Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo
Contemplação
e mudança de consciência numa narrativa sobre o cotidiano
Hitchcock disse que o
cinema é como a vida, só que sem as partes chatas. Ele não estava errado quanto
a isso, porém alguns filmes são magistrais justamente em sua simplicidade por
mostrar aquilo que facilmente seria julgado como “sem importância”.
Assim
é “Jeanne Dielman” (Jeanne Dielman, 23,
Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1976), escrito e dirigido por Chantal
Akerman, cineasta belga nascida em Bruxelas em 06 de junho de 1950 e falecida
em 05 de outubro de 2015. Com um cinema político e feminista (ainda que a
diretora recusasse qualquer tipo de rótulo), Akerman realizava um cinema
extremamente realista, muitas vezes privando o espectador de uma linguagem
clássica que reforçasse as emoções e o psicológico de seus personagens através
de enquadramentos como close-ups,
câmera subjetiva, entre outros artifícios. Seus personagens têm total relação
com o espaço em que vivem, caracterizando muito do que eles são através de um
cotidiano mundano.
Através de um cinema bem
contemplativo, o espectador é convidado a observar a rotina de Jeanne (Delphine
Seyrig). Pela manhã, a mulher acorda, veste seu hobby, prepara o café da manhã,
acorda seu filho adolescente, Sylvain (Jean Decorte), engraxa seus
sapatos, dobra o seu pijama quando o garoto vai ao colégio, arruma o sofá cama onde
o garoto dorme, lava a louça, sai para fazer algumas compras para a casa,
prepara o jantar, faz um lanche à tarde, cuida do bebê da vizinha por um tempo,
faz programa em sua própria casa onde recebe seus clientes, espera o seu filho
chegar, janta junto com ele, ajuda-o a estudar e fazer as lições de casa, ouve
música enquanto termina de fazer um suéter enquanto o garoto ler seu livro, sai
com ele para um lugar que nunca é mostrado para o espectador, voltam para casa
e vão dormir.
Escrevendo essas ações
que aparentemente podem parecer sem importância, podemos perceber como o cinema
de Chantal é bem diferente do que estamos acostumados a ver., porém, para quem
estiver aberto a entrar na proposta da cineasta e entender que há outras formas
de se contar uma história, logo ficará tomado pelo dia a dia da protagonista e sentirá
interesse em observar sua vida dentro dessa rotina. Mais do que isso,
interpretará o que o filme pretende dizer através dessa forma peculiar de se
apresentar um personagem em uma narrativa que à primeira vista, pode parecer
desprovida de um conflito mais óbvio como no cinema clássico.
Essa rotina, no entanto,
nos fala muito sobre seus personagens. Jeanne está presa em um cotidiano
mecânico que nunca a permitiu parar para pensar. Seu filho, apesar da boa
relação com ela, não tem muito diálogo, com exceção da hora de ir dormir quando
o garoto faz alguns comentários sobre sexualidade e sabemos um pouco mais sobre
seu pai, já falecido. O menino janta com Jeanne enquanto lê e eles praticamente
não se olham enquanto fazem as refeições, trocando quase nenhuma palavra.
Quando a protagonista lê em voz alta uma carta que chegou de sua irmã,
descobrimos como a viuvez de Jeanne preocupa sua família, que diz que “uma
mulher bonita como ela não pode ficar sozinha”. Antes de dormir, Sylvain
pergunta como sua mãe conheceu seu pai. Nesse momento descobrimos que Jeanne
foi liberta por seu marido durante a Segunda Guerra Mundial, provavelmente de
um campo de concentração e que o homem, que era militar na época, foi visto
pela primeira vez por ela, enquanto jogava doces para as pessoas, incluído ela,
que retribuía jogando rosas. Suas tias então, sempre incentivavam o casamento
dos dois, principalmente pela boa posição financeira do homem e que ela deveria
aproveitar essa oportunidade.
Jeanne foi condicionada a
viver uma vida que mesmo não tão explicitamente, foi ditado o que ela deveria
ou não fazer. Seu cotidiano é um reflexo daquilo que a sociedade espera de uma
mulher; que ela seja prestativa, atenciosa e realize seus afazeres domésticos
com perfeição. Essa perfeição está na satisfação com que a personagem sorri
enquanto passa alguns bifes no ovo e na farinha para o jantar, quando arruma a
cama ou quando cuida do bebê da vizinha.
Tudo isso é retratado com
planos longos e pouca variação no ângulo das câmeras. A câmera não nos permite
uma aproximação do que de fato está sentindo a personagem, como se qualquer
possibilidade de reflexão tivesse cristalizado em Jeanne, restando apenas
observarmos suas ações sem direito a close-ups,
plano detalhes, nem nada que transpareça seu psicológico. Ao receber seus
clientes, não vemos o programa de fato sendo realizado, mas quando a personagem
recebe os homens em sua casa, a câmera não enquadra sua cabeça, deixando apenas
o corpo no enquadramento. Naquele momento Jeanne é só um corpo.
Mas como em uma narrativa
é preciso ter um conflito, o roteiro consegue isso de uma forma bem
significativa, mas sem deixar de lado a sutileza. Como disse a própria Chantal
em uma entrevista, “Jeanne arruma tempo para pensar”. Seu último momento de
contemplação de sua própria mecanização se dá em uma cafeteria onde a
personagem é atendida pela mesma garçonete e onde escolhe sempre o mesmo lugar para
se sentar e tomar seu café. Após terminar um programa, Jeanne percebe que
deixou as batatas cozinharem demais, arruinando assim o jantar. A partir daqui
temos a imagem da dona de casa exemplar “arranhada”. A personagem precisa
comprar mais batatas no mercado e toda sua rotina atrasa. Enquanto descasca as
batatas às pressas, seu semblante muda. Algo está errado com Jeanne. Seus
pequenos deslizes ficam mais frequentes.
No dia seguinte, ela
esquece de abotoar um dos botões de seu hobby, não arruma os cabelos como
“deveria”, deixa cair objetos no chão, esquece de fechar a janela e não
consegue fazer com que o bebê da vizinha pare de chorar. O leite ao ser bebido,
parece estar estragado, ou será que ele já não tem mais o mesmo gosto, assim
como sua vida? O casaco que falta um botão, já não pode ser mais encontrado nas
lojas pela personagem, porque o modelo já saiu de circulação e na cafeteria,
ela é atendida por outra garçonete e acaba sentando em outro lugar, porque uma
senhora já ocupa seu ligar favorito. Jeanne não aguenta sua própria consciência
dos fatos e sua reação não é das melhores. Mesmo assim, ela consegue sentir um
alívio em um final agridoce em que ainda consegue esboçar em um sorriso na
última cena.
É a partir dessas
metáforas de uma dona de casa que Chantal Akerman, nesse que é considerado o melhor
filme da carreira da cineasta, fala sobre o papel da mulher para grande parte
da sociedade e como é fácil cair numa mecanização de ações que podem ser muito
duras de serem confrontadas, gerando um choque com consequências que podem
marcar uma vida para sempre. Claro que muita coisa já mudou, mas ainda existem
muitas “Jeannes” pelo mundo à espera “das batatas cozinharem demais”.
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