domingo, 18 de novembro de 2018

Criaturas Marginalizadas: A figura do monstro nos filmes "Frankenstein" e "O Espírito da Colmeia"



Gonçalo Junior cita no livro Enciclopédia dos Monstros, como a ciência e a medicina influenciou indiretamente a ideia do monstro nas artes. Escritores e roteiristas buscavam em diversas teorias, elementos para compor suas tramas e romances que traziam criaturas cujo aspecto tinha explicação na medicina. Na ciência de modo geral, o termo está ligado à criptozoologia, área pouco conhecida que estuda a possível existência de monstros e criaturas estranhas, principalmente as de origem marinha.
Na medicina, eram chamadas de monstros, pessoas que apresentassem alguma deformidade, seja congênita, ou adquirida. A pessoa com hanseníase (vulgarmente conhecido como lepra) em um estado avançado, cuja doença atingia principalmente o rosto, era relacionada ao aspecto da monstruosidade. O mesmo ocorria com pessoas com membros atrofiados ou exagerados, que eram apresentadas em circos e parques de diversão principalmente nos Estados Unidos até metade do século passado.
A ideia do monstro também pode ser diferente em outras culturas. No Antigo Egito por exemplo, a noção do monstro carregava significados sacros, como nos animais representados como figuras humanoides.
Em alguns dicionaristas, o termo vem do latim monstrare, que quer dizer “mostrar”, no sentido de expor ou revelar algo. No Renascimento, “monstruoso” significava um sinal ou uma mensagem enviada por Deus aos homens, como forma de “demonstrar” sua vontade ou ira.  Já uma outra corrente de estudiosos, afirma que monstro vem de monera, quer dizer “avisar”.
Uma terceira corrente de estudos aposta no termo monstruim, que significa espetacular, aquele que se mostrou para além da forma. Dentre outras ideias de definição do que é um monstro, essa parece mais interessante, por fazer mais sentido no que diz respeito ao aspecto de algo e como o mesmo é capaz de se destacar daquilo que é considerado um padrão para a sociedade.
O cinema sempre retratou monstros. Uma grande maioria está ligada a algum mal que assola a humanidade e que sendo assim, deve ser exterminado. Uma das formas mais tradicionais de monstros, pode ser considerada aquela que durante os anos 1930 e 1940, faziam parte dos filmes da Universal Studios. Nem todas essas criaturas, porém, tinham uma maldade pura em sua natureza.
Frankenstein é sobre um monstro que foi criado com partes de corpos. Seu criador, o cientista Dr. Frankenstein, tem a ambição em ser capaz de criar a vida sem se importar com a ética, uma vez que os corpos usados foram exumados de um cemitério sem o consentimentos de seus familiares. Quando Fritz, seu assistente, deixa derrubar o cérebro que seria usado no monstro, ele acaba pegando outro, dessa vez que pertencia a um assassino. Quando finalmente dá vida à uma criatura, a mesma vem ao mundo sem saber de absolutamente nada sobre o que se passa ao seu redor. Tratado como um mero experimento que deu certo, o monstro costuma ser hostil quando se sente ameaçado, tendo essa hostilidade como herança do assassino cujo cérebro pertence agora ao monstro. A única oportunidade de mostrar uma outra faceta, se dá no encontro com Maria, uma garotinha de uns 7 anos. A famosa cena em que a menina joga flores no rio para mostrar à criatura que elas flutuam, simboliza um momento singelo de inocência e descoberta do mundo. Mas aí somos lembrados que estamos vendo um monstro e que mesmo que sua ação tenha sido errada, a mesma é carregada de boas intenções e tudo não passou de um grande equívoco. Sendo assim, a desajeitada criatura parece ter vindo ao mundo já com um estigma da marginalização e da má compreensão.  
Esse ícone do cinema de horror, já foi homenageado de diversas formas. Seja na cultura popular ou no próprio cinema, esse monstro incompreendido sempre carregará consigo a imagem do ser diferente e inadequado, porém longe de ser de fato considerado uma criatura maléfica e assustadora, despertando até mesmo a simpatia do público. Tanto é que a criatura sem nome, acabou ganhando com o tempo o nome de seu criador, como uma necessidade de dar nome a alguém que caiu nas graças do público.
Víctor Erice, cineasta espanhol, fez uma bonita homenagem ao longa Frankenstein (1931) no longa O Espírito da Colmeia, filmado em 1973. Aqui o encontro de uma menina de sete anos com um soldado, está cercado pelo contexto histórico da Guerra Civil Espanhola e de como esse período prejudicou a Espanha.
De forma resumida, o país se via dividido entre dois grupos com propostas bem diferentes para a sociedade espanhola. De um lado os Nacionalistas (formado por monarquistas que queriam o retorno do rei Alfonso XIII), os proprietários de terras, o exército e a igreja católica, estavam em atrito com os Republicanos, formados por trabalhadores urbanos, camponeses, organizações sindicais e diferentes grupos políticos de esquerda. A guerra se deu após uma tentativa de golpe de Estado de um setor do exército contra o governo da Segunda República Espanhola, iniciando assim o conflito em 17 de julho de 1936 e terminando em 1 de abril de 1939, com a vitória dos militares Nacionalistas e a instauração de um regime de caráter fascista, liderado pelo general Francisco Franco.
Nesse breve contexto histórico é que Ana (Ana Torrent), uma garota de sete anos, vive em uma casa com sua irmã, Isabel (Isabel Tellería) e seus pais Fernando (Fernando Fernán Gómez) e Teresa (Teresa Gimpera). A relação da família é um reflexo do início da ditadura franquista e do período devastador do recém término da guerra que se estende para a dinâmica da família, cujos integrantes são vistos juntos à mesa apenas uma vez durante todo o filme. 
O longa divide esses personagens em núcleos: o pai que está sempre concentrado no trabalho e que consequentemente dá pouca atenção para a esposa, Teresa, que por sua vez ainda está apegada a um romance vivido há alguns anos, cujo contato se dá apenas através das cartas que Teresa envia. Já Ana e Isabel vão a uma exibição do filme Frankenstein no vilarejo onde vivem. Enquanto Isabel passa ser uma menina mais madura, ao mesmo tempo em que gosta de fazer algumas brincadeiras mais perigosas e até de mal gosto com Ana, a segunda representa a essência do filme. Inocente e cheia de imaginação, a garota ao mesmo tempo é aquela que como a garotinha Maria, no filme de James Whale, enxerga o lado incompreendido desse contexto de guerra que ela nem ao menos compreende.
Vale apontar também o apresentador que surge antes de Frankenstein iniciar. O homem que adverte o público em 1931, alerta que a projeção a seguir irá retratar algo horrível e que pode chocar, mas que não precisa ser levado a sério. Esse momento exibido na cena em que Ana e sua irmã estão assistindo ao filme, parece simbolizar a própria guerra e como Ana absorveu a situação à sua maneira. O horror no caso de O Espírito da Colmeia seria a própria guerra, enquanto a noção de não se levar a sério, seria representada em Ana, cuja inocência a faz acreditar na existência de um monstro, o que a afasta da triste realidade que se passava na Espanha. Diferente de Isabel, que fala em um momento que filmes são truques, caracterizando mais a frieza da menina, que além de enganar a irmã, estraga a ilusão dela. 
Enquanto o filme Frankenstein e principalmente o Monstro, é usado pelos Nacionalistas no filme como símbolo de algo perverso que ameaçava a população e que devia ter sido destruído, Ana imediatamente parece compreendê-lo. A menina diante da projeção, questiona o porquê de a criatura jogar Maria no rio e o motivo do monstro ser morto pelas pessoas do povoado.
Nesse cenário pós-guerra, Erice usa muitos planos abertos que enquadram estradas cujo ponto de fuga parece levar a nenhum lugar, como se representassem um país com um rumo incerto. A mesma sensação é percebida nos campos, cujo vazio é predominante e nas poesias recitadas na escola de Ana que marcam uma falta de perspectiva do futuro.
Em meio a esse tom melancólico, ainda que não seja apreendido por Ana, ela acaba encontrando seu “amigo monstro” que é tão marginalizado quanto o monstro de Whale. O amigo em questão se trata de um soldado republicano que encontra refúgio em uma casa abandonada onde Isabel já havia falado antes para Ana que lá vive o monstro do filme, e que segundo a menina, ainda está vivo. 
A comunicação aqui se dá sem nenhum diálogo. Ana leva alimento para o homem e um relógio de bolso que pertence ao seu pai. Enquanto em Frankenstein a criatura mata Maria sem querer, após jogá-la no rio, esperando que a menina flutuasse como as flores que foram jogadas pela mesma, o “monstro” de Ana não lhe faz mal algum, mas acaba mesmo assim sendo fuzilado por soldados Nacionalistas por divergências políticas.
Mesmo com esse encontro entre Ana e o soldado, ainda podemos ver a menina frente a frente com a própria criatura de Frankenstein, mesmo que o acontecimento seja uma alucinação de Ana que comeu um cogumelo alucinógeno. Enquanto não tínhamos muita informação sobre Maria no filme de 1931, temos Ana vendo seu reflexo no lago se transformar na figura do monstro. Ana também foi mal compreendida e só queria ajudar o soldado, sem saber que colocaria seu pai em risco, quando o homem é questionado pelos militares de seu relógio estar com um soldado Republicano.
Ana é também uma criatura mal compreendida e alheia ao que está acontecendo com seu país. Além disso, ela cria um mundo seu em que acredita na existência de um monstro, enquanto Isabel, mesmo também alheia sobre a situação do país, é uma menina maldosa que maltrata um gato em uma cena.
Entre realidade e fantasia, O Espírito da Colmeia faz uma grande homenagem a um ícone do cinema de horror, ao mesmo tempo em que eleva o status de uma criatura que ganha analogias sobre temas sérios e políticos, enquanto lida com questões da infância e inocência de uma menina de sete anos.  

terça-feira, 13 de novembro de 2018

A Maldição da Residência Hill



A Assombração Da Casa Da Colina (The Haunting of Hill House) foi lançado em 1959 pela autora americana Shirley Jackson. O romance de terror gótico, chegou a ser finalista no Prêmio Nacional do Livro e já foi adaptado para o teatro e para o cinema. A obra de Jackson se destaca pelas relações complexas entre os personagens, em meio aos estranhos acontecimentos na residência.
A adaptação mais recente é a série de dez episódios da Netflix, intitulada A Maldição da Residência Hill, escrita e dirigida por Mike Flanagan. Diferente dos filmes, Flanagan não foi fiel à obra, mas usou muito de seus elementos e personagens para criar algo diferente e tão bom quanto o original.
Nessa nova adaptação, uma família composta pelos irmãos, Shirley (Elizabeth Reaser/Lulu Wilson), Theo (Kate Siegel/Mckenna Grace), Nell (Victoria Pedretti/Violet McGraw), Luke (Oliver Jackson-Cohen/Julian Hilliard) e Steven (Michiel Huisman/Paxton Singleton), viveu no início dos anos 1990 com os pais Olivia (Carla Gugino) e Hugh (Henry Thomas/Timothy Hutton). A mansão que ainda abriga espíritos de antigos moradores, interage com algumas crianças, cada um à sua maneira, marcando todos de formas diferentes. Uma tragédia ocorrida em uma noite, faz com que a casa seja abandonada por todos, mas mesmo anos depois, com todos já adultos, os integrantes da família ainda sofrem com o passado vivido na Residência Hill.

Mike Flanagan iniciou sua carreira como editor de séries de TV até começar a realizar seus próprios filmes. Os primeiros trabalhos eram mais voltados para o melodrama, gênero esse que depois foi deixado para trás pelo cineasta. Ghosts of Hamilton Street (2003), foi o primeiro filme do diretor depois de se forma na faculdade. A história gira em torno de um problemático escritor que passa a questionar sua sanidade enquanto as pessoas em sua vida desaparecem sem deixar vestígios. O longa chegou a ser premiado em um festival estudantil na época.
O Espelho (Oculus, 2013) foi o primeiro filme do cineasta que chamou a atenção da crítica e do público. Alguns elementos contidos na obra, são de fácil reconhecimento na série A Maldição da Residência Hill, como relacionamentos familiares e o retorno à casa para resolver questões mal resolvidas do passado.
A habilidade na edição, graças a experiência de Flanagan, nos permite a conexão constante entre o passado e presente de cada personagem da série. Às vezes um objeto usado por alguém em cena, também foi usado em algum momento pelo mesmo personagem na infância, como uma simples maçã. A edição também permite segurar informações que serão reveladas posteriormente para nós. Uma mesma cena pode ser vista mais de uma vez através de pontos de vista de personagens diferentes, afinal o roteiro dá a devida atenção a cada um dos personagens, criando uma forte empatia com o público.

Outro ponto importante é a dramaticidade da série em meio aos acontecimentos sobrenaturais e assustadores. Sabemos como muitos filmes, até mesmo por conta do pouco tempo para desenvolver a história, nem sempre conseguem desenvolver o drama e equilibrá-lo com as convenções do gênero do terror. Hereditário (Hereditary, 2018) foi um recente exemplo em que o equilíbrio fez total diferença, o que deu ao filme pontos positivos. A ideia de adaptar A Maldição da Residência Hill em série, foi fundamental para isso. Com dez episódios, alguns dedicados exclusivamente aos personagens principais, o roteiro explora bem o psicológico, o medo e nuances de cada indivíduo da série.
Fantasmas. Geralmente usados como pessoas vingativas que querem fazer mal aos habitantes de casas mal assombradas. Na série temos um diferencial, graças à história de Shirley Jackson, que concentra todo o mal na própria casa onde se passa a história e não em alguém específico. Já os espíritos que habitam o lugar, apresentam uma versatilidade especial na série. As aparições podem representar desde a consciência dos personagens, como seus pensamentos, ou de fato espíritos de alguém. Isso com certeza reforça a ideia de como o roteiro consegue equilibrar o terror com questões mais profundas da psique dos personagens.
Mas é na forma como Flanagan introduz esses espíritos nas cenas, que é de fácil reconhecimento o diferencial de A Maldição da Residência Hill. No lugar de uma aparição abrupta e mais fácil para assustar, a série aposta em cenas desconfortáveis que por vezes, os espíritos surgem aos poucos e de forma estranha. As poucas vezes em que eles aparecem de surpresa, são em cenas que no contexto, já estão tensas e são interrompidas com uma intervenção de um assombro. O uso da profundidade de campo em determinadas cenas, também acaba deixando sempre uma porta ou corredor ao fundo de algum personagem, como se algo fosse aparecer a qualquer momento.

Se você quer acompanhar uma série de terror que foge um pouco do óbvio, assista A Maldição da Residência Hill e perceba como essa série é sem dúvidas, uma das melhores produções lançadas pela Netflix neste ano. Confira abaixo o trailer da série!

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