quarta-feira, 6 de maio de 2020

Corrente do Mal - Uma alegoria sobre as angustias da adolescência




Nos últimos anos o cinema de horror/terror tem trazido alguns filmes que conseguiram dar um novo fôlego (ou talvez recuperar o fôlego de outros filmes lançados em outras décadas) a esse gênero que pode facilmente cair em clichês. São poucos os filmes que criam uma atmosfera envolvente e tensa, capazes de criar algo diferente mesmo usando elementos já conhecidos do público. O mesmo se pode falar dos temas e a forma de abordá-los. Corrente do Mal (It Follows, 2014), dirigido por David Robert Mitchell, foi sem dúvidas um desses filmes que se tornaram uma grata surpresa dentro do gênero do terror.

O cinema de terror (principalmente os filmes dos anos 1970 e 1980) é conhecido por lidar com a sexualidade de uma forma polêmica. O sexo quase sempre é tratado como algo passível de punição, principalmente com as mulheres, que são as primeiras a caírem nas garras dos serial killers do subgênero slasher. A final girl acaba sendo sempre aquela que não demonstra ter uma vida sexualmente muito ativa (quando não é virgem) e com muitos parceiros.

Corrente do Mal consegue ser um diferencial justamente por incluir questões sexuais de forma inteligente e reflexiva. A sinopse é simples. Jay (Maika Monroe) tem 19 anos e está saindo com Hugh (Jake Weary). Depois de uma transa entre os dois, Jay se vê atormentada e perseguida por uma estranha entidade que toma a forma de qualquer pessoa, conhecida ou não.


A jovem precisa então ter relações sexuais com outra pessoa para poder passar essa espécie de maldição para esse outro individuo, ou ficar fugindo da entidade sempre que ela surgir do nada, seguindo-a. A tarefa não é fácil e pode significar a morte se Jay for desatenta e permitir que a entidade a mate. A garota conta com a ajuda de sua irmã, Kelly (Lili Sepe) e de seus amigos Paul (Keir Gilchris) e Yara (Olivia Luccardi) para se livrar dessa situação.

Em um primeiro momento, quando se assiste ao filme, é fácil cairmos na ideia de que o sexo aqui é mais uma vez usado como algo que mereça uma “punição”, mesmo que no caso do filme, tanto homens quanto mulheres, sejam as vítimas. O caso é que Corrente do Mal fala justamente sobre inseguranças e angustias da adolescência, fase essa em que se começa a perder o “escudo” que temos quando ainda somos crianças. Quanto à entidade, ela representaria o risco que constantemente persegue esses adolescentes que iniciam uma vida sexual. Mesmo que esse risco faça parte da vida de qualquer pessoa, os adolescentes fazem parte de uma estatística que precisa de mais atenção.

Isso fica claro no filme em cenas logo no primeiro ato, quando Jay está na piscina de sua casa. A personagem observa um esquilo andando pelo fio de alta tensão do poste e quando se depara com uma formiga em seu braço, ela a coloca dentro da piscina, consequentemente matando-a. Essa simplicidade alegórica parece representar nada mais que a fragilidade dessa fase da vida quando não somos mais criança, mas também ainda não chegamos à fase adulta.

Não é a toa que alguns diálogos bem pontuais frisam momentos dos próprios personagens, ora falando da fase em que eram crianças (e como tudo parecia mais fácil), ora relembrando quando eram crianças e sonhavam em ser mais velhos, e se deparando com a vida em que essa “magia” de se tornar maior de idade não passa de algo romantizado.

Saindo um pouco da parte temática e indo para a parte estética, Corrente do Mal tem mais méritos. A música que facilmente nos faz lembrar um filme de John Carpenter, ao mesmo tempo em que encontra outras referências em filmes dos anos 70 e 80, consegue ter uma personalidade própria. O próprio diretor já citou em entrevistas sua influência na carreira proveniente de vários filmes clássicos do terror, como A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984) de Wes Craven e O Enigma do Outro Mundo (The Thing, 1982) de Carpenter. Os próprios objetos de cena também misturam elementos da atualidade com elementos também dos anos 80, criando um visual bem uniforme que não permite demarcações de épocas específicas.


Com tudo isso, ainda tem a fotografia que aposta em planos abertos e profundidade de campo. Essa escolha serve para causar tensão no espectador, que também se vê a espera de algo surgir no meio da multidão, podendo ser ou não uma das formas da entidade que por vezes se comporta como uma pessoa normal enquanto caminha em direção a protagonista, seja onde ela estiver. A câmera subjetiva também auxilia muito para nos colocar no lugar de Jay.


Com tantas qualidades em meio a um gênero que fica cada vez mais difícil de alcançar algo inovador, Corrente do Mal mostra que o cinema de horror ainda pode se reciclar e o mais importante: causar reflexão sem se limitar a dar sustos baratos. Aliás, é comum nesses filmes mais originais, a falta de grandes sustos, o que acaba incomodando muitos fãs um pouco mais exigentes. Mas um verdadeiro fã de terror, poderá se abrir para algo novo e perceber que alguns filmes têm mais efeito na forma como nos perturbam do que na forma como nos assusta. 
 

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