segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

George Méliès

Texto de: Tarcísio Paulo dos Santos Araújo

A possibilidade do cinema ir mais além


Nascido em Paris em 8 de dezembro de 1861, Marie Georges Jean Méliès já resistia à ideia de se tornar um industrial do ramo dos sapatos, como seu pai, preferindo estudar desenho, escultura, pintura e manipulação de bonecos e marionetes.

Continuou seus estudos em Londres e depois voltou a Paris, onde começou a trabalhar como ilusionista ao mesmo tempo em que desenhava caricaturas para uma publicação de humor. Com a aposentadoria de seu pai, Méliès se viu obrigado a assumir a empresa junto com seu irmão Gaston. 


Em 1888, vende sua parte da empresa para o próprio irmão e compra da viúva de Jean-Eugène Robert-Houdin (conhecido mágico ilusionista francês)  o famoso teatro Robert-Houdin. Aos 27 anos George Méliès já tinha certa fama e dinheiro com shows de ilusionismo. 

A grande mudança veio em 28 de dezembro de 1895 quando o ilusionista estava presente na exibição de A Chegada de Um Trem na Estação, dos Irmãos Lumière. Encantado com o que viu, Méliès falou com Antoine Lumiére para que o mesmo lhe vendesse um exemplar do cinematógrafo. Temendo uma concorrência, Antoine recusou.

Sem desistir, George Méliés projetou e construiu seu próprio modelo de câmera, comprou uma grande quantidade de filmes virgens e passou a rodar suas produções sob a chancela de Star Film. Escamotage d’une Dame au Théâtre Robert Houdin mostra um breve show de mágica em que uma mulher desaparece em baixo de um pano. O filme é considerado historicamente como o primeiro trabalho a usar o recurso stop-motion, inventado por acaso pelo ilusionista. Um dia, enquanto operava sua filmadora em Paris, a câmera emperrou por alguns segundos, retomando seu movimento normal logo em seguida. Ao revelar o filme, o ilusionista se deparou com um ônibus “se transformando” em um carro fúnebre. Na verdade, a manivela parou enquanto o primeiro carro passava e voltou a funcionar no momento em que o segundo carro passou. Assim surgiu o truque da parada e substituição, muito usado por exemplo em alguns episódios do Chapolin, para que as coisas sumam e apareçam do nada. Esse truque foi muito usado nos filmes de George Méliès, assim como em diversos outros filmes. Em 1897 o teatro vira estúdio e sala de projeção, e o cinema passa a tomar toda a atenção de Méliès.

A importância do cineasta para a história do cinema, está no fato em que em uma época onde o cinema era visto ainda como uma invenção tecnológica revolucionária, com filmes que mais pareciam ensaios de documentários (mostrando as pessoas nas ruas) ou esquetes de comédias, George Méliès trouxe a magia do teatro e do ilusionismo para as telas, ganhando o status de linguagem artística. Seus filmes (alguns coloridos a mão!) tinham um rico visual, com cenários e figurinos criados pelo próprio cineasta.

Méliès explorou desde 1897 todas as opções que a câmera poderia lhe oferecer, desenvolvendo truques e efeitos especiais que foram modernizados por seus sucessores. Cineasta, figurinista, cenógrafo, produtor e ator, esse mago do cinema fez em 16 anos mais de 500 filmes que foram vistos pelo mundo todo e que agradavam tanto diretores de vanguarda, quanto de Hollywood.
O sucesso com os filmes cheios de truques, fez a fama do cineasta sem a necessidade de publicidade. Ao mesmo tempo, ele sabia que era preciso inovar cada vez mais, acrescentando temas mais complicados e fantásticos para aumentar o interesse do público. A necessidade de lugares imaginários fez com que o diretor contasse com sua vocação também para o desenho para criar seus cenários ao ar livre, nada naturais. O problema era filmar em dias de chuva ou quando o vento forte balançava ou derrubava os cenários, além da pouca iluminação solar quando alguma nuvem cobria o sol, única fonte de luz para fazer os filmes na época. Essas dificuldades fizeram com que Méliès construísse seu próprio estúdio (de vidro) para poder filmar seus curtas sem empecilhos e aproveitando ao máximo a luz solar.


Muito artístico e com pouca visão empresarial, George Méliès não acompanhou as mudanças que o cinema sofria. Não havia mais espaço para o cinema artesanal criado por ele. Abriu falência em 1923, e o teatro Robert-Houdin foi demolido no mesmo ano. Aos 70 anos, Méliès foi encontrado vendendo doces e brinquedos na estação ferroviária de Paris. Grupos culturais promoveram a revitalização de sua imagem e de sua obra realizando mostras de seus filmes. Mais de 500 no total. Morreu em 1938 aos 76 anos.
Em 2011 A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsesse retratou um pouco da história de Méliès e da magia de seus filmes. O filme venceu 5 Oscars, incluindo melhor fotografia e efeitos visuais, e é uma verdadeira homenagem a esse período tão fantástico do cinema.
Não podemos deixar de indicar alguns dos filmes mais significativos da carreira desse cineasta tão importante para  sétima arte. Felizmente há muitos filmes que sobreviveram ao tempo, mas abaixo você confere os cinco mais significativos de sua carreira.
A Mansão do Diabo (Le Manoir du Diable, 1896)

Esse é considerado o primeiro filme de terror da história do cinema. O curta não chega a assustar, porém, elementos do terror como, esqueletos, fantasmas, morcegos, objetos que aparecem e desaparecem e o próprio diabo, estão presentes nessa produção que merece estar na lista.


Un Homme de Têtes (1898)

Méliès, duas mesas, um banquinho, um banjo e.....cabeças! Nesse singelo curta surreal, o grande mago do cinema ousa nos efeitos. Vemos George Méliès arrancar sua própria cabeça e a multiplicar em cima de duas mesas, formando um coral que canta enquanto ele próprio toca um banjo.


Joana d'Arc (Jeanne d'Arc, 1900)
Primeiro filme a contar toda a história da heroína francesa, o curta de pouco mais de 10 minutos, já traz um cinema criado por Méliès mais voltado para uma narrativa linear do que um truque de mágicas. Pintado à mão, a obra conta com figurinos caprichados e cenários muito bem criados que criam profundidade de campo, ruas e até sombras das casas.


As Quatrocentas Farsas do Diabo (Les quatre cents farces du diable, 1906)
Completamente surreal, o enredo gira em torno de dois homens que encontram problemas durante uma viagem de carruagem. Perseguidos pelo diabo que faz diversos truques, os dois viajantes caem dentro de um vulcão e passam por planetas, estrelas, até caírem de vez no inferno. Destaque para o movimento da carruagem durante boa parte do curta e para o cavalo esqueleto que puxa o veículo.


Viagem à Lua (Le voyage dans la lune, 1902)
E chegamos ao filme que não poderia faltar. O mais conhecido filme de George Méliès, levou três meses para ficar pronto e é considerado um dos primeiro filmes de ficção científica da história do cinema. Baseado livremente no romance  Da Terra à Lua (1865) de Júlio Verne, o curta conta a história de um grupo de astrônomos que viajam até a lua. A cena da lua sendo atingida no olho pelo foguete, está facilmente em listas de cenas mais icônicas de toda a história da sétima arte e mostra como o cinema de George Méliès não tinha limites, podendo representar tanto a Terra, quanto o universo. Suas criações mostraram que o cinema tinha condições de sair da representação da realidade para alcançar lugares nunca antes imaginados dentro da grande tela.


sábado, 2 de dezembro de 2017

Jeanne Dielman


Texto de: Tarcísio Paulo Dos Santos Araújo

Contemplação e mudança de consciência numa narrativa sobre o cotidiano


Hitchcock disse que o cinema é como a vida, só que sem as partes chatas. Ele não estava errado quanto a isso, porém alguns filmes são magistrais justamente em sua simplicidade por mostrar aquilo que facilmente seria julgado como “sem importância”.

Assim é “Jeanne Dielman” (Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1976), escrito e dirigido por Chantal Akerman, cineasta belga nascida em Bruxelas em 06 de junho de 1950 e falecida em 05 de outubro de 2015. Com um cinema político e feminista (ainda que a diretora recusasse qualquer tipo de rótulo), Akerman realizava um cinema extremamente realista, muitas vezes privando o espectador de uma linguagem clássica que reforçasse as emoções e o psicológico de seus personagens através de enquadramentos como close-ups, câmera subjetiva, entre outros artifícios. Seus personagens têm total relação com o espaço em que vivem, caracterizando muito do que eles são através de um cotidiano mundano.


Através de um cinema bem contemplativo, o espectador é convidado a observar a rotina de Jeanne (Delphine Seyrig). Pela manhã, a mulher acorda, veste seu hobby, prepara o café da manhã, acorda seu filho adolescente, Sylvain (Jean Decorte), engraxa seus sapatos, dobra o seu pijama quando o garoto vai ao colégio, arruma o sofá cama onde o garoto dorme, lava a louça, sai para fazer algumas compras para a casa, prepara o jantar, faz um lanche à tarde, cuida do bebê da vizinha por um tempo, faz programa em sua própria casa onde recebe seus clientes, espera o seu filho chegar, janta junto com ele, ajuda-o a estudar e fazer as lições de casa, ouve música enquanto termina de fazer um suéter enquanto o garoto ler seu livro, sai com ele para um lugar que nunca é mostrado para o espectador, voltam para casa e vão dormir.

Escrevendo essas ações que aparentemente podem parecer sem importância, podemos perceber como o cinema de Chantal é bem diferente do que estamos acostumados a ver., porém, para quem estiver aberto a entrar na proposta da cineasta e entender que há outras formas de se contar uma história, logo ficará tomado pelo dia a dia da protagonista e sentirá interesse em observar sua vida dentro dessa rotina. Mais do que isso, interpretará o que o filme pretende dizer através dessa forma peculiar de se apresentar um personagem em uma narrativa que à primeira vista, pode parecer desprovida de um conflito mais óbvio como no cinema clássico.

Essa rotina, no entanto, nos fala muito sobre seus personagens. Jeanne está presa em um cotidiano mecânico que nunca a permitiu parar para pensar. Seu filho, apesar da boa relação com ela, não tem muito diálogo, com exceção da hora de ir dormir quando o garoto faz alguns comentários sobre sexualidade e sabemos um pouco mais sobre seu pai, já falecido. O menino janta com Jeanne enquanto lê e eles praticamente não se olham enquanto fazem as refeições, trocando quase nenhuma palavra. Quando a protagonista lê em voz alta uma carta que chegou de sua irmã, descobrimos como a viuvez de Jeanne preocupa sua família, que diz que “uma mulher bonita como ela não pode ficar sozinha”. Antes de dormir, Sylvain pergunta como sua mãe conheceu seu pai. Nesse momento descobrimos que Jeanne foi liberta por seu marido durante a Segunda Guerra Mundial, provavelmente de um campo de concentração e que o homem, que era militar na época, foi visto pela primeira vez por ela, enquanto jogava doces para as pessoas, incluído ela, que retribuía jogando rosas. Suas tias então, sempre incentivavam o casamento dos dois, principalmente pela boa posição financeira do homem e que ela deveria aproveitar essa oportunidade.

Jeanne foi condicionada a viver uma vida que mesmo não tão explicitamente, foi ditado o que ela deveria ou não fazer. Seu cotidiano é um reflexo daquilo que a sociedade espera de uma mulher; que ela seja prestativa, atenciosa e realize seus afazeres domésticos com perfeição. Essa perfeição está na satisfação com que a personagem sorri enquanto passa alguns bifes no ovo e na farinha para o jantar, quando arruma a cama ou quando cuida do bebê da vizinha.


Tudo isso é retratado com planos longos e pouca variação no ângulo das câmeras. A câmera não nos permite uma aproximação do que de fato está sentindo a personagem, como se qualquer possibilidade de reflexão tivesse cristalizado em Jeanne, restando apenas observarmos suas ações sem direito a close-ups, plano detalhes, nem nada que transpareça seu psicológico. Ao receber seus clientes, não vemos o programa de fato sendo realizado, mas quando a personagem recebe os homens em sua casa, a câmera não enquadra sua cabeça, deixando apenas o corpo no enquadramento. Naquele momento Jeanne é só um corpo.

Mas como em uma narrativa é preciso ter um conflito, o roteiro consegue isso de uma forma bem significativa, mas sem deixar de lado a sutileza. Como disse a própria Chantal em uma entrevista, “Jeanne arruma tempo para pensar”. Seu último momento de contemplação de sua própria mecanização se dá em uma cafeteria onde a personagem é atendida pela mesma garçonete e onde escolhe sempre o mesmo lugar para se sentar e tomar seu café. Após terminar um programa, Jeanne percebe que deixou as batatas cozinharem demais, arruinando assim o jantar. A partir daqui temos a imagem da dona de casa exemplar “arranhada”. A personagem precisa comprar mais batatas no mercado e toda sua rotina atrasa. Enquanto descasca as batatas às pressas, seu semblante muda. Algo está errado com Jeanne. Seus pequenos deslizes ficam mais frequentes. 


No dia seguinte, ela esquece de abotoar um dos botões de seu hobby, não arruma os cabelos como “deveria”, deixa cair objetos no chão, esquece de fechar a janela e não consegue fazer com que o bebê da vizinha pare de chorar. O leite ao ser bebido, parece estar estragado, ou será que ele já não tem mais o mesmo gosto, assim como sua vida? O casaco que falta um botão, já não pode ser mais encontrado nas lojas pela personagem, porque o modelo já saiu de circulação e na cafeteria, ela é atendida por outra garçonete e acaba sentando em outro lugar, porque uma senhora já ocupa seu ligar favorito. Jeanne não aguenta sua própria consciência dos fatos e sua reação não é das melhores. Mesmo assim, ela consegue sentir um alívio em um final agridoce em que ainda consegue esboçar em um sorriso na última cena.

É a partir dessas metáforas de uma dona de casa que Chantal Akerman, nesse que é considerado o melhor filme da carreira da cineasta, fala sobre o papel da mulher para grande parte da sociedade e como é fácil cair numa mecanização de ações que podem ser muito duras de serem confrontadas, gerando um choque com consequências que podem marcar uma vida para sempre. Claro que muita coisa já mudou, mas ainda existem muitas “Jeannes” pelo mundo à espera “das batatas cozinharem demais”.





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