sábado, 2 de dezembro de 2017

Jeanne Dielman


Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo

Contemplação e mudança de consciência numa narrativa sobre o cotidiano


Hitchcock disse que o cinema é como a vida, só que sem as partes chatas. Ele não estava errado quanto a isso, porém alguns filmes são magistrais justamente em sua simplicidade por mostrar aquilo que facilmente seria julgado como “sem importância”.

Assim é “Jeanne Dielman” (Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1976), escrito e dirigido por Chantal Akerman, cineasta belga nascida em Bruxelas em 06 de junho de 1950 e falecida em 05 de outubro de 2015. Com um cinema político e feminista (ainda que a diretora recusasse qualquer tipo de rótulo), Akerman realizava um cinema extremamente realista, muitas vezes privando o espectador de uma linguagem clássica que reforçasse as emoções e o psicológico de seus personagens através de enquadramentos como close-ups, câmera subjetiva, entre outros artifícios. Seus personagens têm total relação com o espaço em que vivem, caracterizando muito do que eles são através de um cotidiano mundano.


Através de um cinema bem contemplativo, o espectador é convidado a observar a rotina de Jeanne (Delphine Seyrig). Pela manhã, a mulher acorda, veste seu hobby, prepara o café da manhã, acorda seu filho adolescente, Sylvain (Jean Decorte), engraxa seus sapatos, dobra o seu pijama quando o garoto vai ao colégio, arruma o sofá cama onde o garoto dorme, lava a louça, sai para fazer algumas compras para a casa, prepara o jantar, faz um lanche à tarde, cuida do bebê da vizinha por um tempo, faz programa em sua própria casa onde recebe seus clientes, espera o seu filho chegar, janta junto com ele, ajuda-o a estudar e fazer as lições de casa, ouve música enquanto termina de fazer um suéter enquanto o garoto ler seu livro, sai com ele para um lugar que nunca é mostrado para o espectador, voltam para casa e vão dormir.

Escrevendo essas ações que aparentemente podem parecer sem importância, podemos perceber como o cinema de Chantal é bem diferente do que estamos acostumados a ver., porém, para quem estiver aberto a entrar na proposta da cineasta e entender que há outras formas de se contar uma história, logo ficará tomado pelo dia a dia da protagonista e sentirá interesse em observar sua vida dentro dessa rotina. Mais do que isso, interpretará o que o filme pretende dizer através dessa forma peculiar de se apresentar um personagem em uma narrativa que à primeira vista, pode parecer desprovida de um conflito mais óbvio como no cinema clássico.

Essa rotina, no entanto, nos fala muito sobre seus personagens. Jeanne está presa em um cotidiano mecânico que nunca a permitiu parar para pensar. Seu filho, apesar da boa relação com ela, não tem muito diálogo, com exceção da hora de ir dormir quando o garoto faz alguns comentários sobre sexualidade e sabemos um pouco mais sobre seu pai, já falecido. O menino janta com Jeanne enquanto lê e eles praticamente não se olham enquanto fazem as refeições, trocando quase nenhuma palavra. Quando a protagonista lê em voz alta uma carta que chegou de sua irmã, descobrimos como a viuvez de Jeanne preocupa sua família, que diz que “uma mulher bonita como ela não pode ficar sozinha”. Antes de dormir, Sylvain pergunta como sua mãe conheceu seu pai. Nesse momento descobrimos que Jeanne foi liberta por seu marido durante a Segunda Guerra Mundial, provavelmente de um campo de concentração e que o homem, que era militar na época, foi visto pela primeira vez por ela, enquanto jogava doces para as pessoas, incluído ela, que retribuía jogando rosas. Suas tias então, sempre incentivavam o casamento dos dois, principalmente pela boa posição financeira do homem e que ela deveria aproveitar essa oportunidade.

Jeanne foi condicionada a viver uma vida que mesmo não tão explicitamente, foi ditado o que ela deveria ou não fazer. Seu cotidiano é um reflexo daquilo que a sociedade espera de uma mulher; que ela seja prestativa, atenciosa e realize seus afazeres domésticos com perfeição. Essa perfeição está na satisfação com que a personagem sorri enquanto passa alguns bifes no ovo e na farinha para o jantar, quando arruma a cama ou quando cuida do bebê da vizinha.


Tudo isso é retratado com planos longos e pouca variação no ângulo das câmeras. A câmera não nos permite uma aproximação do que de fato está sentindo a personagem, como se qualquer possibilidade de reflexão tivesse cristalizado em Jeanne, restando apenas observarmos suas ações sem direito a close-ups, plano detalhes, nem nada que transpareça seu psicológico. Ao receber seus clientes, não vemos o programa de fato sendo realizado, mas quando a personagem recebe os homens em sua casa, a câmera não enquadra sua cabeça, deixando apenas o corpo no enquadramento. Naquele momento Jeanne é só um corpo.

Mas como em uma narrativa é preciso ter um conflito, o roteiro consegue isso de uma forma bem significativa, mas sem deixar de lado a sutileza. Como disse a própria Chantal em uma entrevista, “Jeanne arruma tempo para pensar”. Seu último momento de contemplação de sua própria mecanização se dá em uma cafeteria onde a personagem é atendida pela mesma garçonete e onde escolhe sempre o mesmo lugar para se sentar e tomar seu café. Após terminar um programa, Jeanne percebe que deixou as batatas cozinharem demais, arruinando assim o jantar. A partir daqui temos a imagem da dona de casa exemplar “arranhada”. A personagem precisa comprar mais batatas no mercado e toda sua rotina atrasa. Enquanto descasca as batatas às pressas, seu semblante muda. Algo está errado com Jeanne. Seus pequenos deslizes ficam mais frequentes. 


No dia seguinte, ela esquece de abotoar um dos botões de seu hobby, não arruma os cabelos como “deveria”, deixa cair objetos no chão, esquece de fechar a janela e não consegue fazer com que o bebê da vizinha pare de chorar. O leite ao ser bebido, parece estar estragado, ou será que ele já não tem mais o mesmo gosto, assim como sua vida? O casaco que falta um botão, já não pode ser mais encontrado nas lojas pela personagem, porque o modelo já saiu de circulação e na cafeteria, ela é atendida por outra garçonete e acaba sentando em outro lugar, porque uma senhora já ocupa seu ligar favorito. Jeanne não aguenta sua própria consciência dos fatos e sua reação não é das melhores. Mesmo assim, ela consegue sentir um alívio em um final agridoce em que ainda consegue esboçar em um sorriso na última cena.

É a partir dessas metáforas de uma dona de casa que Chantal Akerman, nesse que é considerado o melhor filme da carreira da cineasta, fala sobre o papel da mulher para grande parte da sociedade e como é fácil cair numa mecanização de ações que podem ser muito duras de serem confrontadas, gerando um choque com consequências que podem marcar uma vida para sempre. Claro que muita coisa já mudou, mas ainda existem muitas “Jeannes” pelo mundo à espera “das batatas cozinharem demais”.





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