À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), primeiro grande filme de Zé do Caixão, contou com o apoio da família de Zé que precisou vender o carro. O grande sucesso do filme dividiu a crítica que considerou o cineasta genial ou ridículo. Mesmo com o sucesso financeiro, Mojica havia vendido os direitos do filme antes da estréia. Tendo que começar do zero financeiramente, Mojica já contava com o reconhecimento do público e dos cineastas Rogério Sganzerla, Carlos Reicherbach, Jairo Ferreira e Maurice Capovilla, que fizeram parte do Cinema Marginal paulista.
Antes de continuar a trajetória de Zé do Caixão, é importante falar um pouco sobre o cinema marginal e sua importância, já que cinema trash tem muito a ver com a vontade de fazer cinema mesmo que com poucos recursos.
Como explica no livro Enciclopédia do Cinema Brasileiro, o cinema marginal nunca possuiu uma coesão interna, diferente do Cinema Novo. Surgindo no final dos anos 60, o cinema marginal não sobreviveu ao início dos anos 70. Dois elementos estruturais ocupam espaço central dentro do cinema marginal: a ideologia da contracultura e a abertura para um diálogo lúdico e intertextual com o classicismo narrativo e o filme de gênero hollywoodiano. Há abertura também para as chanchadas, gênero que não conseguiu dialogar com o cinema novo. Dentro do recorte intertextual afirmativo com o universo da sociedade de consumo e da comunicação de massa, O Bandido da Luz Vermelha se torna o filme-farol do Cinema Marginal. Alguns núcleos de diretores com uma produção mais coesa e um relacionamento mais próximo, formam um grupo chamado de “marginal cafajeste”. Nesse grupo prezava a produção de filmes de forma ágil e barata, através do filão erótico. Na proximidade com o filme de consumo, há um pequeno retorno reflexivo, autoconsciente e irônico sobre os procedimentos narrativos e estilísticos utilizados no filme. Esse estilo abriu as portas para o cinema erótico da Boca do Lixo.
Ainda de acordo com a Enciclopédia do cinema brasileiro, dentro desse núcleo chamado de “marginal cafajeste”, encontra-se espaço para a apreciação estética no que na década de 90 passou a ser chamado de trash. Aí é quando entra a valorização do cinema do Mojica, o diálogo com o cinema pornográfico e o filme de terror B que caracterizam esse procedimento estético.
Zé do Caixão retorna em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) que alcança sucesso imediato em todo país. O sucesso coloca Mojica agora na televisão, onde é convidado para comandar um programa na recém inaugurada TV Bandeirantes. No programa Além, Muito Além do Além de 1967, eram apresentados episódios de histórias de terror às sextas-feiras. Os atores eram muitas vezes os próprios alunos de Mojica, que estudavam em sua escola de interpretação. O programa chegou a dar bons índices de audiência para a nova emissora, embora muitos criticassem o tom das histórias.
Na Tupi, Mojica estreou O Estranho Mundo de Zé do Caixão, com um orçamento mais generoso e a participação de atores consagrados (como Lima Duarte e Irene Ravache) e direção de Antônio Abujamra. No entanto, o sucesso popular já não foi mais o mesmo.
Voltando para o cinema, Mojica encontra dificuldades com a censura que proíbe seus filmes e os libera com a condição de que sejam feitos cortes de até vinte minutos. O Despertar da Besta (1970), filme mais violento do cineasta, é interditado por dezesseis anos. Com tantas proibições, Mojica se vê sem os produtores e começa a trabalhar como ator e a dirigir filmes que não faziam seu estilo, mas que garantia seu sustento.
Começa a rodar filmes de sexo explícito e não consegue retomar seus projetos de filmes que lhe interessavam de verdade. Mojica vira atração no famoso parque Playcenter e apresenta o Cine Trash na Band, como já citado semana passada. Mais uma reviravolta na carreira do cineasta acontece em 1993. O também cineasta André Barcinski, lança treze dos filmes do Zé do Caixão nos EUA, que o coloca em contato com uma distribuidora especializada em produções B. Com 7 mil fitas vendidas em quatro anos, Zé do Caixão ganha reconhecimento no exterior e se torna premiadíssimo. Recebe em 2005 do então presidente Luís Inácio Lula da Silva o prêmio de Honra ao Mérito, por serviços prestados à cultura.
O Estranho Mundo de Zé do Caixão estreia em 2007 e foi até 2013 pelo Canal Brasil. O programa que leva o mesmo nome do filme do cineasta feito em 1968 e do antigo programa da TV Tupi, contava com entrevistas e era dividido em quatro partes: A primeira com uma reportagem, a segunda com duvidas de internautas sobre assuntos paranormais e a terceira com uma entrevista com uma celebridade convidada. Na ultima parte Zé do Caixão lançava sua famosa praga.
Em 2015 o Museu da Imagem e do Som – MIS realizou uma exposição inédita com figurinos, roteiros, objetos cênicos, colagens, trechos de filmes e imagens de bastidores dos filmes do Zé do Caixão.
Em fevereiro desse ano, José Mojica Marins faleceu em São Paulo aos 83 anos, vítima de uma broncopneumonia. Fazendo parte da história do cinema brasileiro, mais especificamente do terror, que nunca teve seu devido reconhecimento no país, Zé do Caixão fez o que gostava e seu amor pelo cinema vai além do rótulo de filme trash.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)
Josefel Zanatas (Zé do Caixão) vive em uma cidade do interior e é temido pelos habitantes mais conservadores. Descrente de tudo, ele é o dono de uma funerária na cidade e quando é contrariado, logo se enfurece e pratica atos violentos contra qualquer um que o enfrente.
Sua esposa, Lenita (Valéria Vasquez), não pode engravidar o que frustra completamente Zé do caixão. Para resolver o problema, ele busca em Terezinha (Magda Mei), mulher de seu amigo Antonio (Nivaldo Lima), a possibilidade de que a mesma carregue seu filho e a continuidade de seu sangue. Custe o que custar.
Se fosse rodado hoje, Zé do Caixão seria o típico “macho escroto” que tem se discutido tanto hoje em dia, dentro dessa atual conscientização de relacionamentos abusivos. Zé do Caixão é um personagem a ser estudado. O mesmo homem sádico que agride mulheres, as estupra, sai dizendo frases machistas e intimida as pessoas, é o mesmo que admira a coragem de um homem que teve a mão dilacerada pelo próprio Zé do Caixão, mas que arca com todos os gastos médicos. Esse mesmo homem sádico também repreende um pai que agredia o filho.
Blasfêmico, o personagem zomba da procissão da Sexta-feira Santa enquanto é visto pela janela saboreando carne vermelha. Independente da polêmica e de sua falta de respeito, ainda dentro de sua contradição, algumas de suas falas acabam nos fazendo refletir sobre o que acreditamos e por que acreditamos naquilo que muitas vezes não podemos ver. O personagem faz questão de deixar claro que nada do além o faz sentir medo, já para ele nada disso existe de fato.
A condição de agente funerário e sua total descrença dão ao personagem um status de todo poderoso como se ele tivesse poderes sobrenaturais. Confesso até que antes de ver o filme eu sempre pensei que o Zé do Caixão fosse dotado de forças do além, mas é justamente o oposto. Mojica criou um personagem com uma figura tão poderosa que os habitantes da cidade que o temem, o veem como um ser sobrenatural. Tudo por conta da sua figura intimidadora.
No longa é forte a retratação do tradicionalismo brasileiro, principalmente das pequenas cidade do interior. Assim como a forte superstição passada de geração para geração. O sobrenatural vem como forma de punir o personagem por todo o mal que ele fez. Isso também parece carregar uma contradição, já que o personagem que apresenta uma ideia questionadora (no sentido religioso e nas crenças populares) é punido justamente por forças aparentemente sobrenaturais.
Para a época em que foi realizado, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, nem seria considerado um filme trash, já que é notável como Mojica era atento aos detalhes. Usando efeitos até bons para época, é possível perceber como o cineasta amava mesmo cinema e sua dedicação a essa forma de arte, ultrapassou qualquer conhecimento que poderia ter sido adquirido em um curso.