sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Zé do Caixão

 


E não podemos falar em cinema
trash sem falar de Zé do Caixão. Nascido na Vila Mariana em 13 de março de 1931, José Mojica Marins começa a ter contato com o cinema já na infância, de acordo com a Enciclopédia do Cinema Brasileiro de Fernão Pessoa Ramos. Fascinado também pelo sobrenatural, Marins via até mesmo em seu maior ídolo, Charlie Chaplin, o terror. “[...[ eu via o terror por trás por trás daquelas mímicas, os olhos desse homem eram de uma tristeza infinita”.

Aos doze anos de idade ganha sua primeira câmera, uma de 8mm. Aos vinte e dois anos, cria sua primeira empresa: Companhia Cinematográfica Atlas e passa a realizar pequenos curtas metragens. Depois de realizar alguns filmes que despertam interesse, mas não conseguem alcançar um público considerável, vem a reviravolta. Durante o início da produção de mais um filme, Marins adoece e a produção do filme precisa ser interrompida. Um pesadelo com um homem vestido de preto e que puxa Mojica até um cemitério onde se encontra um túmulo com seu nome e data de nascimento, desperta o jovem cineasta para a criação de seu personagem icônico: Zé do Caixão.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), primeiro grande filme de Zé do Caixão, contou com o apoio da família de Zé que precisou vender o carro. O grande sucesso do filme dividiu a crítica que considerou o cineasta genial ou ridículo. Mesmo com o sucesso financeiro, Mojica havia vendido os direitos do filme antes da estréia. Tendo que começar do zero financeiramente, Mojica já contava com o reconhecimento do público e dos cineastas Rogério Sganzerla, Carlos Reicherbach, Jairo Ferreira e Maurice Capovilla, que fizeram parte do Cinema Marginal paulista.

Antes de continuar a trajetória de Zé do Caixão, é importante falar um pouco sobre o cinema marginal e sua importância, já que cinema trash tem muito a ver com a vontade de fazer cinema mesmo que com poucos recursos.

Como explica no livro Enciclopédia do Cinema Brasileiro, o cinema marginal nunca possuiu uma coesão interna, diferente do Cinema Novo. Surgindo no final dos anos 60, o cinema marginal não sobreviveu ao início dos anos 70. Dois elementos estruturais ocupam espaço central dentro do cinema marginal: a ideologia da contracultura e a abertura para um diálogo lúdico e intertextual com o classicismo narrativo e o filme de gênero hollywoodiano. Há abertura também para as chanchadas, gênero que não conseguiu dialogar com o cinema novo. Dentro do recorte intertextual afirmativo com o universo da sociedade de consumo e da comunicação de massa, O Bandido da Luz Vermelha se torna o filme-farol do Cinema Marginal. Alguns núcleos de diretores com uma produção mais coesa e um relacionamento mais próximo, formam um grupo chamado de “marginal cafajeste”. Nesse grupo prezava a produção de filmes de forma ágil e barata, através do filão erótico. Na proximidade com o filme de consumo, há um pequeno retorno reflexivo, autoconsciente e irônico sobre os procedimentos narrativos e estilísticos utilizados no filme. Esse estilo abriu as portas para o cinema erótico da Boca do Lixo. 

Ainda de acordo com a Enciclopédia do cinema brasileiro, dentro desse núcleo chamado de “marginal cafajeste”, encontra-se espaço para a apreciação estética no que na década de 90 passou a ser chamado de trash. Aí é quando entra a valorização do cinema do Mojica, o diálogo com o cinema pornográfico e o filme de terror B que caracterizam esse procedimento estético.  

Zé do Caixão retorna em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) que alcança sucesso imediato em todo país. O sucesso coloca Mojica agora na televisão, onde é convidado para comandar um programa na recém inaugurada TV Bandeirantes. No programa Além, Muito Além do Além de 1967, eram apresentados episódios de histórias de terror às sextas-feiras. Os atores eram muitas vezes os próprios alunos de Mojica, que estudavam em sua escola de interpretação. O programa chegou a dar bons índices de audiência para a nova emissora, embora muitos criticassem o tom das histórias.

Na Tupi, Mojica estreou O Estranho Mundo de Zé do Caixão, com um orçamento mais generoso e a participação de atores consagrados (como Lima Duarte e Irene Ravache) e direção de Antônio Abujamra. No entanto, o sucesso popular já não foi mais o mesmo.

Voltando para o cinema, Mojica encontra dificuldades com a censura que proíbe seus filmes e os libera com a condição de que sejam feitos cortes de até vinte minutos. O Despertar da Besta (1970), filme mais violento do cineasta, é interditado por dezesseis anos. Com tantas proibições, Mojica se vê sem os produtores e começa a trabalhar como ator e a dirigir filmes que não faziam seu estilo, mas que garantia seu sustento.


Com o sucesso de
O Exorcista (1973) a produtora CINEDRISTRI propõe a Mojica uma versão brasileira do filme de terror sucesso na época. Com grande elenco, O Exorcismo Negro é lançado no final de 1974. O sucesso garantiu ao cineasta o sustento durante dois anos. Mais filmes vieram e apesar do reconhecimento de intelectuais e o sucesso de alguns filmes realizados pelo cineasta, o único reconhecimento oficial de sua obra, veio com o filme Delírios de um Anormal (1978) que lhe rendeu a Placa de Prata no XI Festival de Brasília. Falido no início da década de 1980, Mojica realiza curtas, aproveitando a lei da obrigatoriedade dos curtas-metragens.

Começa a rodar filmes de sexo explícito e não consegue retomar seus projetos de filmes que lhe interessavam de verdade. Mojica vira atração no famoso parque Playcenter e apresenta o Cine Trash na Band, como já citado semana passada. Mais uma reviravolta na carreira do cineasta acontece em 1993. O também cineasta André Barcinski, lança treze dos filmes do Zé do Caixão nos EUA, que o coloca em contato com uma distribuidora especializada em produções B. Com 7 mil fitas vendidas em quatro anos, Zé do Caixão ganha reconhecimento no exterior e se torna premiadíssimo. Recebe em 2005 do então presidente Luís Inácio Lula da Silva o prêmio de Honra ao Mérito, por serviços prestados à cultura.


O retorno em grande estilo em 2008 com
Encarnação do Demônio, conta com uma produção caprichada e o retorno de Zé do Caixão. O filme arrebata quase todos os prêmios no I Festival de Paulínia e no Midnight X-Treme, no Festival de Cinema Internacional da Catalunha, na Espanha.

O Estranho Mundo de Zé do Caixão estreia em 2007 e foi até 2013 pelo Canal Brasil. O programa que leva o mesmo nome do filme do cineasta feito em 1968 e do antigo programa da TV Tupi, contava com entrevistas e era dividido em quatro partes: A primeira com uma reportagem, a segunda com duvidas de internautas sobre assuntos paranormais e a terceira com uma entrevista com uma celebridade convidada. Na ultima parte Zé do Caixão lançava sua famosa praga.

Em 2015 o Museu da Imagem e do Som – MIS realizou uma exposição inédita com figurinos, roteiros, objetos cênicos, colagens, trechos de filmes e imagens de bastidores dos filmes do Zé do Caixão.


No mesmo ano, O ator Matheus Nachtergaele interpreta José Mojica Marins na série
Zé do Caixão, no canal Space. A produção é inspirada na biografia Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins escrito por André Barcinski e Ivan Finotti.

Em fevereiro desse ano, José Mojica Marins faleceu em São Paulo aos 83 anos, vítima de uma broncopneumonia. Fazendo parte da história do cinema brasileiro, mais especificamente do terror, que nunca teve seu devido reconhecimento no país, Zé do Caixão fez o que gostava e seu amor pelo cinema vai além do rótulo de filme trash.


À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)

Josefel Zanatas (Zé do Caixão) vive em uma cidade do interior e é temido pelos habitantes mais conservadores. Descrente de tudo, ele é o dono de uma funerária na cidade e quando é contrariado, logo se enfurece e pratica atos violentos contra qualquer um que o enfrente.

Sua esposa, Lenita (Valéria Vasquez), não pode engravidar o que frustra completamente Zé do caixão. Para resolver o problema, ele busca em Terezinha (Magda Mei), mulher de seu amigo Antonio (Nivaldo Lima), a possibilidade de que a mesma carregue seu filho e a continuidade de seu sangue. Custe o que custar.

Se fosse rodado hoje, Zé do Caixão seria o típico “macho escroto” que tem se discutido tanto hoje em dia, dentro dessa atual conscientização de relacionamentos abusivos. Zé do Caixão é um personagem a ser estudado. O mesmo homem sádico que agride mulheres, as estupra, sai dizendo frases machistas e intimida as pessoas, é o mesmo que admira a coragem de um homem que teve a mão dilacerada pelo próprio Zé do Caixão, mas que arca com todos os gastos médicos. Esse mesmo homem sádico também repreende um pai que agredia o filho.

Blasfêmico, o personagem zomba da procissão da Sexta-feira Santa enquanto é visto pela janela saboreando carne vermelha. Independente da polêmica e de sua falta de respeito, ainda dentro de sua contradição, algumas de suas falas acabam nos fazendo refletir sobre o que acreditamos e por que acreditamos naquilo que muitas vezes não podemos ver. O personagem faz questão de deixar claro que nada do além o faz sentir medo, já para ele nada disso existe de fato.

A condição de agente funerário e sua total descrença dão ao personagem um status de todo poderoso como se ele tivesse poderes sobrenaturais. Confesso até que antes de ver o filme eu sempre pensei que o Zé do Caixão fosse dotado de forças do além, mas é justamente o oposto. Mojica criou um personagem com uma figura tão poderosa que os habitantes da cidade que o temem, o veem como um ser sobrenatural. Tudo por conta da sua figura intimidadora.

No longa é forte a retratação do tradicionalismo brasileiro, principalmente das pequenas cidade do interior. Assim como a forte superstição passada de geração para geração. O sobrenatural vem como forma de punir o personagem por todo o mal que ele fez. Isso também parece carregar uma contradição, já que o personagem que apresenta uma ideia questionadora (no sentido religioso e nas crenças populares) é punido justamente por forças aparentemente sobrenaturais.

Para a época em que foi realizado, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, nem seria considerado um filme trash, já que é notável como Mojica era atento aos detalhes. Usando efeitos até bons para época, é possível perceber como o cineasta amava mesmo cinema e sua dedicação a essa forma de arte, ultrapassou qualquer conhecimento que poderia ter sido adquirido em um curso.

 

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Cinema Trash




No livro Enciclopédia dos Monstros, escrito por Gonçalo Júnior em 2008, o autor traz no capítulo sobre monstros do cinema, o subcapítulo Monstros do Lixo. Para Júnior definir o termo trash não é tão fácil.  No entanto algumas características podem ser apontadas nos filmes desse subgênero do terror.

Com criaturas quase sempre inusitadas, um filme trash geralmente conta com uma produção de baixo orçamento, roteiros pouco desenvolvidos, atuações bem amadoras, cenários mal construídos, monstros exagerados e maquiagem mal feita. Os críticos adotam o termo trash justamente pelo conjunto de tudo isso não trazer valor artístico.

Por outro lado, essa ideia de uma falta de qualidade artística não quer dizer que o filme não tenha seu valor. Muitos filmes conseguiram seus fãs ao longo do tempo e se tornaram cultuados mundo a fora. Esses filmes divertem independente de seus problemas técnicos e são abraçados por pessoas que estão cientes de que esses filmes não devem ser levados a sério, mas que nem por isso deixam de divertir e conquistar seu público.

Titio Coffin Souza, citado no livro por Júnior, aponta que as famosas ficções científicas americanas da década de 1950 na época eram levadas a sério tanto pelos realizadores, quanto pelo público. Isso nos faz pensar que esses filmes envelheceram mal com o passar dos anos e ganharam outro status, o de filmes trash.

Já na década de 1970, cita Souza, filmes com cores exageradas, pitadas de sexo e violência começaram a estabelecer o conceito de trash (também conhecido como gore ou splatter). Esses filmes eram feitos dessa forma propositalmente para atrair seu público com situações bizarras que causavam risos.

Diretores como Roger Corman, John Waters (que depois de um tempo parou de seguir a linha do horror), Jesus Franco, Abel Ferrara, Dario Argento e Sam Raimi, são alguns dos grandes nomes desse subgênero.

Vale apontar também como nos EUA os termos “Filmes B”, “Filmes C” e “Filmes Z” são mais empregados do que o termo trash. Atores que estavam esquecidos ou que ainda começavam uma carreira (como  John Wayne e Jack Nicholson), passaram pelas produções de filmes B. Vincent Price que começou sua carreira em produções mais conceituais e respeitadas, hoje é mais lembrado pelos filmes B que se tornaram clássicos do terror. Já atores como Bela Lugosi, Eddie Constantine, Bruce Campbell e Pam Grier, trabalharam em filmes B durante quase toda suas carreiras.

O termo “Filmes C”  nos EUA se dá por conta dos filmes que passavam na TV a cabo (Cable TV), mas também por serem considerados de uma qualidade inferior aos filmes B. A televisão foi sem dúvidas importantíssima para a popularização desses filmes e a maneira como os mesmos são cultuados até hoje. Não é raro encontramos no Youtube vídeos de encontros entre diretores e atores desses filmes com uma legião de fãs.

Na categoria Filmes Z, Ed Wood é o mestre no assunto. Plano 9 do Espaço Sideral é um clássico do trash e consegue ser talvez o filme mais precário em todos os sentidos, mas que tem um público fiel.  Lançado em 1959, o longa é sobre um ataque feito por alienígenas que pretendem conquistar o planeta ressuscitando corpos de um cemitério. Plano 9 do Espaço Sideral é simplesmente considerado o pior filme já feito na história do cinema, segundo muitos historiadores e críticos dos EUA.


Voltando a falar sobre televisão, aqui no Brasil tivemos o
Cine Trash pela Rede Bandeirante, que contava com sessões de filmes de terror trash, e que já contou com a apresentação do ator e cineasta José Mojica Marins, o icônico "Zé do Caixão". O programa foi de 1990 a 1997.  Na lista de filmes que já foram exibidos no programa, há títulos como “Creepshow: Arrepio do Medo” (1982), A Mosca da Cabeça Branca (1958), Maniac (1980), Psycho Cop: Ninguém Está em Segurança (1989), entre outros.

 

O Mistério do Cesto (1982)

Um dos filmes que mais marcam o subgênero trash, é sem dúvidas O Mistério do Cesto (Basket Case, 1982). Também já exibido no Cine Trash, pela Bandeirantes, o longa foi dirigido e escrito por Frank Henenlotter e conta a história de Duane Bradley (Kevin Van Hentenryck), um jovem que chega a Nova Iorque carregando uma grande sexta que está trancada com um cadeado.

Após se hospedar em um hotel barato, percebemos que Duane se comunica com o que está dentro do cesto e até mesmo o alimenta. Na verdade trata-se de seu irmão gêmeo siamês que foi separado dele através de uma cirurgia forçada pelo pai dos irmãos. Duane então busca vingança dos médicos que o operaram enquanto tenta levar sua vida a diante.



O irmão de Duane que vive no cesto é extremamente deformado e tem somente os dois braços. Além disso, ele impede que Duane tenha uma vida normal por conta dos ciúmes excessivos que sente do irmão. Enquanto vão aos poucos se vingando das pessoas que o separaram, Duane conhece Sharon (Terri Susan Smith), recepcionista do médico responsável pela cirurgia dos irmãos.

Filmado em 16mm Henenlotter não teve controle da pós-produção o que deixou o filme meio escuro e convertido em outra proporção de tela. Filmado parte em Manhattan, é possível notar como grande parte dos personagens é visto como pessoas à margem da sociedade. Até mesmo o hotel onde o protagonista se hospeda é de gosto duvidoso. A Nova York vista no filme, é aquela com casas de show de sexo explícito, vendedores de drogas e prostitutas.    

Mas ninguém está mais à margem do que os dois personagens principais. Como no próprio filme trash, temos esses dois irmãos que não podem viver em uma sociedade “normal”.  Duane que tenta ter uma vida comum, mesmo separado fisicamente do irmão, sempre está preso a ele de alguma forma. Vivendo dentro da cesta é impossível não catalogá-lo como o monstro da história, por mais que também o filme equilibre a empatia pela criatura ao mesmo tempo em que sabemos que a ideia de vingança assassinando os médicos esteja errada. 



Como em um bom filme trash, os efeitos especiais da criatura do cesto contaram com um fantoche para dar vida ao irmão de Duane e efeitos em stop motion para dar movimentos no chão, já que não seria possível fazer isso com alguém manipulando o boneco.

Com sucesso de crítica, principalmente nos EUA, O Mistério do Cesto é reconhecido e reconhece-se como um filme trash, bizarro e absurdo. Mas que ao mesmo tempo diverte sem pretensão nenhuma.

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