sábado, 3 de fevereiro de 2018

Artigos Simulacro do Simulacro - 01

Complexidade Narrativa no Cinema Contemporâneo

Artigo de : Tarcísio P. S. Araújo


Este artigo tem como objetivo apresentar o conceito de complexidade narrativa no cinema atual. Será abordada a sua contextualização (em um cinema que até pouco tempo apresentava uma narrativa mais clássica), seu conceito, e as diferentes formas em que essa estrutura pode ser apresentada no cinema contemporâneo.

Desde que o cinema surgiu, ele sempre esteve em constante transformação. Seja no que diz respeito à técnica, que possibilitou o som, até a passagem da imagem em preto e branco para a colorida. A tela também foi se tornando cada vez maior, e a ruptura nos estilos como o neorrealismo, e as nouvelles vagues redefiniram e reinventaram a estrutura da linguagem da sétima arte. Em um contexto de modernidade clássica com a idade de ouro dos estúdios de Hollywood, o que antigamente se caracterizava como um “teatro falado”, (no primeiro cinema) agora exige dos criadores uma nova gramática narrativa. Narrativa essa que é evidenciada pela continuidade, e fluidez que garante uma verossimilhança e rápida absorção pelo espectador. Hollywood já traz em seu histórico um cinema em que gêneros, intrigas, e personagens sempre foram definidos por um estereótipo e pelos clichês, o que faz com que esses filmes sejam facilmente acessíveis ao grande público ao se corresponderem com uma sociedade conformista. (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, 2009)

Lipovetsky e Serroy defendem o conceito de hipermodernidade que começou a se iniciar no fim dos anos 70. Essa hipermodernidade tem um patamar que não é simplesmente uma superação da modernidade já existente, mas sim de uma modernidade superlativa. Ela abrange o cinema em todos os sentidos, desde as novas tecnologias, formas de produção, marketing, e claro, a gramática narrativa dos filmes.
Associado ao esgotamento das figuras clássicas da narrativa, esse cinema foi rotulado como “pós-moderno.” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, 2009, 66)

Já nos anos 80, analistas observam o aparecimento de uma categoria de filmes que se concentra em imagens-sensações, nas citações, e no empréstimo formal. Associado a um esgotamento das figuras clássicas narrativas, esse cinema foi chamado de “pós-moderno”. Por mais que esta definição esteja de acordo com as ideias desses analistas, o conceito de “pós” se encaixaria melhor em um cinema ultramoderno que apresenta em sua narrativa uma desregulação e complexificação formal do espaço-tempo fílmico. Essa linguagem hipermoderna visa uma diversificação tendencial no cinema em que as referências uniformes e claras coabitam cada vez mais com o atípico. Os filmes passam agora a serem mais elaborados tecnicamente e criam narrativas mais diversificadas, com misturas de tom, cruzamento de linhas, e ambiguidade de sentidos que foram buscadas de forma sistemática. É um cinema multiforme, híbrido e plural. Toda essa diversidade etnocultural de cineastas que realizam filmes em Hollywood é reforçada por uma dinâmica de desregulação estética que se exerce por vários elementos dos filmes. Dentre tantos eles, os autores destacam a narração.

Warren Buckland (2009) traz na Poética de Aristóteles, o conceito da complexidade narrativa. De acordo com o autor, todas as artes poéticas se originam da imitação, ou seja, os enredos estão ligados a esquemas de uma estrutura que busca uma imitação. Para essa narrativa ter sucesso, os elementos que o enredo seleciona, combina, e organiza, devem parecer prováveis e necessários, e não eventuais e casuais. A probabilidade e a necessidade formam a base da imitação e do classicismo. Os enredos mais simples são miméticos (clássicos) porque eles envolvem acontecimentos em uma única ação contínua organizada e unificada com um começo (início da ação), meio (envolvendo uma complicação da ação) e fim (envolvendo a resolução da ação complicada). Enredo esse de fácil aceitação por parte do espectador. Buckland comenta que Aristóteles caracteriza os enredos complexos como simples enredos com qualidades adicionais de “inversão” e “reconhecimento”. Uma inversão (mais especificamente, uma inversão de sorte) é uma ação ou acontecimento que vai contra a situação de um personagem (geralmente o herói/heroína) e das expectativas do espectador.

O Reconhecimento dá nome ao momento quando o herói ou a heroína está sujeito (a) a uma inversão. Aristóteles argumenta que o enredo se torna mais forte se o reconhecimento e a inversão acontecem ao mesmo tempo. É dado um exemplo na tragédia de Édipo Rei, na passagem em que o mesmo descobre que ele matou o próprio pai e casou-se com a própria mãe. Esse é o último momento de realização e inversão de sorte que assola qualquer personagem na história do drama. Inversão e reconhecimento não são realizados por personagens. Elas são impostas a eles, e alteram seus destinos de forma radical. Aristóteles compõe a narrativa complexa na adição de uma segunda linha de casualidade que introduz inversão e casualidade.

Para o autor, o uso do termo “complexidade” se estende e vai além dos termos mencionados por Aristóteles. Existe também um tipo de enredo mais enigmático. O puzzle plot tem sua complexidade no sentido de que o os acontecimentos não são apenas complexos, mas perplexos. Os acontecimentos não são apenas entrelaçados, mas sim envolvidos.

Uma vez que a premissa da maioria desses filmes apresenta narrativas de pontos de vista de uma mesma história, ou narrativas que apresentam diversas possibilidades, fica claro de que há uma quebra da narrativa clássica. A Fuga dessa forma clássica hoje em dia, está muito além da narrativa, mas também atinge personagens, suas ações e acontecimentos, trazendo mais profundidade às histórias e características psicológicas de seus personagens. (Warren Buckland, 2009)

Estruturalmente é comum encontramos nessas narrativas a não linearidade, laços temporais, e realidades fragmentadas no espaço temporal. Esses filmes não deixam claras as fronteiras entre diferentes tipos de realidade, são repletos de lacunas, decepções, estruturas labirínticas, ambiguidades, e ostensivas coincidências. Elas são populares com narradores não confiáveis, ou que estão mortos (mas sem nosso conhecimento ou deles mesmos). A complexidade dos filmes que apresentam puzzle plots opera em dois níveis: narrativa e narração. Ela enfatiza a complexidade no contar histórias (enredo, narração) de uma simples ou complexa história (narrativa).

Um exemplo disso está no filme “Babadook” (Jennifer Kent, 2014). O filme conta a história de Amelia (Essie Davis) que após seis anos passados da morte de seu marido, ainda não consegue superar sua perda. Ela tem um filho pequeno Samuel (Noah Wiseman), que sonha diariamente com um monstro. Um dia o menino encontra um livro chamado “Babadook” e pede para que sua mãe o leia. Após isso, o menino passa a agir de forma estranha, deixando Amelia desesperada.

O filme constrói brilhantemente o estado emocional de Amelia, que faz com que a personagem não caia na superficialidade e revele uma total complexidade de seu psicológico que já se mostra desestabilizado logo no início do filme, mas que no decorrer da narrativa, vai se degradando mais e mais. A narrativa passeia pelo universo fantástico, mas que ao mesmo tempo pode ser entendido como uma metáfora para retratar a mente de Amelia. O Babadook (criatura) pode ser interpretado justamente como esse luto não superado, e que aos poucos vai dominando de vez a vida dela e de seu filho.

“Babadook” (Jennifer Kent, 2014).

Essa narrativa pode ser interpretada tanto pelo lado fantástico, quanto pelo lado mais racional e metafórico. Ou até mesmo pelos dois, já que durante o filme é possível notar diversos elementos que sustentariam ambas as interpretações. Esse filme se encaixa muito bem nesse tipo de narrativa, mostrando como felizmente o cinema também pode fugir do convencional e apresentar uma pluralidade mais rica, ainda mais em um filme do gênero do terror, que tem se mostrado sem muita criatividade ultimamente.

O final se mostra também muito bem explorado, já que essas possibilidades de interpretação se sustentam mesmo com a conclusão da narrativa. O espectador é presenteado com essa possibilidade de ter dois entendimentos, para a derrota do monstro, e escolher uma delas (de acordo com seu entendimento da história, e sua forma de enxergar os fatos) ou abraçar ambos.

Uma vez citado esse exemplo, podemos entrar nos filmes conhecidos por “jogarem com a mente” do espectador (filmes mind-game) que são como os filmes puzzle, mas que são vistos de uma perspectiva teórico-narratológica. Eles não só abordam crises de identidade de seus personagens, mas também problemas epistemológicos (como sabemos o que nós sabemos) e dúvidas ontológicas (sobre outros mundos e mentes). Esses filmes sabem jogam com a mente e envolvem os espectadores de uma maneira que já não podemos observar o mesmo nas narrativas clássicas.

Eles se encaixam num grupo de filmes que são intrigantes pelo seu estranhamento, e chamam a atenção por “provocarem o cérebro”, além de ultrapassarem as barreiras dos filmes hollywoodianos mainstream. (Thomas Elsaesser, 2009)

Esses tipos de filmes podem se dividir em dois níveis: os que apresentam personagens que são vítimas de algum tipo de jogo com a mente (geralmente cruel e mortal) sem nem ao menos saberem quem é o autor desse jogo. Outro nível ocorre quando a vítima desse jogo é o espectador, porque parte da informação acaba sendo omitida para o mesmo, ou apresentada de forma ambígua. Pode ocorrer também da informação ser omitida tanto dos personagens, quanto do espectador.

Cito aqui o filme “Triângulo do Medo” (Christopher Smith, 2009) que surpreende com o estranhamento tanto ao longo da narrativa, quanto com sua complexidade na resolução dos eventos. Jess (Melissa George) parte para o alto mar com um grupo de amigos a bordo de um veleiro, ela tem o pressentimento de que algo está errado. Seus temores se confirmam quando uma tempestade atinge a embarcação deixando todos à deriva. Em seguida, um misterioso navio (aparentemente abandonado) surge no mar, e Jess junto com seus amigos embarcam para buscar ajuda. Logo, todos perceberão que não estão sozinhos e que alguma coisa está caçando os novos tripulantes, um a um. O filme tem referências na mitologia grega: Sísifo encarnava a astúcia e a rebeldia do homem frente aos desígnios divinos. Sua audácia, no entanto, o levou a ser condenado a empurrar eternamente ladeira acima, uma pedra que rolava constantemente ao atingir o topo de uma colina, conforme se narra na Odisséia.

“Triângulo do medo” curiosamente tem o primeiro ato muito semelhante ao um filme de suspense de narrativa clássica, e pouco importante, porém no decorrer da trama ele se mostra muito inteligente e desafiador, apesar de confuso. Jess encontra no navio versões dela mesma, cada uma com uma personalidade diferente, incluindo uma que é assassina. Ela descobre que precisa matar seus amigos um a um no navio para depois sair de lá e salvar o filho dela, que é autista.  No final é exposto que Jess não era uma boa mãe e que a caminho da creche onde ela ia deixar seu filho, para poder sair com os amigos para velejar, ela bate o carro e ambos morrem. Jess não aceita a morte (que interessantemente aparece como um taxista) e a engana, pedindo para que a leve até o cais onde está o barco de seu amigo. Lá ela mente para a morte dizendo que volta logo. Como castigo, ela é eternamente condenada a viver em um tipo de limbo no qual ela sempre passará por esse ciclo com seus amigos, no navio na tentativa de “salvar” seu filho.

“Triângulo do Medo” (Christopher Smith, 2009)

É comum que os personagens centrais estejam mortos (como citado acima), sem que eles tenham consciência disso. Outros filmes dão ênfase à mente: apresentam personagens cuja condição mental é extrema, instável, ou patológica. Esses personagens veem, e interagem com os outros personagens de uma forma normal. Sendo assim, o filme mais uma vez “brinca” com a percepção de realidade do espectador e dos personagens: ele obriga a pessoa a escolher entre uma “realidade” ou um universo igualmente válido, porém incompatíveis. Uma característica primordial desses filmes é desorientar o espectador e induzi-lo ao erro (além da informação completamente omitida e cuidadosamente escondida, há revira voltas no roteiro e finais que apresentam truques). Outra característica é que espectadores de um modo geral não se importam em serem vítimas desses jogos porque isso serve como um desafio para eles.

Claro que há aqueles que não são tão abertos assim a finais e narrativas tão desafiadoras. A narrativa clássica sempre foi a mais predominante no cinema e na televisão, e quando se tem um olhar mais acostumado com o que já está “pronto” e que não precisa ser questionado ou raciocinado, se deparar com um produto audiovisual que provoque a mente do espectador, pode causar estranhamento.   

         A complexidade narrativa também trabalha personagens que não diferem realidade e ilusão, podendo haver também revelações drásticas que dão uma grande revira volta na história, e demais personagens que tentam abrir os olhos do protagonista que não quer acreditar em sua atual situação. É comum nesses filmes personagens que tenham alguma doença psicológica, e que podem estar conectadas com algum passado pessoal que envolva algum trauma que não deixe o presente desse personagem em paz.

         Nos últimos filmes que têm abordado a paranoia recentemente, é comum a abordagem de mães assombradas pela perda de um filho. Às vezes a existência da criança não está totalmente clara para o espectador, e se seus terapeutas e maridos estão tentando persuadi-las de que a criança nunca existiu. Nesses filmes e livros, mulheres temem por sua sanidade por causa da mistura de mensagens que elas recebem do mundo ao seu redor, além de serem levadas à loucura por seus maridos que pensam que elas não são mais dignas de confiança, até que elas percebam que tudo era um delírio, ou que suas desconfianças eram certas. Geralmente há a presença de um personagem mais novo que será aquele que vai acreditar nelas e ajudá-las, o que acaba equilibrando a narrativa e dando margem para duas possíveis possibilidades. (ELSAESSER, 2009)

O Cinema marcou a história e trouxe uma forma de expressão artística e entretenimento jamais vista antes. Durante um grande tempo esse cinema mostrou grande inovação técnica, porém com uma narrativa mais voltada para o clássico, apresentando sempre linearidade e personagens mais bidimensionais. Mais ou menos a partir da década de noventa, novas formas de narrativa passaram a surgir e uma nova possibilidade de se contar histórias se fez presente. Na poética de Aristóteles, as narrativas emergem da imitação. O enredo trabalha esquemas imitados. Para que a narrativa seja bem sucedida sucesso os acontecimentos devem parecer prováveis e necessários, formando a imitação do classicismo. Já os enredos complexos são classificados por ele como enredos simples, mas com qualidades adicionais.

Thomas Elsaesser (2009) faz considerações que vão além das que foram descobertas por Aristóteles. Os filmes puzzle operam em níveis de narrativa e narração. Enfatiza a complexidade de se contar histórias (enredo, narração) de uma simples ou complexa história (narrativa). Eles contam com a não linearidade, ambiguidade e personagens pouco confiáveis. Ainda nos filmes puzzle, pode se considerar os filmes mind-game como uma subdivisão que traz a complexidade na narrativa, porém apresentam uma perspectiva teórico-narratológica. Eles costumam apresentar personagens com problemas psicológicos e emocionais vindos de algum tipo de trauma, e que vivem algum conflito. No início não sabemos ao certo se esses personagens estão dizendo a verdade ou se tudo faz parte de suas condições psicológicas.


Esses filmes conseguem desviar do percurso das narrativas clássicas, e surpreender o espectador, ainda que nem todos sejam abertos a esse tipo de narrativa mais complexa e que muitas vezes convida ao questionamento e à reflexão. Antes de se sentir enganado, o espectador deve estar ciente de que isso é uma oportunidade de fazer com que deixamos de ser meros observadores diante de uma grande tela, para participarmos do filme (mesmo que indiretamente) de uma forma mais interessante.      

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