Tootsie (1982), começou sua carreira no filme King Kong, remake do longa de 1933 de mesmo nome. Nos anos 80 e 90 a atriz participava de diversas produções até sofrer um certo declínio em sua carreira. Tudo mudou com a série American Horror Story, de Ryan Murphy, que reanimou a carreira de Lange e a apresentou para as novas gerações. Em Feud, série também criada por Murphy, Lange contracenou com Susan Sarandon no enredo que contava sobre a rivalidade de Bette Davis e Joan Crawford durante as filmagens do filme O Que Aconteceu com Baby Jane? (1962) de Robert Aldrich. Mais do que a rivalidade, a série chegou a também abordar sobre o preconceito com as atrizes de Hollywood por conta da idade e como isso afetava (e afeta) a carreira delas.



Ainda sobre televisão, antes de retornar ao cinema, vale a pena destacar a série Grace and Frankie. Produzida pela Netflix, o enredo foca em duas mulheres na casa dos 70 anos que depois de descobrirem que seus respectivos maridos são gays e vão se casar, precisam seguir com suas vidas depois de uma relação tão duradoura. A série trata de questões como solidão, sexualidade e até vida profissional. Mesmo com o humor, as dificuldades e limitações da idade são levadas de uma forma descontraída ao mesmo tempo em que há um respeito para com as personagens.

Essa cultura da juventude existe desde o início do cinema, como citam Nadine Muller e Joel Gwynne no livro Postfeminism and Contemporary Hollywood Cinema, publicado em 2013. No final de 1910 e 1920, a imprensa, assim como as revistas de cinema voltada para os fãs dos astros e estrelas, constantemente enfatizavam a juventude de Hollywood. A indústria cinematográfica era apoiada por atores e atrizes que sempre passavam uma imagem cheia de vitalidade. A tela grande não tolerava falhas e imperfeições que eram facilmente disfarçadas nos palcos, o que fazia com que muitas atrizes vissem suas carreiras começarem a declinar antes mesmo dos trinta anos de idade. Tudo isso só alimentava o interesse por dietas e cirurgias plásticas. As mulheres que eram o principal alvo, viam o envelhecimento e até mesmo a menopausa como questões patológicas ligadas a perda de algo. Envelhecer não parecia ser algo natural do corpo, mas sim algo a ser curado.

Claro que hoje já podemos encontrar algumas exceções. Em O Diabo Veste Prada (David Frankel, 2006), Muller e Gwynne citam a personagem de Miranda Priestly (Meryl Streep) como uma personagem inovadora ao colocar uma mulher com mais de cinquenta anos, como alguém bem-sucedido e independente, mesmo que isso a tenha feito pagar um preço alto com relação ao seu casamento e a relação com suas filhas.

Tom Brook escreve no artigo Hollywood: No longer scared of the over 40’s, que você pode conferir aqui (em inglês), que muita coisa está começando a mudar. Terry Lawler, diretor executivo do New York Women in Film and Television enxerga um progresso, mas que ainda há muito a ser feito. Ele comenta que já começam a surgir papeis escritos especialmente para mulheres mais maduras. Essa pequena demanda por atrizes com mais de 40 anos se dá também pelo fato do público querer se ver representado nas telas do cinema. Adam Moore, do US actors’ union SAG-AFTRA, destaca uma mudança nas bilheterias: “Muitas pessoas que gastam o dinheiro delas, não estão na casa dos vinte. É um público bem mais velho. Eles exigem ver suas próprias histórias refletidas. ”

Mesmo com a lentidão de Hollywood em buscar mais representação de histórias sobre mulheres na terceira idade, podemos encontrar em outros países filmes que não só procuram dar mais voz a essas mulheres, como também representá-las da forma mais natural possível. Glória (2013) de Sebastián Lelio e Party Girl (2014) de Marie Amachoukeli-Barsacq e Claire Burger, são dois filmes interessantes e pouco conhecidos que se destacam por suas premissas e principalmente pela forma que as conduz. Ambos não se tratam de produções hollywoodianas, o que talvez explique a importância em olharmos para outros países, para encontrarmos histórias que deem valor a temas e personagens pouco explorados nos EUA.

O primeiro longa foi produzido no Chile e conta a história de Glória, uma mulher perto dos sessenta anos, divorciada, que conhece Rodolfo, um homem de sua faixa etária que mesmo interessado numa relação com a personagem, ainda se vê preso à sua relação anterior.



Já no segundo longa, produzido na França, acompanhamos a história de Angélique (Angélique Litzenburger), uma mulher na casa dos sessenta anos, que trabalhou a vida toda como anfitriã de um bordel na divisa da Alemanha com a França. Ao receber o pedido de casamento de um cliente, Michel (Joseph Bour) acostumado a frequentar o lugar, Angélique resolve deixar a vida no prostíbulo para viver junto com o homem.



Essas duas personagens com vidas tão diferentes, são ao mesmo tempo semelhantes pelo brilhantismo com que tanto o roteiro, quanto a direção, retratam suas vidas de uma forma simples, mas também eficaz. Tanto em Glória quanto em Party Girl, a mulher está no controle de sua vida e se permite viver uma relação, mesmo precisando lidar com dúvidas, inseguranças, tentativas e falhas.

Sobre aproveitar a vida

Se Angélique aprecia as noites no bordel, enquanto bebe seus drinks em conversas com suas amigas, Glória curte sua vida de divorciada saindo para dançar, beber e conhecer pessoas novas. A personagem nos é esplendidamente apresentada na primeira cena, enquanto está perto do balcão bebendo algo. O destaque está justamente nos casais mais novos que dançam em primeiro plano enquanto a protagonista aparece de costas e no segundo plano. É como se a câmera falasse: “Que tal se ao invés de contarmos a história de um desses casais, não falamos daquela senhora que está ali? ” E que bom que Sebastián Lelio tomou tão louvável decisão. Com toques de comédia no tom e momento certos, jamais vemos a ridicularização de Glória. A mulher que às vezes se desequilibra com o salto enquanto anda, ou que não consegue alcançar os pés na aula de yoga, não cai no caricato da imagem da mulher exageradamente extrovertida, nem de uma mulher introvertida ou conservadora. Glória é alguém que você poderia encontrar facilmente no seu dia a dia e que poderia passar facilmente despercebida no cinema hollywoodiano.
A música também é algo muito importante no filme. A personagem canta no carro e mesmo quando a canção é interrompida no corte da cena que pula para a monotonia de seu trabalho, podemos vê-la cantar mais adiante em cenas em que ela se depila, ou no próprio baile que frequenta.



Já Angélique, relembra com alegria o seu passado quando fala para suas amigas dos tempos em que trabalhava no bordel enquanto ainda era jovem. As cores das luzes no local, sempre quentes, representam seu verdadeiro estado de ânimo, sua alegria e liberdade.


Quanto ao sexo


Glória também não se preocupa em transar com Rodolfo em tão pouco tempo depois de conhecê-lo. O sexo aliás é algo que deve ser notado. Se já não é todo dia que encontramos uma narrativa disposta a retratar a vida de uma mulher com sessenta anos, imagina ela fazendo sexo? Sim, Glória faz sexo e a câmera não tem pudor em mostrar o nu frontal da personagem e até de Rodolfo, muito menos em não fazer cortes que subtraiam o momento da relação. Falando em relação, a personagem vai se mostrando cada vez mais interessada por Rodolfo, que mesmo retribuindo o interesse e o carinho com ela, ainda não consegue deixar de se preocupar com sua ex-esposa e suas filhas, que parecem aproveitar disso para tê-lo sempre por perto.




Por outro lado, enquanto Angélique se mostra mais à vontade na companhia de Michel no prostíbulo, o mesmo não se pode dizer quando ela decide viver com ele. A personagem traz consigo muitas incertezas quanto a sua decisão. Isso automaticamente bloqueia a personagem fazendo com que ela não consiga ter relações com Michel. Se em Party Girl temos uma mulher mais reservada, com certeza não se trata de uma decisão conservadora da direção, mas sim do contexto em que se encontra a personagem principal.

Sobre o Passado

Ambos os filmes se aproveitam da relação de suas personagens para nos apresentar o passado de cada protagonista. Se Glória tem uma boa relação com seus filhos e com seus ex-marido, Angélique quase consegue o mesmo. No caso de Party Girl, a personagem não tem muito contato com uma das filhas, que já adolescente, mora com outra família. A jovem que não sabe quem é seu pai, vai ao casamento da mãe, a pedido da própria. Aqui as relações podem não ser tão otimistas quanto em Glória, mas no filme há espaço para percebermos que Angélique é uma mulher como outra qualquer, com suas falhas, arrependimentos e com direito a se redimir. Seu casamento com Michel tem uma única função: mesmo que por um momento, se aproximar mais da família.

Em um jantar na casa de seu filho que faz aniversário, Glória leva Rodolfo para conhecer seus filhos e seu ex-marido. Lá ela relembra outros tempos e se emociona com o contexto do momento, quando sua filha lê uma mensagem que recebeu do namorado. O momento de arrependimento, fica com seu ex-marido, que depois de beber mais do que devia, se sente culpado pelo fim do casamento.   

Em busca de uma “salvação” e o papel do homem

Talvez o fato mais interessante em ambos os filmes, seja a quebra de nossas expectativas com relação às protagonistas. Angélique pode facilmente ser vista pelo espectador, como uma mulher que está sendo “salva” por um homem. Sabemos que há um romantismo na mulher que larga uma vida em meio a prostituição para se casar e constituir uma família. Angélique tem total aprovação de seus filhos para se casar com Michel, que veem na oportunidade uma maneira da mãe ser mais responsável e se estabilizar na vida. Mas será isso mesmo o que a personagem quer? Será que ele precisa disso? No bordel ela sempre contou com a amizade de suas amigas que costumam sair juntas para dar risada e conversar. Angélique dança com alegria, como alguém que não precisa de um salvador. Esse é o grande ponto no roteiro, que causa na personagem uma incerteza angustiante até o dia do casamento e que vai se concluir na primeira noite do casal após a cerimônia.

Com Glória, podemos apontar a subversão do clichê da mulher que precisa de um companheiro ao seu lado. Glória já inicia o filme só, mas se abre para uma relação com Rodolfo, que mesmo apresentando conflitos, mantém o interesse da personagem. Quando a situação se agrava, Glória sabe que chega o momento de terminar a relação e seguir em frente. O tom do filme em nenhum momento cai em um dramalhão cômico e cheio de clichês que seriam facilmente usados em um filme com essa temática. A protagonista, porém, se permite dar uma segunda chance a Rodolfo depois de dois momentos em especial, que ficam mais na sugestão do que em algo mais explícito. O primeiro é descobrir um glaucoma e o segundo, uma cena simples em que a Glória de depara com um homem que faz uma apresentação com uma marionete que dança. O boneco é um esqueleto. Seria uma forma sutil da personagem enxergar a morte e perceber que a vida deve ser aproveitada e que Rodolfo talvez mereça outra chance?

Disposta a tentar e mais uma vez magoada, a personagem resolver ir no salão de jogos do hotel onde está hospedada e lá conhece um homem. Depois de uma noite regada a muita bebida e de um breve envolvimento com o estranho, a personagem acorda em uma praia. Essa força interior da personagem e sua alegria pela vida são passados para o visual de uma forma simples e eficaz. Um simples brinquedo que faz a mulher girar faz parte de uma das melhores cenas do filme. Enquanto gira, as luzes da cidade desfocadas ao fundo, parecem dar a personagem justamente essa sensação de algo único que emana da mesma. Podemos chamar de amor próprio, superação, alegria, ou simplesmente nos deixar sentir o que ela também está sentindo.

Sem dúvidas temos tanto em Gloria quanto em Party Girl, dois filmes bem representativos e que sabem como retratar essas duas mulheres com o devido respeito através de uma sutileza e singularidade de personalidades, ao mesmo tempo em que se mantém a naturalidade. Angélique e Gloria só querem aproveitar a vida e não precisam de nenhum homem que as “salve”.


Texto de : Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo





segunda-feira, 9 de abril de 2018

Uma Mulher Fantástica


Enfrentar o preconceito é algo fantástico


A regulamentação do casamento homoafetivo no Brasil completará cinco anos neste ano. No dia 14 de maio de 2013, foi publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a Resolução 175, que passou a garantir aos casais homoafetivos o direito de se casarem no civil. Com a resolução, ficou proibida qualquer recusa de registro da união por tabeliães.

Essa grande conquista permitiu que homossexuais usufruíssem de mecanismos legais que até então eram uma exclusividade dos casais heterossexuais. Além de legitimar um núcleo familiar, há também a garantia de direitos patrimoniais que antes eram simplesmente negados. Muitas pessoas que estavam em um relacionamento homoafetivo, se viam sem chão quando a morte de um companheiro ou companheira acarretava na decisão da família do falecido (a) de praticamente expulsar do imóvel, por exemplo, a pessoa que viveu por anos sob o mesmo teto com seu companheiro (a). Antes da lei. LGBTs eram invisíveis para essas famílias cheias de preconceito. Talvez mais do que a questão patrimonial, existe também a questão afetiva e até moral, que muitas vezes impedia a própria vivência do luto e do direito de ter um momento para se despedir de quem se ama.

E é sobre isso (também) que se trata o longa Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, 2017), o grande vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na 90º edição do Oscar. O longa foi dirigido pelo Chileno Sebastián Lelio e conta a história de Marina (Daniela Vega), uma garçonete transexual que também canta em alguns clubes da cidade onde mora. Após a morte de Orlando (Francisco Reyes), seu companheiro, Marina precisará lidar com o preconceito da família do homem para poder vivenciar seu luto e se afirmar como um ser humano digno e que merece ser respeitado.

Se aqui no Brasil a lei citada acima, assegura o lado patrimonial de casais homoafetivos, no Chile, país onde se passa a história, esses direitos ainda não são garantidos. Mas o filme passa longe da questão da legislação, indo mais além ao falar sobre resistência e homofobia. O lado humano e o direito de Marina poder se despedir de Orlando e sua reafirmação como mulher, são os destaques no roteiro de Lélio.

A personagem que é muito bem resolvida com sua identidade de gênero, irá ver muito sobre si mesma ser posto à prova após o falecimento de Orlando, conflito esse no roteiro,  que abalam as estruturas da personagem. O forte preconceito da família de Orlando, mais especificamente vindo da sua ex-esposa e de seu filho, colocam a autoestima da personagem de escanteio enquanto ela se priva de ir ao enterro de seu companheiro.

Sebastián Lelio sabe como valorizar suas personagens, sem que isso se torne um discurso óbvio e piegas sobre autoestima. Em Uma Mulher Fantástica, o mecanismo já usado pelo diretor no filme Gloria (2013) – leia  mais aqui – de usar apenas as ações da personagem, ao invés de muitos diálogos, para exteriorizar tudo o que se sente, permanece. É possível notar, no entanto, a utilização de elementos que criam uma espécie de poesia que simbolizam as lutas da personagens, suas derrotas e alguns “mensagens” para a própria.



O espelho é algo bem presente. Seja quando Marina anda pela rua e dá de cara com dois homens levando o objeto para algum lugar, ou numa porta de vidro de algum prédio por onde ela passa. É  como se os espelhos quisessem mostrar para a protagonista que de fato ela é uma mulher fantástica. Até em uma ventania que poeticamente ganha proporções fora do comum, servem como metáfora para simbolizar a luta de Marina para não deixar que o preconceito anule sua autoestima. Essa luta na verdade é mais silenciosa e não envolve brigas judicias por propriedades nem nada do tipo. É algo mais interno, embora haja uma cenas de homofobia, e diz respeito a como a personagem se coloca no mundo. Até mesmo a questão de gênero é brilhantemente usada em um momento em que um pequeno espelho tampa a genitália da personagem, em uma forma brilhante de reforçar essa questão. Vemos o rosto de Marina no lugar de seu órgão sexual, o que retrata lindamente que o gênero está em como as pessoas se veem e não na genitália. 

 


No filme o preconceito aparece quase de forma escancarada, como nos olhares de alguns personagens que falam com Marina ou até em algumas palavras mais duras ditas pela ex-esposa de Orlando. Já o filho do homem, é mais agressivo, ainda que não parta para a violência física de fato. A humilhação que ele causa na personagem, termina com a mesma tendo seu rosto deformado por conta das voltas dadas com fita adesiva, como forma de intimidar a mulher por ter comparecido na igreja onde ocorria o funeral de Orlando. A personagem se vê no vidro do carro antes de tirar as fitas do rosto e mais uma vez temos a imagem da mulher, agora com o rosto disforme que simboliza uma agressão à sua moral e à sua própria imagem diante do mundo.  


A abordagem de uma delegada que insiste para que Marina faça exame de corpo de delito, frisa mais uma vez como esses personagens, que nunca fizeram parte da vida de Marina e de Orlando, não conseguem enxergar a relação deles como algo natural. Quando não é a repulsa da família, é a delegada que trata a relação desses dois personagens como um possível crime sexual. Curioso como o roteiro não nos fornece momentos em flashback que tragam mais informações sobre a vida de Marina e Orlando antes da morte do último, mas o pouco que nos é dito, é o suficiente para compreendermos como eles viviam. Nos contentamos com o constante “fantasma” do homem que surge regularmente para Marina, como a única forma de representar as lembranças do casal e o amor que eles tinham, e que nunca será compreendido pelo mundo que os rodeia. Além disso, a imagem recorrente do homem, parece também servir como estímulo para que Marina ganhe aos poucos coragem para se impor. Até mesmo a irmã da protagonista e seu cunhado, que não são necessariamente preconceituosos, também são colocados na história como pessoas que pouco compreendem a situação, encorajando a personagem a não comparecer ao ao enterro de Orlando.

Se por um lado Marina teve que devolver o carro e sair do apartamento de onde morava com Orlando, por outro há o lado do direito de se despedir e até o de vivenciar o luto e suas lembranças com seu marido. A personagem não poderá mudar o mundo a sua volta e é isso um dos grandes trunfos do roteiro. Marina consegue se impor como mulher e reivindicar o direito de dar o último adeus ao seu marido. Mesmo nesse momento, percebemos uma marginalização por conta do lugar onde é dado esse último adeus. Esse momento frisa bem a marginalização da comunidade LGBT, que sempre com muito custo e luta, consegue o que lhe é de direito, mesmo com um julgamento  social constante. Esse tom marginal também ocorre no início do filme, quando Marina simplesmente sai correndo quando ouve a notícia de que Orlando faleceu. Esse ato impulsivo e desesperador, trazem também uma ideia de marginalização, como se houvesse uma culpa internalizada pela morte de Orlando, que fizesse a protagonista sair correndo.

Uma Mulher Fantástica é um filme sobre direitos. Não os da lei, que também são importantes, mas mais do que isso. É o direito de ser o que é, de aprender a se impor, de compreender que às vezes o preconceito fará com que as pessoas reavaliem sua própria posição no mundo. E por último, o direito de poder gritar dizendo: “Eu estou aqui! Eu existo! Eu sou fantásticx!”. Sendo assim, nada mais justo do que uma estatueta dourada para celebrar um filme que fala justamente de encontrar nosso próprio valor como pessoa.

texto de : Tarcísio Paulo Dos Santos



domingo, 1 de abril de 2018

Dica de série : Altered Carbon


A série Altered Carbon lançada recentemente pela Netflix é uma boa pedida para os fãs de ficção cientifica, e trás de volta o foco para um futuro de grandes inovações tecnológicas, os tão sonhados carros voadores e mega cidades construídas em diversos planetas colonizados. Mas esse é só o plano de funo da série que discute temas polêmicos a respeito de ética e vida.

Takeshi Kovacs é o personagem principal da série, ele é um emissário que passou 250 anos no gelo até ser reencapado, pois é, isso mesmo que você leu, ser reencapado , é o que acontece no universo de Altered Carbon. As memorias das pessoas e suas consciências de alguma forma é armazenada em cartuchos, o que permite que elas possam viver por muito mais tempo, desde que tenham disponíveis corpos, no quais eles possam ser encapadas diversas vezes, transferindo assim a consciência antiga para um corpo novinho em folha.
O Kovacs no caso, teve sua consciência apenas guardada, até que alguém resolvesse lhe dar um novo corpo, e ele pudesse voltar a vida. Toda a série gira em torno do retorno do personagem, e ao longo dos episódios vamos descobrindo mais sobre ele e sobre o universo de Altered Carbon, através das lembranças de Kovacs em forma de flash backs.


Um dos debates éticos propostos pela série é a possibilidade de devolver de certa forma a vida aos mortos, sendo isso possível com o armazenamento de consciência, desse modo em casos de assassinatos, por exemplo, a vitima também poderia ser a principal testemunha. Outro embate proposto aqui, é a questão do que pode ser feito com criminosos que podem ser privados de seus corpos, como uma forma de pena, infratores da lei podem ter suas mentes armazenadas por um bom tempo, até que possam ser encapados novamente, ou reencapados se puderem contribuir de alguma forma com a sociedade.
Takeshi Kovacs é um caso de criminoso que é reencapado, e esta de volta a vida, apenas para ajudar a solucionar um crime, já que tinha grande experiências de combate em suas vidas passadas. Ele é recrutado por um multimilionário Laurens Bancroft, que lhe garante uma nova capa, ou seja um novo corpo, melhorado, aperfeiçoado, o melhor que o dinheiro poderia comprar, para que ele pudesse descobrir quem havia o assassinado.
Bancroft sofreu algum tipo de ataque, mas como possuía inúmeros backups pode ser revivido, porém sem saber ao certo como morreu, ou quem o queria morto.
Laurens Bancroft é um Matusa, como chamam na série quem possui muito dinheiro e poder suficiente para poderem pagar por muitos corpos e muito armazenamento de consciência, o que tem um alto valor, desse modo, os Matusas vivem centenas de anos, acumulando ainda mais riquezas e poder, e com isso mais formas de dominação.
O que é um outro viés de debate na série, a influência do poder econômico sobre a sociedade, e sobre a vida humana, nos levando ao questionamento de até que ponto indivíduos que se encontram em maior privilégio econômico conseguem interferir ou podem interferir, na forma de viver de todos, e acabam decididinho o destino dos que não são tão afortunados.
Ao longo da série vamos percebendo que a sociedade daquele momento é totalmente corrupta e a merce do poder dos Matusas, e que havia algum tipo de resistência a essa forma de poder, porém quem se opusesse ao poder acabava sendo punido.
A série é carregada por um tom de mistério e clima de investigação criminal, recheada de muitas cenas de ação com direito a cenas de luta e tiroteio, todas muito bem realizadas. A direção de arte de Altered Carbon é muito bonita com e coerente com o tema futurístico, e percebe-se  que tem uma forte referência nos filmes de ficção cientifica dos anos 1980 como o filme Blade Runner(Ridley Scott) de 1982, nos quais o futuro é representado de forma distópica com dilemas éticos, baseados na interferência da ciência e das inovações tecnológicas na vida humana.

Blade Runner de Ridley Scott (1982)










Na trama ainda temos Kristin Ortega, uma detetive que investigava o caso de  Bancroft, e acha estranho o Matusa recorrer ao reencapamento de um criminoso assassino, para ajuda-lo nas suas investigações. A personagem é forte, e tem que trabalhar em um ambiente cercado de corrupção, ela acaba se aproximando de Kovacs e, juntos eles acabam unindo forças. Ortega é descendente de Mexicanos e tem uma família religiosa,  que é contra a interferência da ciência na vida humana e contra o reencapamento dos mortos, de certo modo a família de 
Kristin Ortega ajuda a posicionar o espectador dos dilemas morais propostos pela série, e da profundidade narrativa proposta.

Outro personagem interessante da série é uma forma de inteligencia artificial que tem a aparência fisica do escritor Edgar Allan Poe autor do poema "O Corvo", e gerência um hotel, ele é chamado de Poe, esse personagem vai ganhado mais espaço durante os episódios, já que é gerente do hotel onde  Kovacs  está hospedado durante o seu período de investigação. Poe acaba se tornando uma espécie de aliado na missão de Kovacs , que além de ter de desvendar o crime pelo qual está sendo pago por uma Matusa, ainda está tentando se habituar ao novo corpo, e a nova vida anos depois de sua prisão, e possui muitas coisas em seu passado que precisam ser resolvidas. 



Além de possuir um personagem com nome e aparência de um ilustre escritor da literatura mundial, A série Altered Carbon é baseada em um livro que possui o mesmo titulo, de Richard K. Morgan. 
Os efeitos especiais da série são muito bons levando em consideração que é uma produção feita para internet e TV. O elenco é  coeso e defendem bem a historia . Se você gosta de ficção cientifica e filmes de ação essa é uma boa pedida e vale a pena conferir.  


Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...