Complexidade
Narrativa no Cinema Contemporâneo
Este
artigo tem como objetivo apresentar o conceito de complexidade narrativa no
cinema atual. Será abordada a sua contextualização (em um cinema que até pouco
tempo apresentava uma narrativa mais clássica), seu conceito, e as diferentes
formas em que essa estrutura pode ser apresentada no cinema contemporâneo.
Desde
que o cinema surgiu, ele sempre esteve em constante transformação. Seja no que
diz respeito à técnica, que possibilitou o som, até a passagem da imagem em
preto e branco para a colorida. A tela também foi se tornando cada vez maior, e
a ruptura nos estilos como o neorrealismo, e as nouvelles vagues redefiniram e reinventaram a estrutura da linguagem
da sétima arte. Em um contexto de modernidade
clássica com a idade de ouro dos estúdios de Hollywood, o que antigamente
se caracterizava como um “teatro falado”, (no primeiro cinema) agora exige dos
criadores uma nova gramática narrativa. Narrativa essa que é evidenciada pela
continuidade, e fluidez que garante uma verossimilhança e rápida absorção pelo
espectador. Hollywood já traz em seu histórico um cinema em que gêneros,
intrigas, e personagens sempre foram definidos por um estereótipo e pelos
clichês, o que faz com que esses filmes sejam facilmente acessíveis ao grande
público ao se corresponderem com uma sociedade conformista. (Gilles Lipovetsky
e Jean Serroy, 2009)
Lipovetsky
e Serroy defendem o conceito de hipermodernidade que começou a se iniciar no
fim dos anos 70. Essa hipermodernidade tem um patamar que não é simplesmente
uma superação da modernidade já existente, mas sim de uma modernidade
superlativa. Ela abrange o cinema em todos os sentidos, desde as novas
tecnologias, formas de produção, marketing, e claro, a gramática narrativa dos
filmes.
Associado ao
esgotamento das figuras clássicas da narrativa, esse cinema foi rotulado como
“pós-moderno.” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, 2009, 66)
Já
nos anos 80, analistas observam o aparecimento de uma categoria de filmes que
se concentra em imagens-sensações, nas citações, e no empréstimo formal.
Associado a um esgotamento das figuras clássicas narrativas, esse cinema foi
chamado de “pós-moderno”. Por mais que esta definição esteja de acordo com as
ideias desses analistas, o conceito de “pós” se encaixaria melhor em um cinema
ultramoderno que apresenta em sua narrativa uma desregulação e complexificação
formal do espaço-tempo fílmico. Essa linguagem hipermoderna visa uma
diversificação tendencial no cinema em que as referências uniformes e claras
coabitam cada vez mais com o atípico. Os filmes passam agora a serem mais
elaborados tecnicamente e criam narrativas mais diversificadas, com misturas de
tom, cruzamento de linhas, e ambiguidade de sentidos que foram buscadas de
forma sistemática. É um cinema multiforme, híbrido e plural. Toda essa
diversidade etnocultural de cineastas que realizam filmes em Hollywood é
reforçada por uma dinâmica de desregulação estética que se exerce por vários
elementos dos filmes. Dentre tantos eles, os autores destacam a narração.
Warren
Buckland (2009) traz na Poética de Aristóteles, o conceito da complexidade
narrativa. De acordo com o autor, todas as artes poéticas se originam da
imitação, ou seja, os enredos estão ligados a esquemas de uma estrutura que
busca uma imitação. Para essa narrativa ter sucesso, os elementos que o enredo
seleciona, combina, e organiza, devem parecer prováveis e necessários, e não eventuais
e casuais. A probabilidade e a necessidade formam a base da imitação e do
classicismo. Os enredos mais simples são miméticos (clássicos) porque eles envolvem
acontecimentos em uma única ação contínua organizada e unificada com um começo
(início da ação), meio (envolvendo uma complicação da ação) e fim (envolvendo a
resolução da ação complicada). Enredo esse de fácil aceitação por parte do
espectador. Buckland comenta que Aristóteles caracteriza os enredos complexos
como simples enredos com qualidades adicionais de “inversão” e
“reconhecimento”. Uma inversão (mais especificamente, uma inversão de sorte) é
uma ação ou acontecimento que vai contra a situação de um personagem (geralmente
o herói/heroína) e das expectativas do espectador.
O
Reconhecimento dá nome ao momento quando o herói ou a heroína está sujeito (a)
a uma inversão. Aristóteles argumenta que o enredo se torna mais forte se o
reconhecimento e a inversão acontecem ao mesmo tempo. É dado um exemplo na
tragédia de Édipo Rei, na passagem em que o mesmo descobre que ele matou o
próprio pai e casou-se com a própria mãe. Esse é o último momento de realização
e inversão de sorte que assola qualquer personagem na história do drama. Inversão
e reconhecimento não são realizados por personagens. Elas são impostas a eles,
e alteram seus destinos de forma radical. Aristóteles compõe a narrativa
complexa na adição de uma segunda linha de casualidade que introduz inversão e
casualidade.
Para
o autor, o uso do termo “complexidade” se estende e vai além dos termos
mencionados por Aristóteles. Existe também um tipo de enredo mais enigmático. O
puzzle plot tem sua complexidade no
sentido de que o os acontecimentos não são apenas complexos, mas perplexos. Os
acontecimentos não são apenas entrelaçados, mas sim envolvidos.
Uma
vez que a premissa da maioria desses filmes apresenta narrativas de pontos de
vista de uma mesma história, ou narrativas que apresentam diversas
possibilidades, fica claro de que há uma quebra da narrativa clássica. A Fuga
dessa forma clássica hoje em dia, está muito além da narrativa, mas também
atinge personagens, suas ações e acontecimentos, trazendo mais profundidade às
histórias e características psicológicas de seus personagens. (Warren Buckland,
2009)
Estruturalmente
é comum encontramos nessas narrativas a não linearidade, laços temporais, e
realidades fragmentadas no espaço temporal. Esses filmes não deixam claras as
fronteiras entre diferentes tipos de realidade, são repletos de lacunas,
decepções, estruturas labirínticas, ambiguidades, e ostensivas coincidências.
Elas são populares com narradores não confiáveis, ou que estão mortos (mas sem
nosso conhecimento ou deles mesmos). A complexidade dos filmes que apresentam puzzle plots opera em dois níveis:
narrativa e narração. Ela enfatiza a complexidade no contar histórias (enredo,
narração) de uma simples ou complexa história (narrativa).
Um
exemplo disso está no filme “Babadook” (Jennifer Kent, 2014). O filme conta a
história de Amelia (Essie Davis) que após seis anos passados da morte de seu
marido, ainda não consegue superar sua perda. Ela tem um filho pequeno Samuel
(Noah Wiseman), que sonha diariamente com um monstro. Um dia o menino encontra
um livro chamado “Babadook” e pede para que sua mãe o leia. Após isso, o menino
passa a agir de forma estranha, deixando Amelia desesperada.
O
filme constrói brilhantemente o estado emocional de Amelia, que faz com que a
personagem não caia na superficialidade e revele uma total complexidade de seu
psicológico que já se mostra desestabilizado logo no início do filme, mas que
no decorrer da narrativa, vai se degradando mais e mais. A narrativa passeia
pelo universo fantástico, mas que ao mesmo tempo pode ser entendido como uma
metáfora para retratar a mente de Amelia. O Babadook (criatura) pode ser
interpretado justamente como esse luto não superado, e que aos poucos vai
dominando de vez a vida dela e de seu filho.
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“Babadook” (Jennifer Kent, 2014). |
Essa
narrativa pode ser interpretada tanto pelo lado fantástico, quanto pelo lado
mais racional e metafórico. Ou até mesmo pelos dois, já que durante o filme é
possível notar diversos elementos que sustentariam ambas as interpretações.
Esse filme se encaixa muito bem nesse tipo de narrativa, mostrando como
felizmente o cinema também pode fugir do convencional e apresentar uma
pluralidade mais rica, ainda mais em um filme do gênero do terror, que tem se
mostrado sem muita criatividade ultimamente.
O
final se mostra também muito bem explorado, já que essas possibilidades de
interpretação se sustentam mesmo com a conclusão da narrativa. O espectador é
presenteado com essa possibilidade de ter dois entendimentos, para a derrota do
monstro, e escolher uma delas (de acordo com seu entendimento da história, e
sua forma de enxergar os fatos) ou abraçar ambos.
Uma
vez citado esse exemplo, podemos entrar nos filmes conhecidos por “jogarem com
a mente” do espectador (filmes mind-game) que são como os filmes puzzle, mas que são vistos de uma
perspectiva teórico-narratológica. Eles não só abordam crises de identidade de
seus personagens, mas também problemas epistemológicos (como sabemos o que nós
sabemos) e dúvidas ontológicas (sobre outros mundos e mentes). Esses filmes
sabem jogam com a mente e envolvem os espectadores de uma maneira que já não
podemos observar o mesmo nas narrativas clássicas.
Eles se encaixam num grupo de
filmes que são intrigantes pelo seu estranhamento, e chamam a atenção por “provocarem
o cérebro”, além de ultrapassarem as barreiras dos filmes hollywoodianos mainstream. (Thomas Elsaesser, 2009)
Esses
tipos de filmes podem se dividir em dois níveis: os que apresentam personagens
que são vítimas de algum tipo de jogo com a mente (geralmente cruel e mortal) sem
nem ao menos saberem quem é o autor desse jogo. Outro nível ocorre quando a
vítima desse jogo é o espectador, porque parte da informação acaba sendo
omitida para o mesmo, ou apresentada de forma ambígua. Pode ocorrer também da
informação ser omitida tanto dos personagens, quanto do espectador.
Cito
aqui o filme “Triângulo do Medo” (Christopher Smith, 2009) que surpreende com o
estranhamento tanto ao longo da narrativa, quanto com sua complexidade na
resolução dos eventos. Jess (Melissa George) parte para o alto mar com um grupo
de amigos a bordo de um veleiro, ela tem o pressentimento de que algo está
errado. Seus temores se confirmam quando uma tempestade atinge a embarcação
deixando todos à deriva. Em seguida, um misterioso navio (aparentemente abandonado)
surge no mar, e Jess junto com seus amigos embarcam para buscar ajuda. Logo,
todos perceberão que não estão sozinhos e que alguma coisa está caçando os
novos tripulantes, um a um. O filme tem referências na mitologia grega: Sísifo
encarnava a astúcia e a rebeldia do homem frente aos desígnios divinos. Sua
audácia, no entanto, o levou a ser condenado a empurrar eternamente ladeira
acima, uma pedra que rolava constantemente ao atingir o topo de uma colina,
conforme se narra na Odisséia.
“Triângulo
do medo” curiosamente tem o primeiro ato muito semelhante ao um filme de
suspense de narrativa clássica, e pouco importante, porém no decorrer da trama
ele se mostra muito inteligente e desafiador, apesar de confuso. Jess encontra
no navio versões dela mesma, cada uma com uma personalidade diferente,
incluindo uma que é assassina. Ela descobre que precisa matar seus amigos um a
um no navio para depois sair de lá e salvar o filho dela, que é autista. No final é exposto que Jess não era uma boa
mãe e que a caminho da creche onde ela ia deixar seu filho, para poder sair com
os amigos para velejar, ela bate o carro e ambos morrem. Jess não aceita a
morte (que interessantemente aparece como um taxista) e a engana, pedindo para
que a leve até o cais onde está o barco de seu amigo. Lá ela mente para a morte
dizendo que volta logo. Como castigo, ela é eternamente condenada a viver em um
tipo de limbo no qual ela sempre passará por esse ciclo com seus amigos, no
navio na tentativa de “salvar” seu filho.
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“Triângulo do Medo” (Christopher Smith, 2009) |
É
comum que os personagens centrais estejam mortos (como citado acima), sem que
eles tenham consciência disso. Outros filmes dão ênfase à mente: apresentam
personagens cuja condição mental é extrema, instável, ou patológica. Esses
personagens veem, e interagem com os outros personagens de uma forma normal.
Sendo assim, o filme mais uma vez “brinca” com a percepção de realidade do
espectador e dos personagens: ele obriga a pessoa a escolher entre uma
“realidade” ou um universo igualmente válido, porém incompatíveis. Uma
característica primordial desses filmes é desorientar o espectador e induzi-lo
ao erro (além da informação completamente omitida e cuidadosamente escondida,
há revira voltas no roteiro e finais que apresentam truques). Outra característica
é que espectadores de um modo geral não se importam em serem vítimas desses
jogos porque isso serve como um desafio para eles.
Claro
que há aqueles que não são tão abertos assim a finais e narrativas tão
desafiadoras. A narrativa clássica sempre foi a mais predominante no cinema e
na televisão, e quando se tem um olhar mais acostumado com o que já está
“pronto” e que não precisa ser questionado ou raciocinado, se deparar com um
produto audiovisual que provoque a mente do espectador, pode causar estranhamento.
A complexidade narrativa também
trabalha personagens que não diferem realidade e ilusão, podendo haver também revelações
drásticas que dão uma grande revira volta na história, e demais personagens que
tentam abrir os olhos do protagonista que não quer acreditar em sua atual
situação. É comum nesses filmes personagens que tenham alguma doença
psicológica, e que podem estar conectadas com algum passado pessoal que envolva
algum trauma que não deixe o presente desse personagem em paz.
Nos últimos filmes que têm abordado a
paranoia recentemente, é comum a abordagem de mães assombradas pela perda de um
filho. Às vezes a existência da criança não está totalmente clara para o
espectador, e se seus terapeutas e maridos estão tentando persuadi-las de que a
criança nunca existiu. Nesses filmes e livros, mulheres temem por sua sanidade
por causa da mistura de mensagens que elas recebem do mundo ao seu redor, além de
serem levadas à loucura por seus maridos que pensam que elas não são mais
dignas de confiança, até que elas percebam que tudo era um delírio, ou que suas
desconfianças eram certas. Geralmente há a presença de um personagem mais novo
que será aquele que vai acreditar nelas e ajudá-las, o que acaba equilibrando a
narrativa e dando margem para duas possíveis possibilidades. (ELSAESSER, 2009)
O
Cinema marcou a história e trouxe uma forma de expressão artística e
entretenimento jamais vista antes. Durante um grande tempo esse cinema mostrou
grande inovação técnica, porém com uma narrativa mais voltada para o clássico,
apresentando sempre linearidade e personagens mais bidimensionais. Mais ou
menos a partir da década de noventa, novas formas de narrativa passaram a
surgir e uma nova possibilidade de se contar histórias se fez presente. Na
poética de Aristóteles, as narrativas emergem da imitação. O enredo trabalha
esquemas imitados. Para que a narrativa seja bem sucedida sucesso os
acontecimentos devem parecer prováveis e necessários, formando a imitação do
classicismo. Já os enredos complexos são classificados por ele como enredos
simples, mas com qualidades adicionais.
Thomas
Elsaesser (2009) faz considerações que vão além das que foram descobertas por
Aristóteles. Os filmes puzzle operam
em níveis de narrativa e narração. Enfatiza a complexidade de se contar
histórias (enredo, narração) de uma simples ou complexa história (narrativa).
Eles contam com a não linearidade, ambiguidade e personagens pouco confiáveis.
Ainda nos filmes puzzle, pode se
considerar os filmes mind-game como uma subdivisão que traz a complexidade na
narrativa, porém apresentam uma perspectiva teórico-narratológica. Eles
costumam apresentar personagens com problemas psicológicos e emocionais vindos
de algum tipo de trauma, e que vivem algum conflito. No início não sabemos ao certo
se esses personagens estão dizendo a verdade ou se tudo faz parte de suas
condições psicológicas.
Esses
filmes conseguem desviar do percurso das narrativas clássicas, e surpreender o
espectador, ainda que nem todos sejam abertos a esse tipo de narrativa mais
complexa e que muitas vezes convida ao questionamento e à reflexão. Antes de se
sentir enganado, o espectador deve estar ciente de que isso é uma oportunidade
de fazer com que deixamos de ser meros observadores diante de uma grande tela,
para participarmos do filme (mesmo que indiretamente) de uma forma mais
interessante.