domingo, 26 de maio de 2019

Santiago: um documentário raro dentro do cinema brasileiro


Santiago (2007) aparece na lista dos 100 Melhores Filmes Brasileiros. A escolha é o resultado de uma inquirição realizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), que contou com a participação dos principais críticos de cinema do Brasil, como  Pablo Villaça, Celso Sabadin, Amir Labaki, Francisco Russo, João Batista de Brito, Rubens Ewald Filho e Jean-Claude Bernardet. A lista virou o livro Os 100 Melhores Filmes Brasileiros, que conta com ensaios sobre os filmes escolhidos.
Dirigido por João Moreira Salles, irmão de Walter Salles, o documentário fala sobre Santiago, o mordomo que trabalhou na casa dos pais de João e Walter quando os mesmos ainda eram crianças. Nascido na Argentina em 1912, Santiago Badariotti Merlo colecionava (literalmente) diversas história sobre as famílias para quem trabalhou e suas experiências em outros países.
Em 1992, João Moreira Salles filma as histórias de seu antigo mordomo para realizar o documentário sobre sua vida. Dois anos depois, Santiago acaba falecendo e Salles não sentiu na época que aquele seria o momento certo de trabalhar em seu filme. O material filmado só virou um filme pronto em 2007, quando em 2005 ele resolve pegar o material guardado durante treze anos, editá-lo e dar outro sentido a ele.
O resultado é um documentário reflexivo, já que há uma narração com as ideias do próprio João Moreira Salles, questionando o próprio material que ele tinha nas mãos e os rumos e ideias que contribuíram para uma evolução do próprio documentário. Como cita Bill Nichols no livro Introdução ao Documentário, lançado em 2001, o documentário reflexivo, nega a premissa da capacidade da câmera de representação fiel da realidade. Esse modo estimula a consciência do espectador a respeito do modo de se fazer documentários. Segundo Nichols, “o modo reflexivo é o modo de representação mais consciente de si mesmo e aquele que mais se questiona”.
Santiago já seria excelente apenas pela peculiaridade de seu único personagem e suas histórias cheias de saudosismo e pinceladas de melancolia. A eloquência do mordomo e a alegria ao contar suas histórias, às vezes nos transporta  para os lugares e situações que são narrados pelo homem. Trabalhando para tantas famílias durante muitos anos, Santiago tinha orgulho em ter servido tantas pessoas importantes.
Esse tempo que levou para que o longa finalmente ficasse pronto, não poderia ter sido mais benéfico para a obra. Nota-se o amadurecimento e aprendizado para o próprio cineasta, que ao se aproximar mais de seu material depois de tantos anos, acaba evidentemente se aproximando mais de Santiago e conseguindo dar ao filme uma profundidade muito maior do a que poderia ter tido, caso essa pausa não tivesse ocorrido.
O modo reflexivo e ensaístico de Santiago, e como o filme reflete seu próprio conteúdo, faz o próprio espectador refletir sobre o fazer do longa. Isso é sem dúvida um dos pontos altos do filme, já que temos praticamente uma espécie de “making of” do documentário, mas mais no sentido intelectual do que no sentido técnico.
Há esse reconhecimento constante do próprio diretor sobre assuntos que não iriam fazer parte da ideia original do filme, mas que agora fazem parte dele. Além do amadurecimento do diretor diante da obra, como já citado acima, talvez possamos notar um pedido de desculpas do próprio João Moreira Salles (pela forma rude que sua equipe o tratou na época, durante as filmagens) a Santiago e uma homenagem ao mordomo.
Santiago é a prova que documentários podem nos informar, mas também ir mais além, ao dar ao espectador uma experiência e emoções que possam nos tirem de uma zona de conforto e não enxergar o filme apenas com um simples registro da vida de seu personagem.

domingo, 5 de maio de 2019


The Hole in the Ground: uma metáfora para os conflitos familiares

Primeiro longa do cineasta irlandês Lee Cronin, The Hole in the Ground (2019), O Buraco no Chão, na tradução livre, teve sua estreia no Festival de Sundance em janeiro deste ano. A A24  e a DirecTV Cinema, adquiriram os direitos de distribuição do filme nos EUA, que lançou o longa nos cinemas de lá em março. Infelizmente não houve uma exibição aqui no Brasil, mas a crítica elogiou o trabalho de Cronin, que conta com alguns curtas no currículo, como o premiado Ghost Train (2013), que ganhou o prêmio Méliès d'Argent de melhor Curta-Metragem Fantástico Europeu.
Sarah O'Neill (Seána Kerslake) e seu filho Chris (James Quinn Markey), saem aparentemente às pressas para o interior da Irlanda, depois de Sarah recentemente sair de uma relação abusiva com seu ex-marido e pai de Chris. Mãe e filho tentam começar uma vida nova em uma casa alugada que fica perto de uma grande floresta, onde um enorme buraco pode ser encontrado bem no meio do local. Quando Chris descobre a floresta e consequentemente o buraco, o menino passa a ter seu comportamento mudado, se tornando uma criança sinistra e violenta.

Em entrevista para o site Awards Daily, Cronin falou sobre a inspiração na mitologia celta, especificamente a do Changeling, lenda folclórica que trata da troca de crianças. Geralmente uma fada levava uma criança do berço e em troca deixava um objeto ou até mesmo uma outra fada , já velha, enquanto o bebê verdadeiro iria viver com outras fadas. Em The Hole in the Ground no entanto, o diretor trabalhou apenas a questão da troca, deixando de lado as fadas e criando um enorme buraco no chão que é o culpado de tudo.
Não é a primeira vez que o terror usa de seus elementos para falar de dramas e aflições reais da vida cotidiana. The Babadook (2014), de Jennifer Kent, ficou bem conhecido no Brasil ao criar um realismo fantástico de um monstro que servia como uma metáfora para os problemas enfrentados por uma mãe durante a difícil fase de relacionamento com seu filho de seis anos.

The Hole in the Ground tem suas semelhanças com o filme de Kent. Somos colocados no universo do filme já de início, quando Chris está em um parque de diversões brincando em frente a um espelho que distorce sua imagem. Em uma cena em que o carro de Sarah está em na estrada a caminho da nova cidade, a imagem aérea do carro, deixa visível duas estradas, já transpondo essa ideia de duplo, assim como no espelho. Em seguida, a imagem é invertida colocando o carro em cima e o céu embaixo, frisando a ideia desse mundo dos personagens que sofrerá um grande transtorno, ao mesmo tempo em que coloca o próprio céu como um imenso “buraco”.

Não faltam alguns elementos até típicos do gênero, como a senhorinha sinistra que diz coisas sem sentido, até que mais adiante tudo começa a fazer sentido para o protagonista, além de claro, a criança estranha. Sarah se esforça para ao mesmo tempo em que tenta recomeçar, tenta lidar com a criação do filho, que em um primeiro momento se mostra uma criança mais reservada e que não consegue fazer amigos. O garoto fica magoado quando percebe que sua mãe mentiu para ele ao falar sobre o pai, dizendo que o mesmo estava logo atrás deles no caminho para a nova casa. O filme por um lado deixa as coisas mais abstratas, mas não a ponto de ficarmos sem saber o que está acontecendo. Para um bom entendedor, meia palavra, basta.
Permitindo uma leitura superficial, temos mãe e filho tentando lidar com acontecimentos fantásticos que acabam abalando a convivência deles. Mas se tentarmos aprofundarmos mais essas questões, podemos perceber que o filme usa esse tom sobrenatural para falar sobre a dificuldade da separação e de como criar um filho enquanto isso acontece. Sarah parece ter simplesmente fugido sem de fato lidar com seus problemas e resolvê-los para depois sim, ir embora. O longa coloca essa mudança precoce como um ato que ainda não foi amadurecido, principalmente como o roteiro espelha a mudança brusca e sinistra de Chris. A própria reação do menino, que vai ficando mais violento com o passar do tempo, sugere uma preocupação de como o garoto está absorvendo a situação toda e até mesmo o medo da mãe de que seu filho se torne alguém violento no futuro.
Sem buscar explicar tudo o que acontece, The Hole in the Ground ainda sim é um filme interessante que explora bem as dificuldades na relação entre mãe e filho, durante um período delicado na vida de ambos.  

Erotismo e a cidade: Vidas nuas (1967) de Ody Fraga

  O aspecto mais interessante em Vidas nuas é a fluidez como a cidade de São Paulo é filmada, desde seu primeiro plano quando temos acesso ...